domingo, 13 de abril de 2014

Literatura Política – “Gente Pobre”, de Dostoiévski

Antonio Ozaí da Silva*

gente pobre 
Gente Pobre é o primeiro romance de Fiódor Dostoiévski. É um livro no estilo epistolar – troca de cartas entre Makar Diévuchkin, funcionário de uma repartição pública de Petersburgo, e sua vizinha Varvara Alieksiêievna, uma jovem órfã injustiçada – que mostra a adesão à causa dos humildes e realça a importância dos pequenos gestos no cotidiano das relações humanas. Nele, Dostoiévski enfatiza os valores e sentimentos dos pobres (dignidade, honra, reputação, etc.). Ele humaniza o demasiado humano. Seu tema central é a dignidade humana dos pobres. Segundo Fátima Bianchi, que traduziu a obra diretamente da língua russa:
“A intenção do escritor, na representação do cotidiano de seu personagem em sociedade, é demonstrar, através da imagem que ele tem de si mesmo, que sua miséria exterior não espelha o que lhe vai nas profundezas do coração. Tanto que as necessidades materiais que Diévuchkin é forçado a experimentar o tempo todo, e que se tornam objeto de séria atenção e discussão em suas cartas, não fazem dele um homem ridículo” (Posfácio, p. 178-179).*
A obra pode ser analisada numa perspectiva política-sociológica? Há obras que “respiram” política desde o primeiro parágrafo (exemplo: “1984”, de George Orwell); noutras, a política não “aparece” ao leitor de forma direta. O aspecto “político-sociológico” precisa ser apreendido. Isto exige um esforço de análise, mas as dificuldades não são intransponíveis. Basta uma leitura mais atenta, informar-se, relacionar texto e contexto, etc.

O estilo literário, o foco da narrativa, etc., influenciam a análise. Nele, a política parece ausente. Mas o olhar atento sobre o contexto social, econômico e político da época, explícito ou implícito nas entrelinhas, nas cartas que expressam a vida social em que estão inseridos os personagens, observará os aspectos políticos-sociológicos presentes na obra.

Nesta perspectiva, a chave para analisar o texto depende da assimilação do conteúdo e o caminho da análise está em aberto – isto significa que depende da reflexão de cada um. Por exemplo: um livro como este poderia ser analisado na perspectiva da relação entre política e cotidiano. O homem e a mulher pobres, gente simples, pensam, sentem e encontram-se envoltos em redes políticas que nem sempre compreendem. Tendem a naturalizar as relações sociais, a desigualdade social, os efeitos da política e a dar um sentido moral e teológico à vida – ou seja, buscar na religião a explicação para a pobreza, a miséria e o sofrimento, como se fosse o destino dos pobres:
“É preciso nos habituarmos; é preciso que haja medo” (p. 94).
“… decerto que esse era o meu destino – e do destino não se foge, como se sabe” (p. 102).
“É claro que em tudo está a vontade divina; é verdade que isso deve ser necessariamente assim, isto é, a vontade divina deve necessariamente estar nisso; assim como é claro que a Providência do Criador Celeste é bendita e insondável e os destinos também, eles também são a mesma coisa” (p. 161).
Estas palavras ilustram o pensamento dos pobres sobre a vida. Por que pensam dessa forma? A política tem algo a dizer sobre isto, ou trata-se apenas de uma questão de sorte ou azar dos indivíduos? A injustiça social expressa na vida dos personagens tem caráter político? À sua maneira, fazem política. O dia-a-dia e os “pequenos gestos”, a necessidade de manter as aparência expressam significados políticos? O que é ser cidadão naquele contexto?

O Estado, isto é, a política institucional, aparece nos interstícios da narrativa. Por mais que o autor concentre-se nos personagens, eles não estão “soltos no ar”. Quem é este senhor, esta moça que se correspondem? O que eles expressam na Petersburgo do século XIX? Quais as características desta cidade e da Rússia em que vivem, ou seja, o chão social e político que permitem sua existência – e tornam possível uma obra como esta? Quais os valores morais, religiosos, etc. presentes? É possível apreendê-los e relacioná-los com a política?

Em suma, o que dá sentido à vida dos pobres? No fundo, a obra se resume a isto! Portanto, ainda que o leitor não tenha o intento da reflexão política-sociológica, terá uma experiência ímpar sobre o humano, demasiado humano. A sua sensibilidade, se desabrochada, será fortalecida e muito provavelmente tornar-se-á mais humano, confirmando as palavras do personagem dostoievskiano, Makar Diévuchkin:
“A literatura é uma coisa muito boa, Várienka, muito boa; disso me inteirei anteontem através deles. É algo profundo! É algo que edifica e fortalece o coração das pessoas (…). A literatura é um quadro, ou seja, em certo sentido um quadro e um espelho; é a expressão da paixão, uma crítica tão fina, um ensinamento edificante e um documento” (p. 74).
* Posfácio, p. 178-179. In: DOSTOIÉVSKI, F. Gente Pobre. São Paulo: Editora 34, 2009. Todas as citações são da obra!
---------------------
*  Professor do Departamento de Ciências Sociais, Universidade Estadual de Maringá (UEM); Editor da Revista Espaço Acadêmico e Revista Urutágua
Fonte:  http://antoniozai.wordpress.com/2014/04/12/literatura-politica-gente-pobre-de-dostoievski/

Nenhum comentário:

Postar um comentário