Jung Mo Sung*
No artigo
anterior eu apresentei a tese de que o mundo moderno ocidental
criou uma nova noção de religião reduzida à esfera privada da vida e voltada
somente a discussão sobre o sentido último da existência e a salvação eterna da
alma após-morte. Na construção dessa
noção de religião (que não existia na Europa Medieval e nem em outras partes do
mundo antes da influência do Ocidente), há um "irmão siamês”, a noção do
secular: o campo religioso se entende a partir da oposição ao campo secular, o
mundo da esfera pública "liberto” da submissão à religião.
Quando o papa Francisco,
no "Alegria do Evangelho”, critica a confiança ingênua na bondade "dos
mecanismos sacralizados do sistema econômico reinante” (n. 54), ele não aceita
a modernidade como secularizada, isto é sem fundamentos sagrados. Pelo
contrário, ele afirma que o mercado, que é fruto das interações humanas e
sociais, foi sacralizado e em nome dessa sacralidade se tornou inquestionável e
o critério de vida e morte sobre pessoas. Ser excluída do mercado significa ser
abandonada à morte. O mercado não mata diretamente, como o Estado totalitário, mas
não permite que essas pessoas possam viver. Para piorar, a insensibilidade da sociedade
frente aos sofrimentos delas.
Diante da crise econômico-social
e da insensibilidade social, o papa afirma que por detrás disso "há uma crise
antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criamos novos
ídolos.” ( n.55). Assim, o papa reivindica a primazia do ser humano frente aos
ídolos, como o fetiche do dinheiro. Essa expressão "primazia do ser humano”
pode chocar ouvidos de muitos acostumados com a crítica ao antropocentrismo do
mundo moderno. Já há uma vasta literatura, também no campo da teologia,
afirmando que a crise ecológica que vivemos resulta do antropocentrismo e que
para superar essa crise é preciso, em primeiro lugar, lutar contra o
antropocentrismo. E agora o papa vem proclamar a primazia do ser humano? Não
seria isso voltar as costas a toda reflexão ecológica acumulada nas últimas
décadas e voltar à tentação cristã do antropocentrismo, que para alguns é a
causa original da crise ecológica?
Por detrás dessa discussão
está, de novo, a pergunta de como compreendemos a modernidade, em especial a
modernidade capitalista. Na discussão sobre a crise social, não há muita
discordância sobre o papel do capitalismo neoliberal; assim como na discussão
ecológica, sobre o papel da voracidade destrutiva do capitalismo na sua ânsia
de acumular cada vez mais. Então a pergunta: É capitalismo um sistema
antropocêntrico?
Se estudarmos a histórica
do mundo moderno, a partir das grandes "descobertas” do século XVI e o
surgimento do capitalismo, não há como negar que esse sistema sacrificou
centenas de milhões de pessoas – especialmente na América, África e Ásia, mas
também na Europa onde padeceram milhões de camponeses/as e operários/as
explorados/as e condenados/as à fome. Esses sacrifícios, mortes, foram
realizados para atingir qual objetivo?
Tudo para saciar a fome da
acumulação de mais capital! Capital que devora seres humanos para
"autocrescer”. Os economistas capitalistas dizem que o capital cresce por valor
e mérito próprio. Foi para desmascarar essa ideologia que Marx aprofundou a
teoria do valor-trabalho e elaborou o seu conceito de "mais-valia” para mostrar
que o capital não cresce por si, mas por extração da mais-valia. Ele chega a
usar a imagem de Moloc (deus-ídolo criticado na Bíblia por exigir sacrifícios
de vidas humanas, sangue) para falar do capital.
Capitalismo é capitalismo
porque é centrado no Capital. Isto é, é "capitalcêntrico” e não
antropocêntrico. Por outro lado, a filosofia moderna apresentou o pensamento do
mundo moderno capitalista como antropocêntrico. É por aceitar a versão dos
pensadores modernos que muitos dizem que a modernidade é antropocêntrica e que,
para superar a civilização capitalista, devemos negar o antropocentrismo e
assumir "cosmocentrismo”, ecocentrismo ou algo assim.
Essa é uma discussão
longa, mas penso que o modo concreto como o capitalismo funciona é
capitalcêntrico, mas no seu discurso filosófico e ideologia se apresenta como antropocêntrica.
Só que o ser humano desse antropocentrismo é um ser "abstrato”, sem corpo e
suas necessidades, nem relações sociais e nem é parte da natureza. O
capitalismo devora seres humanos concretos, corporais, e se justifica com uma
consciência de antropocentrismo abstrato e transcendental. Em outras palavras,
mata seres humanos em nome do ser humano (abstrato e servidor do Capital). Assim
como as religiões antigas justificavam as opressões sobre corpos concretos
nesta vida em nome da salvação do ser humano abstrato, alma, na eternidade.
Para superar o capitalismo
atual, que sacrifica vidas humanas em nome das leis do mercado sacralizado, é
preciso lutar contra os "gêmeos” capitalcentrismo e antropocentrismo abstrato e
afirmar a primazia do ser humano concreto – com seu corpo e relações sociais no
meio ambiente – frente ao ídolo. (a continuar)
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* Jung Mo Sung é autor, com
N. Miguez e J. Rieger, do "Para além do Espírito do Império”, Paulinas.
Twitter:
@jungmosung
Fonte: Adital online, 11/04/2014
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