Paulo Gleich*
Jake
Gyllenhaal e Heath Ledger no filme “Brokeback Mountain”:
história de
amor entre dois homens com papéis sociais associados à masculinidade
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Perder los papeles – perder os papéis – é uma expressão espanhola que significa algo como perder as estribeiras, ficar maluco. Papeles
é a palavra coloquial para os documentos, esses papéis que dizem ao
poder público que somos alguém. Papéis nos garantem uma identidade,
dizem – a nós e aos outros – quem somos, nos dão um lugar, uma
nacionalidade, uma filiação. Quem já ficou sem passaporte em um país
estrangeiro sabe como a experiência de perder os papéis pode produzir
desamparo. Não é incomum encontrar em hospícios pessoas que
enlouqueceram após perder seus documentos em uma cidade desconhecida,
longe da terra e das pessoas que lhe conferiam uma identidade.
Não só os documentos, mas também os papéis que assumimos na vida
constituem peças do complexo mosaico que chamamos de identidade: ser
filho, ser pai, ser amigo, ser profissional, ser homem. Esses papéis, em
especial o último, a identidade sexual, vêm se transformando nas
sociedades ocidentais: não são mais tão estáveis como outrora, não são
mais papéis que se recebem escritos e que apenas são reproduzidos. Em
matéria de identidade sexual, estamos “perdendo os papéis”.
Essas mudanças são interessantes por não mais ser necessário viver de
acordo com normas que, em tempos ou lugares de maior rigidez, geravam
sofrimento para quem não se encaixava nos papéis prescritos. Entre eles,
homossexuais que se viam obrigados a se casar com mulheres, transexuais
que precisavam esconder sua identificação com um gênero que não aquele
do seu corpo. No lugar dos papéis fixos tem se aberto um espaço para
interrogar a complexidade da sexualidade humana, é possível desempenhar
outros além dos legitimados de homem e mulher heterossexual.
A liberdade que vem com a perda dos papéis tem, porém, um aspecto
angustiante: quem sou eu sem um papel que me diz quem sou? O
psicanalista alemão Erich Fromm, no livro O Medo à Liberdade
(Guanabara Koogan, 1983), escreveu que muitas vezes acabamos preferindo a
segurança de uma prisão à angústia do encontro com o desconhecido que
vem com a liberdade. Em matéria de sexualidade, o medo é maior ainda: é
um desconhecido que nos habita, nunca totalmente domesticável – apesar
de nossas tentativas.
Uma resposta possível à dissolução das identidades tradicionais é a
criação de novas identidades. Recentemente, o Facebook incluiu, em sua
versão em inglês, a possibilidade de escolher entre mais de 50 delas.
Outra é a de pais que têm escolhido não atribuir ao filho nenhum gênero,
deixando para ele essa escolha no futuro. Ambas respondem a uma
inconformidade com os papéis de homem ou mulher, que parecem tão
ultrapassados, opressores e restritivos. Paradoxalmente, encerram um
novo dilema: ou é preciso escolher uma identidade específica – e ainda
mais restrita –, ou fica-se em um vazio no qual não se é coisa alguma.
O movimento dos g0ys, ao qual Zero Hora dedicou uma reportagem esta semana,
é um exemplo dessa resposta à queda das identidades tradicionais no
campo da sexualidade. São homens que sentem desejo por outros homens,
podem também se relacionar com mulheres, mas não se identificam como
homo nem bissexuais. Têm relações sexuais com seus parceiros, mas não
praticam a penetração; esta é reservada somente ao sexo com as mulheres.
Resolveram se reunir em uma nova categoria para afirmar sua diferença
e, ao mesmo tempo, sua semelhança.
Não querem fazer parte de um coletivo – os gays – que nem sequer
existe como um grupo homogêneo, apenas constitui uma coletividade por
compartilhar um traço comum: são homens que gostam de homens. Há
estereótipos, mas eles não representam grande parte dos gays. Os g0ys,
no entanto, preferem se excluir dos gays, enclausurando-se em um grupo
com características mais bem definidas, que dizem o que constitui um
g0y.
Mas os g0ys não são o único exemplo disso. Vivemos em tempos nos
quais a diferença, antes condenada à exclusão, passou a ser valorizada e
até exaltada. Paradoxalmente, cresce o número de movimentos
segregatórios marcados pela afirmação da diferença em relação aos
outros, que acabam sendo excluídos e até mesmo hostilizados. Os g0ys e
outras “tribos sexuais” deixam bem claro que consideram os gays (ou
outros semelhantes) não apenas diferentes, mas inferiores. Classificar
agrega, mas também separa.
A diferença é, por natureza, intolerável. Ela nos faz questionar
nossa identidade, traz consigo a ameaça de perdermos nossos papéis. Para
lidar com a intolerância à diferença pode-se excluí-la, que é o que os
genocídios tentam fazer, ou furtar-se ao encontro com ela, convivendo
apenas entre iguais, que supostamente nos garantem que somos aquilo que
pensamos ser. Criam-se novas palavras e categorias para as mínimas
diferenças, na ilusão de domesticá-las. Mas não são soluções
definitivas: a diferença insiste, não se acomoda tão facilmente, mais
cedo ou mais tarde irrompe e volta a abalar. Mais vale interrogar o que a
diferença do outro diz sobre o diferente que, queiramos ou não, nos
habita.
Talvez fosse mais interessante, em vez de ampliar o infinito catálogo
da sexualidade humana, repensar os papéis que já existem. Torná-los
mais arejados, menos prescritos, mais abertos à escrita com que cada um
pode contribuir para construí-los. Continuamos precisando de papéis para
atuar no teatro da vida, sem eles ficamos relegados à loucura e ao
desamparo. Porém, talvez pudéssemos nos inspirar no teatro
contemporâneo, que rompe as categorias rígidas que separam dramaturgo,
diretor e ator. Os papéis seguem existindo, mas todos são criadores: o
ator tem a possibilidade de ser coautor do papel que lhe é designado, o
diretor pode entrar em cena. Afinal de contas, mesmo estando entre
iguais, somos fundamentalmente diferentes – não só dos outros, mas
também de nós mesmos.
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* Jornalista e psicanalista
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* Jornalista e psicanalista
Fonte: ZH online, 26/04/2014
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