Dagmar Ziba*
"A avassaladora "humanização" canina não tem
sido objeto de amplos estudos científicos que procurem desvelar as
raízes desse fenômeno e suas consequências.
É inevitável, porém, que
alguns grupos
se sintam incomodados pelo que consideram
um sério desvio
psicológico e social"
É necessário chacoalhar a alienação ampla, robusta e festiva que
perigosamente permeia as atuais relações entre os humanos e os cães.
As vantagens da convivência entre homens e cães são conhecidas há
milênios. Estudos paleontológicos mostram que o nômade coletor do
período paleolítico viajava acompanhado de cachorros, espécie já então
extraída do complexo genótipo do lobo. Cães pastores, de guarda,
farejadores etc. sempre foram e ainda são preciosos para a sobrevivência
e a segurança dos humanos.
Modernamente, conhecemos o conforto psíquico que um cão traz aos
donos. A ciência tem corroborado essa constatação da vida social. O
reconhecimento dos benefícios dessa convivência e, mais, a condenação
universal de maus tratos a qualquer espécie representam um salto
civilizatório da humanidade.
Há algumas décadas, no entanto, está em ebulição um caldo cultural que fantasia uma profunda "humanização"
do mundo animal. Nesse quadro, tornou-se quase um anátema não trazer
para a esfera do real a encantadora tradição disneyana, segundo a qual
os animais são portadores de capacidades cognitivas e emocionais iguais
ou superiores àquelas dos melhores indivíduos da espécie humana. Nas
sociedades ocidentais, esse encantamento revela-se fortemente a respeito
dos cães, muitas vezes incorporado de forma integral à rede familiar.
Para atender a ascendente condição canina, serviços e produtos são
oferecidos às famílias que alegremente custeiam não só a alimentação
específica, o banho semanal em pet shops, as visitas mensais ao veterinário, o guarda-roupa de inverno, os brinquedos, mas também festas de aniversário, creches "humanizadas" (comparáveis a escolinhas infantis) e até joias.
Ao que parece, essa avassaladora "humanização" canina não tem sido objeto de amplos estudos científicos que procurem desvelar as raízes desse fenômeno e suas consequências.
É inevitável, porém, que alguns grupos se sintam incomodados pelo que consideram um sério desvio psicológico e social.
Por exemplo, a partir de minha experiência pessoal, pergunto: como
não questionar a inconsciência de um adulto que, ao dar pêsames ao
vizinho pelo falecimento da mãe, equipara aquele luto filial ao próprio
pela recente morte de seu cão? Como não temer as consequências da fala
de um amigo que, diante de suas crianças, declara que a morte do Rex
é comparável à de um filho? Como não lamentar a corrente de
solidariedade que se forma na rua em torno de um cachorro doente,
enquanto sua dona --uma mendiga amputada de uma perna e com enorme
ferida na outra-- é ignorada?
Sim, há histórias comoventes de sacrifício e profunda dedicação de
cães aos humanos. E cachorros não torturam, não corrompem, não roubam.
São fiéis à família como o seriam ao chefe de sua matilha e aos
companheiros selvagens.
Para aqueles que contrapõem as virtudes caninas aos vícios dos homens a fim de justificar a "humanização"
a que submetem seus pets, pergunto: não conhecem humanos que fazem
sacrifícios inauditos para o bem de queridos? Pergunto ainda se sabem de
algum cão que tenha composto uma sinfonia, escrito um romance, um
tratado científico, tenha inventado uma vacina, construído um telescópio
ou se dedicado a minorar a fome na África.
São perguntas ridículas, é óbvio, mas talvez necessárias para
chacoalhar um pouco a alienação ampla, robusta e festiva que
perigosamente permeia as atuais relações entre os humanos e os cães.
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* Dagmar Zibas, pesquisadora aposentada, e doutora em educação pela Universidade de São Paulo - USP em artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, 06-04-2014.
Fonte: IHU online, 08/04/2014
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