Jung Mo Sung*
No
artigo anterior,
ao falar do capitalcentrismo, apresentei a tese do papa Francisco de que
devemos reestabelecer a primazia do ser humano frente ao ídolo-dinheiro. Quando
denominamos algo como ídolo, estamos dizendo que o que é tratado como absoluto
e sagrado, portanto divino, – mesmo que não se use linguagem explicitamente
religiosa no sentido tradicional– não é. Mas, para as pessoas que acreditam no
caráter sagrado desse "ser” (que pode ser algo concreto, uma ideia ou um
sistema com seus mecanismos invisíveis afetando a vida de todos), ele é! Como
disse Marx, nas sua juventude, "todos os
deuses são verdadeiros para quem neles acredita”.
Isso significa que consideramos o(s)
nosso(s) deus(es) como verdadeiro(s), e os de outros como falso(s) ou como
ídolo(s); assim como os outros consideram o seu deus o verdadeiro, e o nosso
falso. O conhecimento da variedade das religiões e pluralidade dos deuses (ou,
se preferir, de imagens de deuses) no mundo de hoje criou uma situação em que
não se pode simplesmente afirmar que o meu é o único verdadeiro e utilizar a
minha/nossa visão de deus para desqualificar a de outros. Assim também, não se
pode dizer que todos os deuses são verdadeiros para todos. Afinal, há, de fato,
imagens de deus que são contraditórias ou conflitantes (por ex, um deus que
abençoa "guerra santa” é diferente de um deus que abomina todas as guerras).
Aliás, encontramos imagens contraditórias
sobre deus dentro de uma mesma religião. Tomemos, como exemplo, o cristianismo.
Por ex, a Inquisição perseguiu muitos cristãos em nome de Jesus Cristo; assim
como ditaduras militares da América
Latina usaram o nome de Deus cristão ou de Jesus Cristo para justificar suas
guerras sujas e torturas. Provavelmente muitos dos que atuaram em prol da
ditadura mataram e torturaram crendo que estava servindo seu deus. Quando
alguém mata em nome de deus, assassina com devoção e sentimento de missão, sem
problema de consciência. Foi enfrentando essa situação em El Salvador que Dom
Romero usou o conceito de idolatria para compreender o "mal sem limite” da
guerra suja contra o povo.
Vimos no segundo
artigo desta série que o mundo moderno criou uma nova ideia
de religião que a separou da esfera secular ou pública e a reduziu ao mundo
privado e à preocupação com a salvação eterna após a morte. Com isso, a
religião tradicional deixou de ser o fundamento último da ordem social e o
provedor do valor absoluto para a vida na sociedade. No capitalismo, essas
funções foram assumidas pelo próprio capitalismo e fez do poder do dinheiro o
valor e critério absoluto. Por isso, o papa fala da idolatria do dinheiro e da
sacralização do mercado em detrimento do ser humano.
Quem crê em e se sente fascinado pelo
"poder do dinheiro” não tem dúvida que realmente não há "salvação”, vida em
plenitude, fora desse poder. Assim, esse "poder do dinheiro” se torna objeto de
desejo infinito e, ao mesmo tempo, sacramento do infinito no interior da vida
cotidiana. É por isso que bilionários não se satisfazem com poucos bilhões de
dólares e buscam cada vez mais. E os não ricos que também foram seduzidos pelo
"poder do dinheiro”, pelo espírito do Capital, admiram, com inveja, esses
abençoados e desejam subir "na vida” para ficarem mais próximos dessa fonte de
poder e fascinação.
Para recuperar a primazia do ser humano
sobre o deus-dinheiro é necessário primeiro desmascarar esse deus e mostrar que
não passa de um ídolo. Mas para isso, é preciso romper com a imagem tradicional
de deus associado ao poder. Se Deus é apresentado acima de tudo como
"todo-poderoso”, as pessoas procurarão a manifestação desse deus onde há poder
que fascina. E não há no nosso mundo um poder fascinante maior do que o poder
do dinheiro. E se poder do dinheiro é manifestação da benção ou presença
divina, os vitoriosos detentores dessa riqueza são justos e abençoados por deus
(ou pelas leis do mercado sacralizado).
Essa tentação de associar deus com poder e
riqueza não é exclusiva do capitalismo. As catedrais magníficas e ricas em ouro
e/ou outros materiais caros são também uma expressão disso.
O evangelho anuncia um Deus completamente
distinto dessa lógica, um Deus-Amor que não pede sacrifício e tem compaixão dos
pobres e vítimas das opressões. E a expressão máxima dessa fé que ultrapassa o
"bom senso religioso” é a fé de que Deus estava na cruz com e em Jesus, que o
justo foi brutalmente condenado.
Somente um Deus assim pode nos ajudar a
reestabelecer a primazia do ser humano concreto – corpóreo, de relações sociais
e com a natureza– sobre o ídolo-dinheiro. (a continuar)
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* Teólogo. Autor
de "Sujeito e sociedades complexas: para repensar horizontes utópicos”, Ed.
Vozes. Twitter: @jungmosung)
Fonte: Adital
Imagem da internet
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