Reinaldo José Lopes
Antes de ir direto ao ponto, um padrão que notei nos comentários ao
primeiro post foi o de muitas pessoas citando os paralelos entre Jesus e
figuras míticas divinas que morrem e ressuscitam. Beleza. No entanto,
como deixei abundantemente claro no texto anterior, o objetivo aqui não é
debater a historicidade dos fatos milagrosos relatados sobre Jesus nos
Evangelhos, mas apenas e tão somente estabelecer um esqueleto de fatos
que nos permita avaliar a probabilidade de ele ter existido como ser
humano normal. Questões sobre fatos sobrenaturais são questões
teológicas e filosóficas, não históricas. Então, esses paralelos com
outras deidades antigas NÃO VÊM AO CASO. Podem, de fato, ter sido
acrescidos tardiamente à figura de Jesus. A questão aqui é apenas
determinar se havia uma figura histórica original que poderia ter
servido de “ímã” para essas ideias religiosas que circulavam havia
milênios no Oriente Próximo. Beleza? Avante, então.
O objetivo do post de hoje é examinar a principal fonte judaica do
século 1º d.C. que menciona Jesus (só pra esclarecer, fonte judaica não
cristã, claro; é provável que uns 90% do Novo Testamento tenha sido
escrito por cristãos de origem judaica). Estamos falando de José ben
Matias, mais conhecido por seu nome romano, Tito Flávio Josefo (37
d.C.-100 d.C.).
Sei que não é muito cristão da minha parte, mas pra mim é difícil não
pensar em Josefo como uma figura sebosa. Descendente da aristocracia
sacerdotal de Jerusalém, ele acabou sendo escolhido como líder das
forças judaicas na Galileia durante a grande revolta de seu povo contra
os romanos (que foi de 66 d.C. a 73 d.C.). Encurralado com um punhado de
seus homens pelas forças do general Vespasiano em Yodfat (Jotapata),
ele sugeriu um pacto suicida para que os soldados judeus não caíssem nas
mãos dos romanos — mas deu um jeito de ser o único sobrevivente.
Afirmou então ter tido uma visão divina de que Vespasiano seria o
próximo imperador de Roma e, ao comunicar isso ao general, caiu nas
graças do romano, ajudando as legiões como negociador no decorrer da
luta. Vespasiano de fato assumiu o controle do Império e recompensou
Josefo com a cidadania romana, uma pensão e tempo livre para escrever, o
que ele fez abundantemente em suas duas principais obras, “Antiguidades
Judaicas” e “A Guerra dos Judeus”. A primeira obra foi escrita por
volta do ano 90 — mais ou menos na época do Evangelho de João, ou mesmo
do Evangelho de Lucas.
Pois bem: nos manuscritos em grego (Josefo escrevia em grego) que
chegaram até nós há duas menções a Jesus, além de outra a João Batista,
em “Antiguidades Judaicas”. Vamos começar com a mais curta, pra
facilitar e também porque raramente houve dúvidas sobre sua
autenticidade, até porque ela dá pouco pano pra manga.
Nessa parte da obra, Josefo está relatando o que aconteceu em 62
d.C., quando assume o poder em Jerusalém o sumo sacerdote Hananias, o
Jovem. Como tantos políticos daquela e desta época, ele aproveita o novo
poder pra acertar as contas com alguns desafetos, convocando seus
cupinchas do Sinédrio (o “Senado” judaico da época) pra condenar seus
inimigos sem a anuência do governador romano.
“Sendo portanto esse tipo de pessoa, Hananias, pensando ter uma
oportunidade favorável, pois que Festo havia morrido e Albino ainda
estava a caminho [ou seja, os governadores romanos estavam na fase de
"troca de guarda" na Judeia], convocou uma assembleia de juízes e
colocou diante dela o irmão de Jesus, o chamado Cristo, de nome Tiago.
Acusou-os de terem transgredido a lei e os entregou para serem
apedrejados.”
(A propósito, a tradução é do especialista americano John P. Meier,
autor da monumental obra em quatro volumes, e ainda inacabada, “Um Judeu
Marginal”, sobre o Jesus histórico. Quem quiser conferir essa discussão
com muuuuito mais detalhes fará bem em conferir o primeiro volume da
obra.)
Só pra deixar bem bonitinho e explicado, a frase em grego usada por
Josefo é “ton adelphon Iesou tou legomenou Christou” — a gramática grega
deixa claro que “legomenou”, ou seja, “chamado”, se refere a Jesus, e
não a Tiago.
Note que o tom do texto é absolutamente neutro, em especial graças ao
particípio grego que eu acabei de detalhar acima. Note ainda que um
irmão de Jesus (ou primo, para os católicos) chamado Tiago era uma
figura importantíssima na comunidade cristã de Jerusalém na época em que
Paulo estava escrevendo suas cartas. Finalmente, os relatos sobre a
morte desse Tiago que existem na obra de um cristão do século 2º,
Hegesipo, são parecidos, mas não idênticos, ao desse breve comentário de
Josefo. Tudo isso leva a esmagadora maioria dos historiadores a avaliar
que ao menos essa passagem de Josefo é autêntica e representa uma
menção extra-Evangelhos a Jesus.
CORROMPIDO, MAS NÃO TOTALMENTE
Agora é que o bicho pega, mui gentil leitor. O que você diria desta
passagem de Josefo, anterior, no texto, à que vimos agora há pouco? Pra
ajudar, vou destacar em negrito as coisas mais estranhas.
“Por esse tempo apareceu Jesus, um homem sábio — se na verdade se pode chamá-lo de homem.
Pois ele foi o autor de feitos surpreendentes, um mestre de pessoas que
recebem a verdade com prazer. E ele ganhou seguidores tanto entre muito
judeus quanto entre muitos de origem grega. Ele era o Cristo.
E quando Pilatos, por causa de uma acusação feita por nossos homens
mais proeminentes, condenou-o à cruz, aqueles que o haviam amado antes
não deixaram de amá-lo. Pois ele lhes apareceu no terceiro dia,
novamente vivo, exatamente como os profetas divinos haviam falado deste e
de incontáveis outros fatos assombrosos sobre ele. E até hoje a tribo dos cristãos, que deve esse nome a ele, não desapareceu.”
Oooops. É indiscutível que tem alguma coisa errada com esse trecho,
ao menos da maneira como o lemos acima. Josefo não era cristão e, como
vimos na primeira passagem, no máximo diz que Jesus era o “chamado”
Cristo. Está claro que copistas cristãos andaram fazendo das suas com o
texto do historiador judeu. A questão, porém, é saber se eles inventaram
a passagem do zero ou se modificaram uma passagem que já existia.
Bem, de novo, a esmagadora maioria dos historiadores coloca suas
fichas na probabilidade de que o texto original de Josefo continha, sim,
uma passagem sobre Jesus, que foi adulterada — algo porcamente — por
copistas cristãos. A questão é saber como reconstruir a passagem
original. Qualquer exercício desse tipo é hipotético, mas veja, de
qualquer modo, como ficaria o texto sem os negritos acima, na
reconstrução de John P. Meier:
“Por esse tempo apareceu Jesus, um homem sábio. Pois ele foi o autor
de feitos surpreendentes, um mestre de pessoas que recebem a verdade com
prazer. E ele ganhou seguidores tanto entre muito judeus quanto entre
muitos de origem grega. E quando Pilatos, por causa de uma acusação
feita por nossos homens mais proeminentes, condenou-o à cruz, aqueles
que o haviam amado antes não deixaram de amá-lo. E até hoje a tribo dos
cristãos, que deve esse nome a ele, não desapareceu.”
Pode parecer que eu tirei um coelho da cartola com esse parágrafo
“pós-cirurgia plástica”, mas há boas razões para acreditar que uma coisa
desse tipo era a versão original de Josefo. Primeiro, veja como o texto
flui muito melhor sem as partes em negrito. O que o(s) copista(s)
cristão(s) fizeram foi adicionar apartes que interrompem o raciocínio do
texto e que, além de não casar com a teologia judaica de Josefo,
truncam totalmente os parágrafos.
Além disso, um dos grandes aliados das pessoas que estudam textos
antigos hoje em dia é o mapeamento computacional do vocabulário e da
sintaxe dos autores antigos. O computador simplesmente conta
pra você quantas vezes fulano utiliza a palavra tal ou a conjugação tal
do verbo em grego. Ora, ocorre que as passagens em negrito, do ponto de
vista comparativo, têm muito mais pontos em comum com o vocabulário do
Novo Testamento (não diga!) do que com o vocabulário de Josefo. Por
outro lado, sem os “enxertos”, a segunda versão do texto que eu coloquei
aqui bate de forma muito mais confortável com o resto da obra de
Josefo. As coisas parecem começar a fazer mais sentido.
Alguns outros detalhes importantes: se a ideia é defender que a
passagem inteirinha foi forjada, é difícil explicar porque um copista
cristão se daria ao trabalho de falar das previsões dos profetas e da
ressurreição no terceiro dia, mas esqueceria um detalhe óbvio: Jesus, em
todos os Evangelhos, só prega para judeus. Essa coisa de “ganhou
seguidores tanto entre muito judeus quanto entre muitos de origem grega”
não faz sentido — a não ser quando consideramos que Josefo está
escrevendo num momento em que já há muitos cristãos não judeus e está
simplesmente “retrojetando” essa situação para a época da vida de Jesus.
Ademais, por que cargas d’água um cristão iria chamar a si e aos seus
de “tribo” (“phylon”), um termo que em grego tem uma conotação clara de
ascendência racial comum? E por que não explicaria a razão para a
condenação de Jesus por Pilatos, abundantemente explorada nos Evangelhos
(a de se proclamar Messias/Cristo)?
É isso. O resumo da ópera, para quem conseguiu chegar até aqui:
- Há pelo menos uma menção a Jesus numa fonte judaica não cristã do
século 1º d.C. Essa fonte diz que ele era chamado “o Cristo” e menciona a
morte de um “irmão” dele conhecido do Novo Testamento;
- É provável que essa mesma fonte tenha ainda mais informações sobre
Jesus — o fato de ele ser um mestre, de atrair seguidores, de ser
perseguido pelas autoridades judaicas e de ser sentenciado por Pilatos
–, embora o texto original tenha sido corrompido por copistas cristãos.
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* Reinaldo José Lopes é jornalista de ciência e autor do livro Além de Darwin
Fonte: Folha online, 15/04/2014
imagem da Internet
desculpaí Reinaldo, mas Flávio Josefo é uma péssima fonte. Afinal, especialistas detectaram uma inserção e uma piedosa fraude cometido pelos padres. As poucas citações de Flavio Josefo a respeito de Cristo fala-se mais do título [que podia ser qualquer pessoa, considerando que haviam diversos "Cristos" na época] do que da pessoa Yheshua ben Ioseph. há também uma falha terrível quanto ao título de Cristo, que não se encaixa no conceito de Ha-Masiah, mas isso é outro assunto.
ResponderExcluirParabenizo pelo trabalho bem feito , e com pitadas de um humor bem refinado ,Reinaldo . Sou um pesquisador do tema e como disse Bart Erhmans e voce tbm o disse : a maioria dos acadêmicos seguem convicto que Josefo de fato mencionou Jesus . Erhmans , aposta ate que Josefo tenha dito de fato e com todas as letras que Jesus era o cristo . Uma vez que Josefo ficou conhecido entre seu povo como um inimigo do judaismo e dos judeus por fatos tbm mencionados por vc aqui .
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