Edu Almeida*
Vira e mexe ouvimos falar de mundo plural, sociedade conectada,
diminuição de distâncias, reformulação do tempo e das relações
interpessoais. As gerações recentes estão mais interessadas numa
oportunidade de futuro imediato, tecnológico em especial, do que em
sustentar tradições. São ávidas pelo novo. Nem certa nem errada, essa
característica tem pontos positivos e negativos, e aos poucos uma
espécie de equilíbrio oscilante se põe em operação. O desafio consiste
em fluir/fruir com eles sem efetuar uma “divisão policial do sensível”
(Jacques Rancière).
Um daqueles pontos, que acredito ser positivo, é a desformação do “especialismo”, levado a extremos tão afunilados que resultou em pessoas aptas a exercer uma tarefa específica, excludente e limitada. Em outras palavras, forma-se profissionais embrutecidos por uma lógica de dominação do assunto, desejando se tornarem singulares. Com efeitos colaterais: o médico especialista em ortopedia que não reconhece um problema de pele; o técnico especialista que se torna desnecessário quando um software passa a executar seu trabalho, abandonando-o sem possibilidade de adaptação. Um foco tão acurado, tão aproximado, que impede a visão do redor — quem dirá do universo!
No contemporâneo, essa lógica se esfacela. E para pensar a respeito gosto de me apoiar no que Ricardo Basbaum chama de “artista-etc.”. A proposta pode ser ampliada a toda atividade profissional, campo do saber ou prática cotidiana; não deve ficar restrita à arte. As “pessoas-etc.”. são aquelas que não se moldam facilmente em categorias, e por isso não devem ser rotuladas, com risco de diminuí-las, de não fazer jus às suas qualidades. É da multiplicidade — e na multiplicidade — que sobrevivem, conectam-se, produzem. Em vez de fadadas a uma especialidade, elas estão abertas a experiências diversas, que atravessam territórios nem sempre bem relacionados. Irrompem não-lugares, expressam-se a partir da fronteira, das tensões e das ambiguidades da interface.
Um exemplo prático ajuda a esclarecer a ideia: neste semestre, trabalhamos o “etc.” com uma turma de graduação em Terapia Ocupacional da USP. Além de aprender o que o terapeuta sabe e fazer o que o terapeuta faz, propomos que eles se permitam agregar outras funções, não necessariamente úteis. Que se expandam na direção da vida comum em vez de entalarem num gargalo da carreira.
Que se façam terapeutas-enfermeiros, terapeutas-artesãos, terapeutas-esportistas, terapeutas-amigos, terapeutas-gestores, terapeutas-cozinheiros, terapeutas-etc. Tudo ao mesmo tempo, tudo misturado. Por quê? Para lidarem com situações da prática terapêutica com desenvoltura, criatividade e atitude transformadora. Para que o conhecimento não fique restrito àquele da própria área, sustentando a mesma lógica, resistindo às demandas inéditas sem qualquer argumento senão o do tradicionalismo per si. E também para que se permitam experimentar, simplesmente, sem a sombra do sentido, da explicação racional, da justificativa exigida, da neurose de ter, na ponta da língua, o “para quê serve”, o “para quê sirvo”.
Terapeuta-inventor, engenheiro-filósofo, fotógrafo-arquiteto, advogado-músico, químico-místico, jornalista-cavaleiro, matemático-escritor, médico-mecânico, publicitário-cineasta. E assim por diante. Esses profissionais ampliam suas redes, adaptam-se com maior facilidade às situações impostas, desmancham fronteiras, deparam-se frequentemente com o novo, provocam, surpreendem, reinventam modos de ser, de agir e de pensar.
Como formar esse tipo de pessoa? É uma questão importante. Porque elas não se formam — no sentido iluminista de “dar forma”, que adota como fundamento a perfectibilidade do espírito, a unidade do gênero humano, a universalidade dos valores e o aprimoramento infinito do homem e do mundo (Celso Favaretto), numa espécie de escala/escola evolutiva. Não se pressupõe uma forma final, um acabamento, como se a educação pudesse ter uma finalidade esclarecida e pré-determinada.
Não se ensina ninguém a ser “etc.”, muito menos se especifica que múltiplo o constituirá. O desafio está, justamente, em não impor um sistema, mas desformá-lo, desenformá-lo, destituí-lo. Ao invés de ensinar o pré-formulado — a doutrina —, a proposta é oferecer condições para que cada pessoa encontre sua aptidão, desenvolva suas conexões, alargue seus limites na direção que achar conveniente, sem receio de errar. Trata-se de provocar a construção de um pensamento crítico. “Um modo de problematização que não procede por efeitos de ultrapassamento, de superação e nem de progresso, mas antes, de reativação da atitude crítica do permanente da atualidade” (Favaretto).
Fazemos isso multiplicando linguagens. Porque o terapeuta sabe que a razão não dá conta do humano. Existem muitas camadas embaixo dela que operam num regime de sensibilidade. Pois é incentivando esse sensível, apreendendo linguagens e criticando o redor que se pode desenvolver uma atitude condizente com o contemporâneo.
Tal desenvolvimento exige dedicação, acolhida e nutrição — precisa ser cuidado com carinho para que seu potencial esteja livre. Um tipo de curadoria — no lugar da disciplina, que é um termo importuno, principalmente quando associado à educação. É preferível o descaminho, a destituição, o desfazimento. O dissenso no lugar do ensino moralista, pautado na transmissão de valores.
Aquilo que está soterrado pela lógica embrutecedora aos poucos emerge na busca por emancipação (Rancière). E é como lugar de agenciamento que a arte pode contribuir.
Não sei dizer até que ponto os especialistas continuarão operando. Posso afirmar apenas que, no contemporâneo, é para os “etc.” que devemos olhar. Tudo o que de mais interessante está por vir tende a brotar dali.
Um daqueles pontos, que acredito ser positivo, é a desformação do “especialismo”, levado a extremos tão afunilados que resultou em pessoas aptas a exercer uma tarefa específica, excludente e limitada. Em outras palavras, forma-se profissionais embrutecidos por uma lógica de dominação do assunto, desejando se tornarem singulares. Com efeitos colaterais: o médico especialista em ortopedia que não reconhece um problema de pele; o técnico especialista que se torna desnecessário quando um software passa a executar seu trabalho, abandonando-o sem possibilidade de adaptação. Um foco tão acurado, tão aproximado, que impede a visão do redor — quem dirá do universo!
No contemporâneo, essa lógica se esfacela. E para pensar a respeito gosto de me apoiar no que Ricardo Basbaum chama de “artista-etc.”. A proposta pode ser ampliada a toda atividade profissional, campo do saber ou prática cotidiana; não deve ficar restrita à arte. As “pessoas-etc.”. são aquelas que não se moldam facilmente em categorias, e por isso não devem ser rotuladas, com risco de diminuí-las, de não fazer jus às suas qualidades. É da multiplicidade — e na multiplicidade — que sobrevivem, conectam-se, produzem. Em vez de fadadas a uma especialidade, elas estão abertas a experiências diversas, que atravessam territórios nem sempre bem relacionados. Irrompem não-lugares, expressam-se a partir da fronteira, das tensões e das ambiguidades da interface.
Um exemplo prático ajuda a esclarecer a ideia: neste semestre, trabalhamos o “etc.” com uma turma de graduação em Terapia Ocupacional da USP. Além de aprender o que o terapeuta sabe e fazer o que o terapeuta faz, propomos que eles se permitam agregar outras funções, não necessariamente úteis. Que se expandam na direção da vida comum em vez de entalarem num gargalo da carreira.
Que se façam terapeutas-enfermeiros, terapeutas-artesãos, terapeutas-esportistas, terapeutas-amigos, terapeutas-gestores, terapeutas-cozinheiros, terapeutas-etc. Tudo ao mesmo tempo, tudo misturado. Por quê? Para lidarem com situações da prática terapêutica com desenvoltura, criatividade e atitude transformadora. Para que o conhecimento não fique restrito àquele da própria área, sustentando a mesma lógica, resistindo às demandas inéditas sem qualquer argumento senão o do tradicionalismo per si. E também para que se permitam experimentar, simplesmente, sem a sombra do sentido, da explicação racional, da justificativa exigida, da neurose de ter, na ponta da língua, o “para quê serve”, o “para quê sirvo”.
Terapeuta-inventor, engenheiro-filósofo, fotógrafo-arquiteto, advogado-músico, químico-místico, jornalista-cavaleiro, matemático-escritor, médico-mecânico, publicitário-cineasta. E assim por diante. Esses profissionais ampliam suas redes, adaptam-se com maior facilidade às situações impostas, desmancham fronteiras, deparam-se frequentemente com o novo, provocam, surpreendem, reinventam modos de ser, de agir e de pensar.
Como formar esse tipo de pessoa? É uma questão importante. Porque elas não se formam — no sentido iluminista de “dar forma”, que adota como fundamento a perfectibilidade do espírito, a unidade do gênero humano, a universalidade dos valores e o aprimoramento infinito do homem e do mundo (Celso Favaretto), numa espécie de escala/escola evolutiva. Não se pressupõe uma forma final, um acabamento, como se a educação pudesse ter uma finalidade esclarecida e pré-determinada.
Não se ensina ninguém a ser “etc.”, muito menos se especifica que múltiplo o constituirá. O desafio está, justamente, em não impor um sistema, mas desformá-lo, desenformá-lo, destituí-lo. Ao invés de ensinar o pré-formulado — a doutrina —, a proposta é oferecer condições para que cada pessoa encontre sua aptidão, desenvolva suas conexões, alargue seus limites na direção que achar conveniente, sem receio de errar. Trata-se de provocar a construção de um pensamento crítico. “Um modo de problematização que não procede por efeitos de ultrapassamento, de superação e nem de progresso, mas antes, de reativação da atitude crítica do permanente da atualidade” (Favaretto).
Fazemos isso multiplicando linguagens. Porque o terapeuta sabe que a razão não dá conta do humano. Existem muitas camadas embaixo dela que operam num regime de sensibilidade. Pois é incentivando esse sensível, apreendendo linguagens e criticando o redor que se pode desenvolver uma atitude condizente com o contemporâneo.
Tal desenvolvimento exige dedicação, acolhida e nutrição — precisa ser cuidado com carinho para que seu potencial esteja livre. Um tipo de curadoria — no lugar da disciplina, que é um termo importuno, principalmente quando associado à educação. É preferível o descaminho, a destituição, o desfazimento. O dissenso no lugar do ensino moralista, pautado na transmissão de valores.
Aquilo que está soterrado pela lógica embrutecedora aos poucos emerge na busca por emancipação (Rancière). E é como lugar de agenciamento que a arte pode contribuir.
Não sei dizer até que ponto os especialistas continuarão operando. Posso afirmar apenas que, no contemporâneo, é para os “etc.” que devemos olhar. Tudo o que de mais interessante está por vir tende a brotar dali.
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* Edu Almeida, é publicitário, crítico e historiador da arte. Escreve ficções, pinta e gosta de fotografia. Email: edualmeida@artefazparte.com Fonte: Correio Popular online, Acesso 13/04/2014
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