Confira uma das últimas entrevistas do sociólogo Ernesto Laclau, um dos
teóricos do modelo político que dominou a América Latina no século XX,
morto no domingo 13
Ernesto Laclau costumava ser apresentado pela imprensa argentina como
o “intelectual do Kirchnerismo”. Embora reducionista, a definição não
chega a ser uma inverdade. Um dos principais teóricos do populismo, o
sociólogo e filósofo argentino sempre defendeu o projeto político de
Nestór e Cristina Kirchner, assim como de outros governos
latino-americanos de vocação nacional-popular. Mas tal definição quase
sempre vinha acompanhada de outras em tom irônico – “el pensador
favorito de la Presidenta”, que escrevia sobre a América Latina de seu
sofá em Londres, eram as mais frequentes.
Laclau não parecia se incomodar com as críticas ao seu apoio ao
kirchnerismo. Quando questionado sobre a suposta relação próxima com
Cristina, ele garantiu ser um disparate – e contou a Carta Capital
uma história que responde às ironias na mesma moeda. “Já falaram de
tudo sobre isso. Quando Kirchner ainda estava vivo, disseram até que
tinham me chamado à Casa Rosada para dar aulas de oratória para eles”,
lembrou. O motivo do mal entendido foi uma brincadeira feita por
Cristina de que ele deveria ir até a Casa Rosada explicar ao casal do
que se tratava sua complexa teoria do discurso – área de estudo que
criou na Universidade de Essex junto com a mulher, a cientista política
belga Chantal Mouffe.
Um dos mais respeitados teóricos políticos da atualidade, Ernesto
Laclau morreu na manhã de domingo 13, vítima de um infarto, aos 78 anos.
Estava em Sevilha, na Espanha, onde participava de uma conferência com
Chantal, com quem compartilhava também a mesma formação socialista e
gramsciana. Junto com ela, escreveu um de seus trabalhos mais famosos Hegemony and Socialist Strategy (1985), referência na teoria política pós-marxista. Entre seus livros mais recentes publicados no Brasil está A Razão Populista
(Três Estrelas, 2013), lançado em inglês em 2005. Há 45 anos vivendo na
Inglaterra, o sociólogo era atualmente professor emérito de teoria
política na Universidade de Essex, mesma universidade onde dirigiu o
programa Ideologia e Análises do Discurso. Em uma de suas últimas
entrevistas, concedida a CartaCapital em 22 de fevereiro, em sua
casa, no norte de Londres, ele lamentou a morte de um de seus maiores
amigos naquele mesmo mês – o jamaicano também radicado na Inglaterra
Stuart Hall, um dos fundadores da área de Estudos Culturais. “Ele era um
grande admirador da América Latina, costumava dizer que tínhamos que
latino-americanizar a Europa”, contou.
A conversa durou pouco menos de uma hora – a segunda parte seria
feita por telefone, o que acabou não acontecendo. Naquela tarde de
sábado, mesmo dia em que o presidente ucraniano Viktor Yanukovich seria
deposto, ele analisou a atual onda de manifestações com certa
desconfiança. “As mobilizações populares são apenas metade do quadro,
sem uma força política, essas mobilizações tendem a não se desenvolver
muito”, comentou. A crítica aos protestos se referia também ao contexto
venezuelano. Defensor do chavismo, Laclau enxergava nas manifestações
uma clara tentativa de desestabilizar o já instável governo de Maduro.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista concedida pelo
pensador argentino, em seu “sofá londrino”, quase dois meses antes de
sua morte:
CartaCapital: Seu livro On Populist Reason (A Razão Populista) foi
lançado em 2005, ano em que importantes países latino-americanos eram
governados por líderes com fortes características populistas. Quase dez
anos depois, como o senhor analisa esse momento?
Ernesto Laclau: Quando falamos de um governo popular
na América Latina temos de ver que a nossa tradição de democracia foi
muito diferente da tradição europeia, onde no século XIX só havia dois
termos: liberalismo e democracia. O primeiro era uma forma muito
respeitável de organização do Estado, que existia na França e na
Inglaterra, por exemplo, enquanto democracia era um termo pejorativo,
como o populismo é hoje. Já na América Latina essa integração de
liberalismo e democracia nunca aconteceu da mesma forma. Enquanto na
Europa o liberalismo foi associado ao Terceiro Estado, contra a
monarquia absolutista, na América Latina o Estado liberal não era nada
democrático. No caso do Brasil, por exemplo, o regime da República Velha
era impecavelmente liberal, mas nem um pouco democrático. E o
desenvolvimento de uma nova consciência de setores excluídos da
população no começo do século XX se expressou de uma forma não-liberal: a
Coluna Prestes, a Revolução de 1930, e, finalmente, o Estado Novo. Esse
processo, que resultou no fortalecimento da autoridade do Poder
Executivo, mostra como as massas foram excluídas do jogo parlamentar por
décadas e décadas. A Argentina teve um processo parecido, com o
peronismo, e a emergência da vontade das massas, enquanto o liberalismo
era um componente muito pequeno da experiência peronista. Há uma
dualidade em relação à experiência das massas na América Latina. De um
lado, a tradição liberal-democrática, de outro o nacional-popular. O
primeiro tenta produzir uma democratização interna do Estado liberal -
Rui Barbosa, no Brasil, é um exemplo. De outro lado, houve a tradição
nacional-popular, que dominou a maior parte dos países latino-americanos
nos anos 1920, 1930 e 1940. Hoje, pela primeira vez, há uma confluência
do respeito às normas liberais do Estado e a prevalência da tradição
nacional-popular. Esses dois sistemas não são mais tão separados como
antes, na primeira fase do populismo. Neste segunda fase as coisas são
diferentes, e provavelmente vão continuar muito diferentes da democracia
europeia, no sentido de que a figura do presidente, o poder
democrático, é o poder executivo. Se pensarmos em Chávez, em Lula, em
Kirchner, em Evo Morales, em todos esses exemplos há uma tradição
nacional-popular, mas que respeita os princípios do estado liberal.
CC: A Venezuela vem passando por uma situação
política delicada nos últimos meses. Como o senhor analisa esse momento
de transição e instabilidade no país?
EL: Claro que a morte de Chávez representou um
grande golpe para o projeto nacional-popular na Venezuela, e as forças
da oposição tentaram tirar vantagem de toda essa instabilidade gerada.
Eles estão tentando que essa transição não aconteça. Se pensarmos nas
campanhas de figuras como Leopoldo López, está claro que ele representa
uma tendência golpista. Ele não está querendo ganhar a eleição, mas
desestabilizar o governo. E essa tem sido uma tendência da oposição na
Venezuela. A questão é se esses protestos vão desestabilizar sem afetar a
base do sistema, ou se vão avançar em uma direção em que a base não
poderá ser mantida. Se isso acontecer, será um rompimento radical com o
projeto do chavismo. Mas, até agora, o que parece é que essas
mobilizações não serão capazes de desestabilizar o sistema a esse ponto.
Este é um momento de uma típica guerra de posição, no sentido
gramsciniano, em que há um processo molecular acontecendo na sociedade –
é preciso esperar um pouco para ver como eles vão se cristalizar.
CC: O senhor tem acompanhado os protestos na
Ucrânia? Qual sua opinião sobre esta e outras mobilizações populares
espalhadas por diversos países nos últimos anos?
EL: A formação das alternativas populares tem duas
dimensões: a da autonomia e a da hegemonia. A primeira seria a
mobilização de setores excluídos da esfera pública para serem
incorporados a ela, como aconteceu no caso dos piqueteros na crise
econômica da Argentina, em 2001. O que foi inteligente do Kirchner foi
criar canais de comunicação com esses grupos. Essa é a dimensão da
autonomia. Já a dimensão da hegemonia envolve a transformação dos
aparatos do Estado. Se um grupo confia exclusivamente na dimensão da
autonomia, o Estado permanece inalterado, e a mobilização tende a
desaparecer. Isso aconteceu com os Indignados, na Espanha. Era um grande
movimento social, mas eles não tinham objetivos políticos claros e por
isso perderam a força. Por outro lado, se você confiar totalmente na
transformação burocrática, a dimensão da hegemonia, sem a dimensão da
autonomia, você terá governos burocráticos e sem capacidade de promover
perspectivas de mudanças. No caso de Kiev, esta parece uma mobilização
popular bem-sucedida pelo fato de ter atingido o aparato do Estado. A
questão é o que acontece depois. Eu me lembro que, logo após a Primavera
Árabe, as pessoas estavam muito animadas. Acho que devemos sempre
esperar para ver qual vai ser o resultado. As mobilizações populares são
apenas metade do quadro. Elas também podem levar a uma estabilização de
regimes que não serão nem capazes de lidar com o desafio democrático
pela frente, ou não têm interesse em seguir esse objetivo. O que está
acontecendo no Egito é um exemplo. Quatro anos depois das mobilizações
populares, o país ainda é incapaz de estabelecer um regime político
estável.
CC: Nos últimos meses, houve uma forte
desvalorização do peso na Argentina, a maior nos últimos 12 anos. O
senhor não acha que isso demostra uma inabilidade do governo Kirchner em
manter uma estabilidade econômica no país?
EL: A política econômica do governo Cristina e,
anteriormente, de Kirchner, sempre trabalhou no sentido de evitar os
efeitos da crise internacional e manter uma relativa autonomia no
desenvolvimento econômico. Desde a fim da negociação do projeto
neoliberal da Alca, no qual o Brasil teve um papel muito importante, a
prioridade tem sido a de garantir uma certa autonomia do país, de não
aceitar mais pressões de órgãos financeiros internacionais. O objetivo
agora deve ser controlar a inflação, de uma forma ou de outra
[comprometendo o câmbio ou não].
CC: É verdade que o senhor atua como uma espécie de conselheiro político de Cristina Kirchner?
EL: Não, de maneira nenhuma. Já estive com ela
algumas vezes, mas ela nunca me pediu conselhos sobre absolutamente
nada. Já falaram de tudo sobre isso. Uma vez, após um desses encontros,
ela me acompanhou até a porta do seu escritório, e havia alguns
jornalistas do lado de fora. Antes de ir embora, ela me disse
'Precisamos combinar um encontro para você nos explicar do que se trata a
sua teoria do discurso'. No dia seguinte, publicaram que a presidenta
tinha me pedido para lhe dar aulas de oratória (risos).
-----------
Reportagem por Nathalia Lavigne
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/internacional/em-defesa-do-populismo-2515.html/view
Nenhum comentário:
Postar um comentário