Walter Praxedes*
Lemos lentamente os contos de Alice Munro. Aproximamo-nos aos poucos
das vivências que habitam a sua escrita. De preferência em silêncio, com
todos os eletrônicos dormindo seu sono quase impossível e depois que as
crianças também dormiram. O cansaço que restou do esforço da rotina
diária ainda não levou embora o mínimo de concentração. Foi também dessa
maneira que muitos dos contos foram escritos por esta escritora que nos
chega da zona rural de Ontário, no interior do Canadá.
Podemos permanecer assim por poucas páginas. Mas já é o bastante para
nos envolvermos no estilo direto e detalhista da escrita de Alice
Munro. Como se entre profundidade e leveza só pudesse existir
conciliação.
O diálogo de duas amigas em uma praia remota do Canadá nos aproxima
de toda a intimidade possível entre pessoas amigas que falam sobre seus
sentimentos de angústia e esperança, lamento e aceitação, tentando
sobreviver longe dos “surrados refúgios masculinos com seus odores
furtivos mas penetrantes, a aparência acanhada mas resoluta de
resistência aos domínios femininos”.
O
ritmo lento da leitura também contribui para que não deixemos passar
desatentamente algumas palavras, orações, parágrafos ou mesmo páginas
inteiras que possam abreviar o fim da introspecção trazida pelos livros
de Alice Munro, publicados com o título de uma brincadeira de criança:
“Ódio, amizade, namoro, amor, casamento”; ou de um sonho convencional e
às vezes impossível de muitos homens e mulheres: “O amor de uma boa
mulher”.
A vida cotidiana de mulheres, homens e crianças de diferentes
gerações e classes sociais transformados em suas personagens aparece em
cada conto como “o próprio centro do bem viver”, levando ao paroxismo
aquela idéia do filósofo Charles Taylor, discutida no livro As fontes do self, de que as civilizações modernas se baseiam na importância atribuída ao cotidiano na vida humana.
O pano de fundo dos contos de Alice Munro penso que é a idéia de que a
vida cotidiana deva ser vivida com dignidade. A própria família pode
ser definida como uma forma de sociabilidade baseada na convivência
cotidiana com vínculos de afetividade, comprometimento e cuidado. A
menina que recebeu uma educação cristã presbiteriana se transforma na
escritora atenta aos mínimos detalhes das vivências conflituosas e
opressivas. Nada que contrarie as possibilidades de se conviver em
família sem a perda da dignidade entre os seus membros deve permanecer
velado.
Mas não vamos encontrar nos contos de Alice Munro generalizações que
possam encobrir as sutilezas da busca de cada ser singular pelos
vínculos fraternos, onde quer que eles possam ser mais inesperados ou
ilusórios, em meio aos mais intensos conflitos no cotidiano familiar ou
profissional.
--------------------------* WALTER PRAXEDES é Doutor em Educação pela USP e professor do Departamento de Ciências Sociais da UEM.
Do meu Blog:
"O estilo rende narrativas que conseguem surpreender o leitor, principalmente em Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento, o melhor desses dois livros da autora. Há alguns belos textos, como O Urso Atravessou a Montanha, em que a personagem Fiona começa a perder a memória e, levada a uma casa de repouso pelo marido Grant, vive uma experiência que parece fugir de um roteiro sequencial e lógico". (Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/28/12/2013)
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