Entrevista MARIO SERGIO CORTELLA
A Páscoa é um momento oportuno para pensar no modo como temos levado a
vida ou o que podemos fazer dela daqui para a frente. Traçar rotas,
refazer caminhos, escolher ou batalhar mais por nossas prioridades.
Lembrar-se um pouco dos bons ensinamentos que há 2 mil anos varrem o
planeta, nascidos num lugar perdido do mundo antigo, chamado Galileia.
Cristãos ou não, o que todos querem é lutar, encontrar e dar um sentido
para o que fazemos no dia a dia.
Mario Sergio Cortella é filósofo, professor universitário e um dos palestrantes mais requisitados do Brasil – chegam a ser 30 conferências por mês que lotam auditórios e encantam as plateias mais heterogêneas – e escritor de 21 livros, com 800 mil exemplares espalhados de norte a sul do país.
Entre os temas que o tornaram figura popular em grandes empresas por conseguir traduzir com clareza assuntos como ética, moral e liderança, está a procura cada vez mais intensa das pessoas pela simplicidade – não uma carência, mas uma recusa ao desnecessário, para reduzir a ansiedade dos dias de hoje. Seus estudos passam por pesquisas sobre o Jesus histórico e sobre como os textos do Evangelho podem bem servir para o momento vivido hoje pelo Brasil, que recusa o apodrecimento ético e, para Cortella, passa por uma época de começo da limpeza.
O paranaense, que em uma determinada época de sua vida pensou em ser monge, fala também do líder dos católicos e do que se pode esperar do pontificado de Francisco. Por fim, deixa um recado sobre o que aprendeu ao longo de seus 60 anos, comemorados no mesmo dia do aniversário do compositor Heitor Villa-Lobos e, para ele mais importante, no mesmo dia de sua mãe, dona Emília.
– A vida me ensinou a alegria, a possibilidade de ter esperança, do verbo esperançar, não do esperar. A necessidade de ajudar a construir o futuro, sem negar o que se vive no presente e sem deixar de se preocupar com o legado. Acima de tudo, a vida me ensinou a não ser covarde, o que os romanos chamavam de pusilânime. Há pessoas que se acovardam para evitar o que deve ser enfrentado. O primeiro passo da jornada é encarar a si mesmo naquilo que acomoda – afirma.
Em época de Páscoa, existe algo a mais no ar que não apenas os chocolates. No mundo atual, há espaço para a espiritualidade?
O que existe é um grande esgotamento de alguns modelos mais arcaicos, muito consumistas. Hoje, mesmo pessoas mais jovens, impulsionadas ao consumo exacerbado, não estão satisfeitas com este modelo que retoma uma frase antiga do grande teólogo Agostinho: “Não pode saciar a fome quem lambe pão pintado”, ou seja, não se contente com as aparências. Esse consumo desenfreado precisa ser reeducado, afinal há um desejo maior por simplicidade, que não é carência, mas recusa ao desnecessário. A simplicidade vem no dia a dia. O custo pela não simplicidade é tamanho e produz desgaste entre crianças e jovens, que acabam vivendo com uma ansiedade imensa. O período pascal costuma favorecer, seja no mundo dos cristãos ou não, a várias reflexões, porque é um momento que leva a uma passagem. O ovo de Páscoa não faz mal, desde que não seja uma obsessão. Tudo que é obsessivo é doentio.
Ou seja, ganha-se espaço para religião e religiosidade? É possível religiosidade sem religião?
Sem dúvida, muita gente tem religiosidade sem ter religião. A religião é a formalização da religiosidade, a percepção de que a vida não se esgota na materialidade. E sim que a existência tem sentido e fazemos parte talvez de um grande mistério que não compreendemos.
Por que o senhor fala que religião não é coisa de gente tonta?
Isso é um capítulo de um livro que lancei no final do ano passado, chamado Não se Desespere! Tem gente que é tonta, em todas as áreas, e outras pessoas não. Religião é uma das respostas que se procura ter para o sentido da existência, que pode ser buscada de uma maneira livre, consciente, planejada e não de uma forma escravizada, alienada ou servil. Gente tonta costuma imaginar que o único jeito de ser é como ela é. Religião não pode ser entendida como sinônimo de ignorância, tal como não-religião não pode ser entendida como inteligência. Temos idiotas e inteligentes em ambos os campos.
Neste mundo tão rápido, tão hi-tech, pode-se acreditar em vida após a morte?
Isso varia, pois o número de religiões que acreditam em vida após a morte não é tão grande. Em número de pessoas, isso sim, com o cristianismo, hinduísmo e islamismo. Dois terços da humanidade que praticam religião aderem a essa ideia, de vida que não cessa com a morte do corpo, mas esta velocidade não necessariamente nos leva a pensar nisso, ela nos distrai porque se vive com tanta intensidade o cotidiano. Não é algo que fica no horizonte, não vejo com tanta nitidez que as pessoas teriam uma aderência maior a religiões que falem em sobrevivência da alma ou até em reencarnação. Não é o caso, por exemplo, do Rio Grande do Sul, que, pela última Pesquisa Domiciliar, é o Estado que fica em 1º lugar em algumas religiões que nem se imaginaria terem aí, como a umbanda ou outras reencarnacionistas. Não é algo que a velocidade do tempo produza, mas a inquietação por uma vida que parece ser muito rápida e que a gente precisa agarrar de tal maneira para que não passe sem que se perceba.
Com a tecnologia no estudo arqueológico, evidências do Jesus histórico tendem a se acentuar, com dados de como era a vida na Galileia?
Menos do que já ocorreu em tempos anteriores, porque houve um esgotamento da procura dos sinais em relação a não evidência. Muita gente se interessou pela história, a começar no momento em que o cristianismo nasce como uma prática de oposição, seja ao mundo judaico, seja ao poder de Roma. O interesse em desmascarar aquilo que é a consolidação da lógica cristã – a ressurreição – é muito mais evidente do que tivemos depois. Dificilmente, alguém hoje negaria a existência de Jesus de Nazaré mas a questão de Jesus Cristo é de fé. Em nenhum momento a ciência lida com a expressão Jesus Cristo, pois está no campo da crença. Mas sobre Jesus de Nazaré há evidências de um homem com aquelas características. Transformar, por meio da fé, Jesus de Nazaré em Jesus Cristo é uma decisão das pessoas.
E quando Jesus e Cristo se separam? São Paulo fala em separá-los.
Não se separam quando a gente olha na origem. Claro que sabemos que as cartas de Paulo são anteriores aos Evangelhos, quase meio século de antecedência, embora na ordem em que aparecem na Bíblia seja o inverso. A transformação de Jesus no Cristo, pelo relato evangélico, ocorre com João Batista, no momento do batizado. Paulo apenas organiza essa ideia em um modo mais estruturado. Isso é uma questão de crença, essa transformação se dá na teologia, que não é uma ciência, mas um saber, como a filosofia.
O senhor é dos que acreditam no Sermão da Montanha como a mais bela mensagem do Evangelho?
O Sermão tem uma beleza imensa e captura diversas coisas da cultura da antiguidade, inclusive das religiões orientais. Provavelmente, Jesus de Nazaré teve algum contato com expressões do orientalismo da época: a cultura da paz, da bem-aventurança, era marcante naquele momento. É muito provável que os essênios – adeptos de um seita judaica que existiu na Palestina à época – devem ter tido influência sobre este belíssimo Sermão, com capacidade de encantar até mesmo quem não é cristão. Podemos trazer tudo do texto para hoje, especialmente a promoção da fraternidade, da paz, da percepção da simplicidade. Pouca gente discordaria, ao olhar passo a passo dos elementos que são chave no Sermão, que eles não teriam aplicabilidade na nossa vida.
São Paulo diz que “tudo me é lícito, mas nem tudo me convém”. Jesus diz que nada adianta ao homem ganhar o mundo se perder a alma. Isso vale para o Brasil de hoje?
Lancei em março, com Clóvis de Barros Filho, o livro Ética e Vergonha na Cara!, que trata da ética no cotidiano. Não podemos perder o foco do que vivemos hoje no Brasil, que não é o auge da sujeira, mas o começo da limpeza. Existem plataformas digitais que favorecem o combate ao ilícito, imprensa livre e uma democracia que não teme. O momento favorece a novidade, que não é a corrupção, mas um começo da limpeza. O país vive uma fase positiva, com a recusa ao apodrecimento ético. A palavra de Paulo serve para cristãos e não cristãos, mas há outros pensadores inspiradores. O Evangelho emite alertas para um país que está revendo seu modo de sustentação à base de cada um por si e Deus por todos.
Por falar nos evangelhos, discute-se muito quem seriam seus autores. Usando uma expressão sua, quem seriam os repórteres desta grande reportagem? João, por exemplo, não seria o discípulo?
João provavelmente não foi o discípulo. Há muitos relatos sobre a história e a vida de Jesus: são mais de 30. A Igreja Católica reconhece quatro como sendo verdadeiros, desde o século 4º, no Concílio de Niceia. Mas não há clareza sobre o autor de cada um porque havia um hábito, na antiguidade, de transformar alguém em autor de algo para honrá-lo. João pode ser um genérico, não o evangelista, não o do Apocalipse.
Os evangelhos apócrifos podem trazer luz sobre algo que ainda não sabemos? Têm validade?
Sim, são possíveis, não são chamados de falsos, mas não oficiais. Apócrifo não significa mentiroso. Apócrifo significa oculto. Mas os que a igreja antiga reconheceu são os quatro. É pouco provável que se encontrem mais evangelhos, a não ser que escavações tragam à tona o que ainda não se viu. Os outros evangelhos são publicados, aqui no Brasil, inclusive, por editoras católicas, não são algo esotérico, com mensagem cifrada. Eles foram lidos e estudados, tanto que coisas deles ajudaram a iluminar o Cristianismo original. Não há mais novidade nessa área. Quando alguém diz que encontrou evangelho de Judas ou Madalena, isso se sabe há 2 mil anos.
Por falar em Madalena, vem ganhando força a sua figura e também a da mulher em geral.
Ela foi a primeira pessoa a ver, de acordo com a fé cristã, Jesus ressuscitado. O primeiro momento público de Jesus também foi com uma mulher, a Samaritana. É compreensível o fato de não ter sido dada tanta atenção às mulheres no passado, mesmo recente. No Brasil, há 30 anos, uma mulher precisava de autorização do marido para abrir um crediário e comprar um fogão, mesmo se ela trabalhasse. E um homem podia ser absolvido da morte da mulher sob a alegação de ter lavado sua honra.
O que vem ganhando força também é a figura de irmãos de Jesus.
A palavra irmão é múltipla em aramaico, tanto pode significar um primo quanto um irmão de sangue. A ideia de família varia. Em comunidades indígenas do Brasil, a palavra irmão é usada no sentido não sanguíneo. Como o aramaico não é mais falado, não sabemos o sentido do momento.
Quando Jesus na cruz pergunta por que o pai o abandonou, tenta se mostrar uma pessoa “mais comum”, mas ainda filho de Deus?
A humanidade de Jesus expressa nessa frase que os cristãos acreditam que ele tenha dito é, sem dúvida, notória. Ninguém supõe que, só por ser filho de Deus, deixe de sofrer e de ter momentos de angústia. É uma expressão humana. Assim deve ser entendida, mas a angústia não impediu, na crença cristã, que ele fosse até o final (a morte e a ressurreição celebradas na Páscoa).
Mais do que doutrina, este primeiro ano do papa Francisco parece passar uma nova de imagem, de aproximação, aconchego, é isso mesmo? O que esperar do estilo?
Ele tirou de cena uma pauta que a Igreja Católica não queria que fosse prioritária: as acusações no campo da conduta. Apesar de toda a capacidade que tem, Bento XVI, um papa sisudo, não oferecia possibilidade de que essa pauta fosse desviada. No dia a dia, a igreja estava acuada em vez de responder a uma agenda positiva. Quando Francisco escolhe, no seu primeiro compromisso internacional, vir à Jornada Mundial da Juventude, numa nação que vinha fervendo com manifestações, ele acerta em relação à proximidade. Mas isso não altera, obviamente, a noção e a percepção teológica que ele tem. A doutrina não muda com ele. Até poderá ser modificada, mas ele está cauteloso. Francisco não é tolo, dirige uma instituição de 2 mil anos, mas é arrojado em vários passos. Sabe manejar as cordas que eventualmente afrouxa no dia a dia, junto com as que não solta de maneira alguma, as doutrinárias.
É hora de mudar? Ele terá coragem para isso, com esse estilo simples que fala de arroz com feijão, de ser um pecador e não super-homem?
Só os católicos poderão dizer se é hora ou não, mas eu, palpitando do lado de fora, diria que sim. Caberá ao católico decidir, como nas discussões de uso de preservativo, casamento homoafetivo. Se esta Igreja quer seguir forte neste século, precisará de arejamento. Só não tenho expectativa de que ele dê uma guinada porque, se fosse fazer isso, não seria eleito jamais. Há de se esperar que ele siga tomando medidas como as que já fez, de nomear cardeais que não estavam no horizonte, alterar a lógica do eurocentrismo e a questão das finanças do Vaticano e reconhecer a presença mais efetiva da figura da mulher na Igreja.
Francisco passa a imagem de um homem que tem dúvidas e as discute, por exemplo, com um amigo rabino. Ele quer mostrar um estilo comum à maioria?
Não, ele não quer passar uma imagem, não é uma representação carregar a sua própria pasta, pagar a sua conta de hotel. Ele já era assim e continuou no Vaticano porque não é imagem, é prática. Isso não significa, obviamente, que seja isento de qualquer desvio, mas não é alguém que representa um papel. Aliás, está tendo de treinar para representar algumas coisas que fazem parte da liturgia do cargo que ocupa.
Existe necessidade, na Igreja Católica, de transformações maiores, como um concílio, por exemplo?
Acho que o Papa poderá fazer, mas não de imediato. A distância do último concílio, de pouco mais de 50 anos, é muito curta, levando em conta a instituição e seus 2 mil anos. Ele fará, sim, mudanças com as convocações de sínodos – assembleias eclesiásticas – ao estilo mais colegiado. Ele implanta as medidas a partir de uma base mais aberta, na prática, no dia a dia, e não apenas escrevendo. Quando abraça uma mulher, mãe de uma criança fruto de uma relação que não é um casamento, quando decide batizar uma criança sem aprovação de todo o clero, quando beija os pés de mulheres em uma cerimônia, ele está demonstrando as mudanças. Ele fará mudanças com esse estilo mais colegiado, com essas convocações de sínodos, e, ao mesmo tempo, com medidas de base, mais abertas, na prática do dia a dia.
Ou seja, o papa Francisco mais mostra do que escreve?
Ele está mostrando as mudanças, não escrevendo. Ele tem uma capacidade imagética muito mais forte do que a gente diria de teorética. Se ele convocar um concílio, não fará isso antes de se passarem três anos do seu papado. E há um risco: pode não ter tempo para organizar toda a estrutura. Ele é um homem de 77 anos, tem fôlego, mas não é um atleta e não tem um dos pulmões. Assim, é difícil conduzir um concílio, extenso no tempo, demora anos. Ele não o faria agora. Acho que pode até vir a convocá-lo, mas seria algo fora da tradição da Igreja fazê-lo com tão pouca distância entre um e outro. Mas a tradição já foi quebrada duas vezes em 2013, inclusive com a escolha de um jesuíta. Eu tive formação jesuíta, estudei filosofia com os jesuítas e por 16 anos ensinei em universidade jesuíta. Um papado desta natureza cumpre quesitos bons.
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bela.hammes@zerohora.com.br
Reportagem por MARIA ISABEL HAMMESMario Sergio Cortella é filósofo, professor universitário e um dos palestrantes mais requisitados do Brasil – chegam a ser 30 conferências por mês que lotam auditórios e encantam as plateias mais heterogêneas – e escritor de 21 livros, com 800 mil exemplares espalhados de norte a sul do país.
Entre os temas que o tornaram figura popular em grandes empresas por conseguir traduzir com clareza assuntos como ética, moral e liderança, está a procura cada vez mais intensa das pessoas pela simplicidade – não uma carência, mas uma recusa ao desnecessário, para reduzir a ansiedade dos dias de hoje. Seus estudos passam por pesquisas sobre o Jesus histórico e sobre como os textos do Evangelho podem bem servir para o momento vivido hoje pelo Brasil, que recusa o apodrecimento ético e, para Cortella, passa por uma época de começo da limpeza.
O paranaense, que em uma determinada época de sua vida pensou em ser monge, fala também do líder dos católicos e do que se pode esperar do pontificado de Francisco. Por fim, deixa um recado sobre o que aprendeu ao longo de seus 60 anos, comemorados no mesmo dia do aniversário do compositor Heitor Villa-Lobos e, para ele mais importante, no mesmo dia de sua mãe, dona Emília.
– A vida me ensinou a alegria, a possibilidade de ter esperança, do verbo esperançar, não do esperar. A necessidade de ajudar a construir o futuro, sem negar o que se vive no presente e sem deixar de se preocupar com o legado. Acima de tudo, a vida me ensinou a não ser covarde, o que os romanos chamavam de pusilânime. Há pessoas que se acovardam para evitar o que deve ser enfrentado. O primeiro passo da jornada é encarar a si mesmo naquilo que acomoda – afirma.
Em época de Páscoa, existe algo a mais no ar que não apenas os chocolates. No mundo atual, há espaço para a espiritualidade?
O que existe é um grande esgotamento de alguns modelos mais arcaicos, muito consumistas. Hoje, mesmo pessoas mais jovens, impulsionadas ao consumo exacerbado, não estão satisfeitas com este modelo que retoma uma frase antiga do grande teólogo Agostinho: “Não pode saciar a fome quem lambe pão pintado”, ou seja, não se contente com as aparências. Esse consumo desenfreado precisa ser reeducado, afinal há um desejo maior por simplicidade, que não é carência, mas recusa ao desnecessário. A simplicidade vem no dia a dia. O custo pela não simplicidade é tamanho e produz desgaste entre crianças e jovens, que acabam vivendo com uma ansiedade imensa. O período pascal costuma favorecer, seja no mundo dos cristãos ou não, a várias reflexões, porque é um momento que leva a uma passagem. O ovo de Páscoa não faz mal, desde que não seja uma obsessão. Tudo que é obsessivo é doentio.
Ou seja, ganha-se espaço para religião e religiosidade? É possível religiosidade sem religião?
Sem dúvida, muita gente tem religiosidade sem ter religião. A religião é a formalização da religiosidade, a percepção de que a vida não se esgota na materialidade. E sim que a existência tem sentido e fazemos parte talvez de um grande mistério que não compreendemos.
Por que o senhor fala que religião não é coisa de gente tonta?
Isso é um capítulo de um livro que lancei no final do ano passado, chamado Não se Desespere! Tem gente que é tonta, em todas as áreas, e outras pessoas não. Religião é uma das respostas que se procura ter para o sentido da existência, que pode ser buscada de uma maneira livre, consciente, planejada e não de uma forma escravizada, alienada ou servil. Gente tonta costuma imaginar que o único jeito de ser é como ela é. Religião não pode ser entendida como sinônimo de ignorância, tal como não-religião não pode ser entendida como inteligência. Temos idiotas e inteligentes em ambos os campos.
Neste mundo tão rápido, tão hi-tech, pode-se acreditar em vida após a morte?
Isso varia, pois o número de religiões que acreditam em vida após a morte não é tão grande. Em número de pessoas, isso sim, com o cristianismo, hinduísmo e islamismo. Dois terços da humanidade que praticam religião aderem a essa ideia, de vida que não cessa com a morte do corpo, mas esta velocidade não necessariamente nos leva a pensar nisso, ela nos distrai porque se vive com tanta intensidade o cotidiano. Não é algo que fica no horizonte, não vejo com tanta nitidez que as pessoas teriam uma aderência maior a religiões que falem em sobrevivência da alma ou até em reencarnação. Não é o caso, por exemplo, do Rio Grande do Sul, que, pela última Pesquisa Domiciliar, é o Estado que fica em 1º lugar em algumas religiões que nem se imaginaria terem aí, como a umbanda ou outras reencarnacionistas. Não é algo que a velocidade do tempo produza, mas a inquietação por uma vida que parece ser muito rápida e que a gente precisa agarrar de tal maneira para que não passe sem que se perceba.
Com a tecnologia no estudo arqueológico, evidências do Jesus histórico tendem a se acentuar, com dados de como era a vida na Galileia?
Menos do que já ocorreu em tempos anteriores, porque houve um esgotamento da procura dos sinais em relação a não evidência. Muita gente se interessou pela história, a começar no momento em que o cristianismo nasce como uma prática de oposição, seja ao mundo judaico, seja ao poder de Roma. O interesse em desmascarar aquilo que é a consolidação da lógica cristã – a ressurreição – é muito mais evidente do que tivemos depois. Dificilmente, alguém hoje negaria a existência de Jesus de Nazaré mas a questão de Jesus Cristo é de fé. Em nenhum momento a ciência lida com a expressão Jesus Cristo, pois está no campo da crença. Mas sobre Jesus de Nazaré há evidências de um homem com aquelas características. Transformar, por meio da fé, Jesus de Nazaré em Jesus Cristo é uma decisão das pessoas.
E quando Jesus e Cristo se separam? São Paulo fala em separá-los.
Não se separam quando a gente olha na origem. Claro que sabemos que as cartas de Paulo são anteriores aos Evangelhos, quase meio século de antecedência, embora na ordem em que aparecem na Bíblia seja o inverso. A transformação de Jesus no Cristo, pelo relato evangélico, ocorre com João Batista, no momento do batizado. Paulo apenas organiza essa ideia em um modo mais estruturado. Isso é uma questão de crença, essa transformação se dá na teologia, que não é uma ciência, mas um saber, como a filosofia.
O senhor é dos que acreditam no Sermão da Montanha como a mais bela mensagem do Evangelho?
O Sermão tem uma beleza imensa e captura diversas coisas da cultura da antiguidade, inclusive das religiões orientais. Provavelmente, Jesus de Nazaré teve algum contato com expressões do orientalismo da época: a cultura da paz, da bem-aventurança, era marcante naquele momento. É muito provável que os essênios – adeptos de um seita judaica que existiu na Palestina à época – devem ter tido influência sobre este belíssimo Sermão, com capacidade de encantar até mesmo quem não é cristão. Podemos trazer tudo do texto para hoje, especialmente a promoção da fraternidade, da paz, da percepção da simplicidade. Pouca gente discordaria, ao olhar passo a passo dos elementos que são chave no Sermão, que eles não teriam aplicabilidade na nossa vida.
São Paulo diz que “tudo me é lícito, mas nem tudo me convém”. Jesus diz que nada adianta ao homem ganhar o mundo se perder a alma. Isso vale para o Brasil de hoje?
Lancei em março, com Clóvis de Barros Filho, o livro Ética e Vergonha na Cara!, que trata da ética no cotidiano. Não podemos perder o foco do que vivemos hoje no Brasil, que não é o auge da sujeira, mas o começo da limpeza. Existem plataformas digitais que favorecem o combate ao ilícito, imprensa livre e uma democracia que não teme. O momento favorece a novidade, que não é a corrupção, mas um começo da limpeza. O país vive uma fase positiva, com a recusa ao apodrecimento ético. A palavra de Paulo serve para cristãos e não cristãos, mas há outros pensadores inspiradores. O Evangelho emite alertas para um país que está revendo seu modo de sustentação à base de cada um por si e Deus por todos.
Por falar nos evangelhos, discute-se muito quem seriam seus autores. Usando uma expressão sua, quem seriam os repórteres desta grande reportagem? João, por exemplo, não seria o discípulo?
João provavelmente não foi o discípulo. Há muitos relatos sobre a história e a vida de Jesus: são mais de 30. A Igreja Católica reconhece quatro como sendo verdadeiros, desde o século 4º, no Concílio de Niceia. Mas não há clareza sobre o autor de cada um porque havia um hábito, na antiguidade, de transformar alguém em autor de algo para honrá-lo. João pode ser um genérico, não o evangelista, não o do Apocalipse.
Os evangelhos apócrifos podem trazer luz sobre algo que ainda não sabemos? Têm validade?
Sim, são possíveis, não são chamados de falsos, mas não oficiais. Apócrifo não significa mentiroso. Apócrifo significa oculto. Mas os que a igreja antiga reconheceu são os quatro. É pouco provável que se encontrem mais evangelhos, a não ser que escavações tragam à tona o que ainda não se viu. Os outros evangelhos são publicados, aqui no Brasil, inclusive, por editoras católicas, não são algo esotérico, com mensagem cifrada. Eles foram lidos e estudados, tanto que coisas deles ajudaram a iluminar o Cristianismo original. Não há mais novidade nessa área. Quando alguém diz que encontrou evangelho de Judas ou Madalena, isso se sabe há 2 mil anos.
Por falar em Madalena, vem ganhando força a sua figura e também a da mulher em geral.
Ela foi a primeira pessoa a ver, de acordo com a fé cristã, Jesus ressuscitado. O primeiro momento público de Jesus também foi com uma mulher, a Samaritana. É compreensível o fato de não ter sido dada tanta atenção às mulheres no passado, mesmo recente. No Brasil, há 30 anos, uma mulher precisava de autorização do marido para abrir um crediário e comprar um fogão, mesmo se ela trabalhasse. E um homem podia ser absolvido da morte da mulher sob a alegação de ter lavado sua honra.
O que vem ganhando força também é a figura de irmãos de Jesus.
A palavra irmão é múltipla em aramaico, tanto pode significar um primo quanto um irmão de sangue. A ideia de família varia. Em comunidades indígenas do Brasil, a palavra irmão é usada no sentido não sanguíneo. Como o aramaico não é mais falado, não sabemos o sentido do momento.
Quando Jesus na cruz pergunta por que o pai o abandonou, tenta se mostrar uma pessoa “mais comum”, mas ainda filho de Deus?
A humanidade de Jesus expressa nessa frase que os cristãos acreditam que ele tenha dito é, sem dúvida, notória. Ninguém supõe que, só por ser filho de Deus, deixe de sofrer e de ter momentos de angústia. É uma expressão humana. Assim deve ser entendida, mas a angústia não impediu, na crença cristã, que ele fosse até o final (a morte e a ressurreição celebradas na Páscoa).
Mais do que doutrina, este primeiro ano do papa Francisco parece passar uma nova de imagem, de aproximação, aconchego, é isso mesmo? O que esperar do estilo?
Ele tirou de cena uma pauta que a Igreja Católica não queria que fosse prioritária: as acusações no campo da conduta. Apesar de toda a capacidade que tem, Bento XVI, um papa sisudo, não oferecia possibilidade de que essa pauta fosse desviada. No dia a dia, a igreja estava acuada em vez de responder a uma agenda positiva. Quando Francisco escolhe, no seu primeiro compromisso internacional, vir à Jornada Mundial da Juventude, numa nação que vinha fervendo com manifestações, ele acerta em relação à proximidade. Mas isso não altera, obviamente, a noção e a percepção teológica que ele tem. A doutrina não muda com ele. Até poderá ser modificada, mas ele está cauteloso. Francisco não é tolo, dirige uma instituição de 2 mil anos, mas é arrojado em vários passos. Sabe manejar as cordas que eventualmente afrouxa no dia a dia, junto com as que não solta de maneira alguma, as doutrinárias.
É hora de mudar? Ele terá coragem para isso, com esse estilo simples que fala de arroz com feijão, de ser um pecador e não super-homem?
Só os católicos poderão dizer se é hora ou não, mas eu, palpitando do lado de fora, diria que sim. Caberá ao católico decidir, como nas discussões de uso de preservativo, casamento homoafetivo. Se esta Igreja quer seguir forte neste século, precisará de arejamento. Só não tenho expectativa de que ele dê uma guinada porque, se fosse fazer isso, não seria eleito jamais. Há de se esperar que ele siga tomando medidas como as que já fez, de nomear cardeais que não estavam no horizonte, alterar a lógica do eurocentrismo e a questão das finanças do Vaticano e reconhecer a presença mais efetiva da figura da mulher na Igreja.
Francisco passa a imagem de um homem que tem dúvidas e as discute, por exemplo, com um amigo rabino. Ele quer mostrar um estilo comum à maioria?
Não, ele não quer passar uma imagem, não é uma representação carregar a sua própria pasta, pagar a sua conta de hotel. Ele já era assim e continuou no Vaticano porque não é imagem, é prática. Isso não significa, obviamente, que seja isento de qualquer desvio, mas não é alguém que representa um papel. Aliás, está tendo de treinar para representar algumas coisas que fazem parte da liturgia do cargo que ocupa.
Existe necessidade, na Igreja Católica, de transformações maiores, como um concílio, por exemplo?
Acho que o Papa poderá fazer, mas não de imediato. A distância do último concílio, de pouco mais de 50 anos, é muito curta, levando em conta a instituição e seus 2 mil anos. Ele fará, sim, mudanças com as convocações de sínodos – assembleias eclesiásticas – ao estilo mais colegiado. Ele implanta as medidas a partir de uma base mais aberta, na prática, no dia a dia, e não apenas escrevendo. Quando abraça uma mulher, mãe de uma criança fruto de uma relação que não é um casamento, quando decide batizar uma criança sem aprovação de todo o clero, quando beija os pés de mulheres em uma cerimônia, ele está demonstrando as mudanças. Ele fará mudanças com esse estilo mais colegiado, com essas convocações de sínodos, e, ao mesmo tempo, com medidas de base, mais abertas, na prática do dia a dia.
Ou seja, o papa Francisco mais mostra do que escreve?
Ele está mostrando as mudanças, não escrevendo. Ele tem uma capacidade imagética muito mais forte do que a gente diria de teorética. Se ele convocar um concílio, não fará isso antes de se passarem três anos do seu papado. E há um risco: pode não ter tempo para organizar toda a estrutura. Ele é um homem de 77 anos, tem fôlego, mas não é um atleta e não tem um dos pulmões. Assim, é difícil conduzir um concílio, extenso no tempo, demora anos. Ele não o faria agora. Acho que pode até vir a convocá-lo, mas seria algo fora da tradição da Igreja fazê-lo com tão pouca distância entre um e outro. Mas a tradição já foi quebrada duas vezes em 2013, inclusive com a escolha de um jesuíta. Eu tive formação jesuíta, estudei filosofia com os jesuítas e por 16 anos ensinei em universidade jesuíta. Um papado desta natureza cumpre quesitos bons.
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bela.hammes@zerohora.com.br
Fonte: ZH online, 20/04/2014
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