José Tolentino Mendonça*
O mais comum é agradecer o que nos foi dado. E não nos
faltam motivos de gratidão. Há, é claro, imensas coisas que dependem do
nosso esforço e engenho, coisas que fomos capazes de conquistar ao
longo do tempo, contrariando mesmo o que seria previsível, ou que nos
surgiram ao fim de um laborioso e solitário processo. Mas isso em nada
apaga o essencial: as nossas vidas são um recetáculo do dom.
Por pura dádiva recebemos o bem mais precioso, a
própria existência, e do mesmo modo gratuito fizemos e fazemos a
experiência de que somos protegidos, cuidados, acolhidos e amados. Se
tivéssemos de fazer a listagem daquilo que recebemos dos outros (e é
pena que esse exercício não nos seja mais habitual), perceberíamos o
que a poetisa Adília Lopes repete como sendo a sua verdade: «sou uma
obra dos outros». Todos somos.
A nossa história começou antes de nós e persistirá
depois. Somos o resultado de uma cadeia inumerável de encontros, de
gestos, boas vontades, sementeiras, afagos, afetos. Colhemos inspiração
e sentido de vidas que não são nossas, mas que se inclinam
pacientemente para nós, iluminando-nos, fundando-nos na confiança. Esse
movimento, sabemo-lo bem, não tem preço, nem se compra em parte
alguma: só se efetiva através do dom.
Por isso é que quando ele falta a sua ausência
indelével faz-se sentir a vida inteira. O seu lugar não consegue ser
preenchido, mesmo se abunda uma poderosa indústria de ficções de todo o
tipo com a inútil pretensão de ser oblívio e substituição para essa
espécie de fala geológica que nos morde.
Hoje, porém, dei comigo a pensar também na importância
do que não nos foi dado. E a provocação chegou-me por uma amiga que
confidenciou: «Gosto de agradecer a Deus tudo o que Ele me dá, e é
sempre tanto que nem tenho palavras para descrever. Sinto, contudo, que
lhe tenho de agradecer igualmente o que Ele não me dá, as coisas que
seriam boas e que eu não tive, o que até pedi e desejei muito, mas não
encontrei. O facto de não me ter sido dado obrigou-me a descobrir
forças que não sabia que tinha e, de certa maneira, permitiu-se ser
eu».
Isto é tão verdadeiro. Mas exige uma transformação
radical da nossa atitude interior. Tornar-se adulto por dentro não é
propriamente um parto imediato ou indolor. No entanto, enquanto não
agradecermos a Deus, à vida ou aos outros o que não nos deram, parece
que a nossa prece permanece incompleta. Podemos facilmente continuar
pela vida dentro a nutrir o ressentimento pelo que não nos foi dado, a
compararmo-nos e a considerarmo-nos injustiçados, a prantear a dureza
daquilo que em cada estação não corresponde ao que idealizamos.
Ou podemos olhar o que não nos foi dado como a
oportunidade, ainda que misteriosa, ainda que ao inverso, para
entabular um caminho de aprofundamento... e de ressurreição. Foi assim
que numa das horas mais sombrias do século XX; desde o interior de um
campo de concentração, a escritora Etty Hillesum conseguiu, por
exemplo, protagonizar uma das mais admiráveis aventuras espirituais da
contemporaneidade. No seu diário deixou escrito:
«A grandeza do ser humano, a sua verdadeira riqueza,
não está naquilo que se vê, mas naquilo que traz no coração. A grandeza
do homem não lhe advém do lugar que ocupa na sociedade, nem no papel
que nela desempenha, nem do seu êxito social. Tudo isso pode ser-lhe
tirado de um dia para o outro. Tudo isso pode desaparecer num nada de
tempo. A grandeza do homem está naquilo que lhe resta precisamente
quando tudo o que lhe dava algum brilho exterior, se apaga. E que lhe
resta? Os seus recursos interiores e nada mais.»
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* José Tolentino Mendonça é teólogo português. Escritor. Poeta.
In Expresso, 18.4.2014
In Expresso, 18.4.2014
Fonte: http://www.snpcultura.org/agradecer_o_que_nao_nos_dao.html 18.04.14
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