Paulo Ghiraldelli*
Cioran fala do perigo dos fanáticos. Ponho aqui duas passagens dele, em Breviário da decomposição (Rocco,
2011), primeira: “Sinto-me mais seguro diante de um Pirro do que de um
São Paulo, pela razão de que uma sabedoria de boutades é mais doce do
que uma santidade desenfreada.” Segunda: “A ânsia de tornar-se fonte de acontecimentos
atua sobre cada um como uma desordem mental ou uma maldição
intencional. A sociedade é um inferno de salvadores! O que Diógenes
buscava com sua lanterna era um indiferente.”
Como não ser um militante? Com não ser
um advogado atrevido ao menos de suas próprias ideias? Como não ser
fanático do que se acredita tanto? Cioran cita dois exemplos que, penso
eu, ele devia acreditar que não estavam na linha de serem acusados de
autorrefutação. Pirro, o cético, e Diógenes, o cínico. Todavia, sabemos
bem, os céticos fizeram escola. Diógenes também. Claro que num caso e
outro, são escolas que tentam evitar o fervor, ou o que Cioran chama de
“espírito ardente”. Posso até acreditar que Pirro nunca quis ser, como
filósofo, fonte de acontecimentos. Diógenes também não, ainda que, não
escrevendo nada, tornou sua filosofia uma série de acontecimentos – seu
encontro com Alexandre, sempre citado, mostra isso.
Estaria Cioran falando contra nós,
filósofos que, de uma forma ou de outra, seguimos Sócrates? Teria ele lá
uma pontinha de simpatia por Nietzsche, na disposição deste em fustigar
toda a filosofia canônica? Afinal, sabemos bem, filósofos podem ser
vistos como religiosos travestidos. Amigos e inimigos de Platão, ou
seja, filósofos, sempre tiveram verdades, e Cioran é quem escreve que “o
diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma verdade, a sua verdade”.
Cioran parece não deixar espaço para os
filósofos escaparem de sua avaliação: “Um ser possuído por uma crença e
que não procurasse comunica-la aos outros é um fenômeno estranho à
terra, onde a obsessão da salvação torna a vida irrespirável”. Filósofos
escapariam dessa situação se pudessem fazer como Adorno disse, em um
texto significativamente chamado “Para pós-socráticos”: o filósofo deve
agora falar como que convencendo outro de que está errado. Ou seja, o
filósofo não fala do erro do outro, mas o convence, abrindo espaço para
um enorme paradoxo, de que ele próprio está errado. Parece maluco isso,
mas não faz sentido? Não seria coadunável com Cioran aquele filósofo
que, pela sua própria filosofia, gostaria de probir outros de segui-lo?
Ora, se assim for, Sócrates realmente cumpriu esse desejo de Cioran.
“Sinto-me mais seguro diante de um Pirro do que de um
São Paulo, pela razão de que uma sabedoria de boutades é mais doce do
que uma santidade desenfreada.”
Sócrates disse em seu julgamento que não
ensinava. Disse que alguns tentavam imitá-lo, mas isso por conta deles.
Ora, sabemos bem, Sócrates não fez metafísica. Apenas investigava e
refutava. Não concluía por uma ideia. Nem morreu por uma, como Jesus.
Morreu por falta delas. No entanto, Sócrates tinha uma missão. Ele se
achava devoto do “Deus do templo” (de Apolo). Mas sua missão não era a
reforma moral de Atenas. Ele não estava comunicando uma crença. Ela
estava apenas incomodando a si mesmo, tentando se conhecer, querendo
saber por que o Oráculo havia lhe posto na condição do “mais sábio”.
Pensando assim, Sócrates, na origem da filosofia, já é alguém bem
diferente de tudo que Cioran diz temer – talvez desprezar.
Continuo achando que a filosofia
socrática, para a qual Platão se voltou ao final da vida, talvez até
negando muito do que defendeu em seus escritos do “período
intermediário”, pode ser filosofia, em uma acepção própria de filosofia,
e não precisar se posta entre os objetos aterrorizantes de Cioran.
Aliás, talvez possamos dizer que Sócrates foi o filósofo moral por excellence e, diferentemente do que se imagina de um moralista, ele não foi um não fanático.
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* Filósofo. Escritor.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/cioran-e-o-fanatismo/04/04/2014
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