Antonio Ozaí da Silva*
Gente Pobre
é o primeiro romance de Fiódor Dostoiévski. É um livro no estilo
epistolar – troca de cartas entre Makar Diévuchkin, funcionário de uma
repartição pública de Petersburgo, e sua vizinha Varvara Alieksiêievna,
uma jovem órfã injustiçada – que mostra a adesão à causa dos humildes e
realça a importância dos pequenos gestos no cotidiano das relações
humanas. Nele, Dostoiévski enfatiza os valores e sentimentos dos pobres
(dignidade, honra, reputação, etc.). Ele humaniza o demasiado humano.
Seu tema central é a dignidade humana dos pobres. Segundo Fátima
Bianchi, que traduziu a obra diretamente da língua russa:
“A intenção do escritor, na representação do cotidiano de seu personagem em sociedade, é demonstrar, através da imagem que ele tem de si mesmo, que sua miséria exterior não espelha o que lhe vai nas profundezas do coração. Tanto que as necessidades materiais que Diévuchkin é forçado a experimentar o tempo todo, e que se tornam objeto de séria atenção e discussão em suas cartas, não fazem dele um homem ridículo” (Posfácio, p. 178-179).*
A obra pode ser analisada numa perspectiva política-sociológica? Há
obras que “respiram” política desde o primeiro parágrafo (exemplo:
“1984”, de George Orwell); noutras, a política não “aparece” ao leitor
de forma direta. O aspecto “político-sociológico” precisa ser
apreendido. Isto exige um esforço de análise, mas as dificuldades não
são intransponíveis. Basta uma leitura mais atenta, informar-se,
relacionar texto e contexto, etc.
O estilo literário, o foco da narrativa, etc., influenciam a análise.
Nele, a política parece ausente. Mas o olhar atento sobre o contexto
social, econômico e político da época, explícito ou implícito nas
entrelinhas, nas cartas que expressam a vida social em que estão
inseridos os personagens, observará os aspectos políticos-sociológicos
presentes na obra.
Nesta perspectiva, a chave para analisar o texto depende da
assimilação do conteúdo e o caminho da análise está em aberto – isto
significa que depende da reflexão de cada um. Por exemplo: um livro como
este poderia ser analisado na perspectiva da relação entre política e
cotidiano. O homem e a mulher pobres, gente simples, pensam, sentem e
encontram-se envoltos em redes políticas que nem sempre compreendem.
Tendem a naturalizar as relações sociais, a desigualdade social, os
efeitos da política e a dar um sentido moral e teológico à vida – ou
seja, buscar na religião a explicação para a pobreza, a miséria e o
sofrimento, como se fosse o destino dos pobres:
“É preciso nos habituarmos; é preciso que haja medo” (p. 94).
“… decerto que esse era o meu destino – e do destino não se foge, como se sabe” (p. 102).
“É claro que em tudo está a vontade divina; é verdade que isso deve ser necessariamente assim, isto é, a vontade divina deve necessariamente estar nisso; assim como é claro que a Providência do Criador Celeste é bendita e insondável e os destinos também, eles também são a mesma coisa” (p. 161).
Estas palavras ilustram o pensamento dos pobres sobre a vida. Por que
pensam dessa forma? A política tem algo a dizer sobre isto, ou trata-se
apenas de uma questão de sorte ou azar dos indivíduos? A injustiça
social expressa na vida dos personagens tem caráter político? À sua
maneira, fazem política. O dia-a-dia e os “pequenos gestos”, a
necessidade de manter as aparência expressam significados políticos? O
que é ser cidadão naquele contexto?
O Estado, isto é, a política institucional, aparece nos interstícios
da narrativa. Por mais que o autor concentre-se nos personagens, eles
não estão “soltos no ar”. Quem é este senhor, esta moça que se
correspondem? O que eles expressam na Petersburgo do século XIX? Quais
as características desta cidade e da Rússia em que vivem, ou seja, o
chão social e político que permitem sua existência – e tornam possível
uma obra como esta? Quais os valores morais, religiosos, etc. presentes?
É possível apreendê-los e relacioná-los com a política?
Em suma, o que dá sentido à vida dos pobres? No fundo, a obra se
resume a isto! Portanto, ainda que o leitor não tenha o intento da
reflexão política-sociológica, terá uma experiência ímpar sobre o
humano, demasiado humano. A sua sensibilidade, se desabrochada, será
fortalecida e muito provavelmente tornar-se-á mais humano, confirmando
as palavras do personagem dostoievskiano, Makar Diévuchkin:
“A literatura é uma coisa muito boa, Várienka, muito boa; disso me inteirei anteontem através deles. É algo profundo! É algo que edifica e fortalece o coração das pessoas (…). A literatura é um quadro, ou seja, em certo sentido um quadro e um espelho; é a expressão da paixão, uma crítica tão fina, um ensinamento edificante e um documento” (p. 74).
* Posfácio, p. 178-179. In: DOSTOIÉVSKI, F. Gente Pobre. São Paulo: Editora 34, 2009. Todas as citações são da obra!
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* Professor do Departamento de Ciências Sociais, Universidade Estadual de
Maringá (UEM); Editor da Revista Espaço Acadêmico e Revista Urutágua
Fonte: http://antoniozai.wordpress.com/2014/04/12/literatura-politica-gente-pobre-de-dostoievski/
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