J. J. Camargo*
Na ânsia de sermos aceitos, tendemos a imaginar uma constelação de amigos que não são mais que números de fantasia. Muitas vezes, confundimos colegas com amigos e, eventualmente, até os consideramos nossos melhores amigos. Na verdade, a estrada ensina que muitas dessas amizades duram até um dos dois mudar de emprego. Porque amigo não é aquele que festeja contigo. É antes o que se apresenta, sem ser chamado, quando não há o que festejar.
A tendência de confundir parceiros e amigos como se fossem sinônimos é fonte segura de desilusão, porque o parceiro costuma ter a volatilidade de um convívio agradável, mas superficial. Numa mensagem de ano novo, meu mestre Tarantino escreveu: “Que o ano que vai começar confirme como amigos, ao menos alguns dos que te pareceram assim, durante o ano que está terminando”. A sabedoria da vida longeva adverte contra a euforia de descobrir amigos aos borbotões.
No Museu da Harvard há uma sala com nichos reservados aos ex-presidentes americanos formados na universidade. Lendo a trajetória de John Kennedy, encontrei um relato interessante: uma tarde ele se meteu numa briga feia em defesa de seu amigo predileto que se engalfinhara depois de uma discussão feroz com um bando de desafetos antigos.
Em desvantagem numérica, os dois apanharam muito e, depois da sova, quando tentavam se recompor no banheiro, o amigo foi ainda surpreendido com mais um tapa na cara. Quando espantado, questionou: “Por que isto? Enlouqueceste?”. E ouviu: “Porque naquela briga não tinhas razão!”. “Mas, então, por que me defendeste?” “Porque sou teu melhor amigo!” Um amigo, com essa noção de prioridade, todo mundo merecia ter.
Às vezes, os amigos surgem ao acaso e nem lhes damos a solenidade que merecem até que uma circunstância qualquer expõe uma virtude que adora se manter escondida: a fidelidade. Há uns 15 anos, a Maria Emilia foi atropelada e quebrou uma costela. No RX de tórax do Pronto Socorro se descobriu um câncer de pulmão com menos de 2 centímetros. Lembro da cara preta e desconfiada do marido, quando expliquei que aquele tinha sido um atropelamento abençoado, porque, graças ao acaso, ela iria se curar daquele tumor.
Ela foi operada, curou, e ficamos amigos. Nas revisões, eles sempre traziam alguma fruta, retirada da tenda improvisada que ele mantinha na esquina. Como retribuição, muitas vezes nesses anos todos, fui solidário, comprando frutas, ora azedas, ora passadas.
Há cerca de um mês, escolhendo umas laranjas, ouvi que as coisas não estavam bem, agora todo mundo preferindo as frutas do supermercado, e ele nem conseguira comprar o antibiótico para a preta velha, muito encatarrada. Dei R$ 50 para o remédio, o sinal abriu, e fui embora. Na semana passada, ele se aproximou para agradecer e, com uma oferta original, foi absolutamente comovente: “Doutor, o senhor é um homem bom, e eu não quero passar por mal agradecido. A minha especialidade é mais pro lado da bandidagem, por isso, se tiver alguém lhe incomodando, é só me avisar, que um susto grande a gente consegue!”
Ficamos combinados.
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* Médico
Fonte: ZH online, 26/04/2014
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