Ainda hoje o exercício da religiosidade é um desafio para muitos povos. Persistem, em
várias partes do mundo, preconceitos fomentados por posturas de discriminação
com o "religiosamente diferente" e, atitudes como esta, impedem a
sociedade de avançar na construção do ecumenismo
e do diálogo inter-religioso.
Estas são algumas das reflexões de Edward Guimarães, que estará em Fortaleza,
Ceará, de 1 a 4 de maio deste ano para participar do o I Encontro Nacional de Juventudes
e Espiritualidade Libertadora.
O
teólogo acredita que a juventude contemporânea, por estar inserida em um
contexto culturalmente plural e multirreligioso, saberá construir convivências
e interações muito mais bonitas e fecundas que as gerações anteriores. Edward
Guimarães ministrará a oficina de Espiritualidade e Ecumenismo no encontro
nacional que reunirá teólogos de todo os pais e convidados da América Latina,
que está sendo organizado pela Adital e demais parceiros.
Durante
a entrevista , o teólogo respondeu também questionamentos sobre o avanço
político das igrejas, ciências teológicas, ciências da religião, Teologia do
Pluralismo e a relação entre ecumenismo e espiritualidade.
O avanço político de igrejas voltadas para
um discurso moralista e conservador pode influenciar na divisão das comunidades
cristãs, ou faz parte de um processo natural de evolução da religião?
Edward: Por um lado, a religião, como
produto cultural, está presente em todos os âmbitos da vida humana. Não poderia
ser diferente na política. Por outro, atualmente, de fato, de modo visível nos
diversos meios de comunicação, ampliou-se a presença e a tentativa de
influência sociopolítica de representantes de diversas denominações cristãs,
sobretudo, no parlamento brasileiro (Senado, Câmera Federal, Estadual e
Municipal).
Assusta-nos,
neste caso, o cunho tradicionalista, conservador e, muitas vezes, alicerçado em
um fundamentalismo bíblico moralista e anacrônico. Esta presença tem se
caracterizado por posturas polêmicas e/ou unilaterais e, o que é pior, sem
diálogo com a sociedade, bem como sem compromisso com políticas públicas
estruturantes. Além disso, apresenta-se distante dos anseios de dignidade e das
históricas bandeiras levantadas pelos grupos de fé e política, movimentos
populares, associações, centrais sindicais, ONGs e demais grupos da sociedade civil
em vista da construção da sociedade sustentável, justa, inclusiva, garantidora
do acesso à cidadania e aos direitos básicos para todos.
Este
fenômeno, no meu modo de entender, não deve ser considerado como uma espécie de
etapa natural do processo de evolução da religião. Ao contrário, trata-se de
estratégias de disputa de território, de poder e de influência sociopolítica.
Há estudos que apontam e comprovam, inclusive, o interesse de grandes grupos
econômicos a financiar esse tipo de presença religiosa conservadora em toda
América Latina e Caribe.
Determinados
posicionamentos morais, mesmo quando deles discordamos, podem ser definidos e
talvez legitimamente defendidos no âmbito particular e interno de uma
organização religiosa específica, livremente constituída, em país que se
declara democraticamente laico e que defende a liberdade de culto. Porém,
quando colocados de forma contundente, imperativa e impositiva para toda
sociedade geram divisão e conflito. Isso acontece em relação aos membros das
demais tradições religiosas, mas também, e sobretudo, com os cidadãos ou grupos
que deles divergem ou neles não se reconhecem. Como exemplo, podemos citar o
caso da condenação da homossexualidade ou do reconhecimento da união civil
homoafetiva como algo abominável.
Em
termos de diversidade religiosa, tais posturas agravam os conflitos pela falta
de diálogo, intolerância e "demonização” de quem pensa de modo diverso.
Neste caso, como nos diversos desafios da convivência em contexto de pluralismo
o diálogo crítico, a tolerância e o respeito mostram-se balizas do melhor
caminho para a paz.
Em pleno século XXI exercer livremente sua
religião não é possível para muitos povos na Terra. Para o senhor, como é
possível a religião ser um instrumento de separação entre as pessoas? O que
esperar para as próximas gerações?
Edward: Nós ainda estamos dando os
primeiros passos na consolidação de sociedades multiculturais. Muitas pessoas,
infelizmente, vivem isoladas ou a margem dos processos e não participam das
benesses dos diversos aspectos da globalização ou mundialização. No campo
religioso, os desafios ainda são gigantescos. Há muitos preconceitos fomentando
posturais de discriminação do religiosamente diferente. Muitas tradições
religiosas ainda alimentam o sonho de, um dia, ser reconhecida por todos como a
única religião verdadeira. Os adeptos de algumas tradições religiosas ainda se
aproximam dos membros de outras denominações com posturas apologéticas,
agressivas e/ou proselitistas. Em outras palavras, querem demostrar, muitas
vezes a ferro e fogo, a superioridade da própria religião e desejam que o outro
deixe a própria religião, ou mesmo a postura a-religiosa assumida em sua
autonomia, e converta-se à crença por ele veiculada.
Com
atitudes como essas não conseguiremos conviver sem muros ou sem guerras e
divisões entre as religiões e, portanto, entre as pessoas. Consequentemente não
avançaremos na construção do ecumenismo e do diálogo inter-religioso.
Todas
as tradições religiosas recebem e provocam influências das culturas onde lançam
raízes e se edificam. A história nos mostra o quanto as religiões
influenciam-se mutuamente. Não há religião quimicamente pura. Cada cultura que
acolhe uma tradição religiosa oferece possibilidades novas no processo de
inculturação. Por exemplo, se é verdade que o Judaísmo influenciou na formação
do Cristianismo e, estas duas, na do Islamismo. Do mesmo modo, receberam
influências desta última. O mesmo pode ser dito das religiões afro-brasileiras,
como o Candomblé e a Umbanda, e das diversas tradições indígenas em relação ao
Cristianismo e vice-versa.
Todos
precisamos ser educados para acolher, aprender a ser e a conviver em contexto
de pluralismo cultural e multirreligioso, mas as juventudes contemporâneas
trazem consigo algo novo. A maioria dos jovens atuais nasceu e cresceu em
contexto de "aldeia global”. Estes estão a construir suas identidades
diretamente mergulhados em contexto culturalmente plural e multirreligioso
encontrado em qualquer cidade de médio ou grande porte. Além disso, estão
constantemente conectados com rica diversidade de redes socioculturais e
religiosas. O acesso ao pluralismo, portanto, é uma realidade cotidiana. Nesse
sentido, acredito que as juventudes contemporâneas saberão construir
convivência e interação muito mais bonita e fecunda que as gerações passadas
deram conta de concretizar. O contato que estabeleço com os jovens alimenta meu
horizonte de esperança.
O que a ciência teológica e as ciências da
religião entendem por ecumenismo? Como se dá essa convivência entre diferentes
ideias e concepções entre os estudiosos do tema?
Edward: Entende-se, geralmente, por
ecumenismo o cultivo, entre pessoas de religiões diferentes, da postura de
abertura, na verdade e no amor, de diálogo aprendiz, amável e cordial, pautado
pelo reconhecimento da maneira de ser e de pensar do outro, pela busca da
convivência solidária e fraternal. Trata-se de condição necessária para haver
justiça e paz no mundo. Ecumenismo, concretamente, é sempre um desafio: criar
condições de convivência tolerante, respeitosa e dialogal entre pessoas que
constroem sua identidade social a partir de diferentes tradições ou
denominações religiosas. Descobre-se que a pessoa humana é valor maior que a
religião. Esta revela-se, dentre outras funções na vida humana, ser meio
propício para a busca do sustento para a esperança, da realização espiritual e
do sentido profundo para a existência.
Distinguem-se,
pela complexidade implicada, dois níveis de ecumenismo. O primeiro, o chamado
micro ecumenismo, ou simplesmente ecumenismo, compreende o desafio de construir
diálogo, unidade e convivência sem violência, mútua condenação ou
"demonização" entre diferentes denominações ou divisões dentro da
mesma tradição religiosa. Por exemplo, o ecumenismo cristão entre os diversos
cristianismos: ortodoxo, católico, protestante, evangélico, pentecostal,
neopentecostal etc. Para além das diferenças, partem do reconhecimento do
patrimônio comum, tais como a Bíblia, a fé em Deus Pai, a esperança da salvação
em Jesus Cristo, a presença do Espírito Santo, o mandamento do amor ao próximo,
dentre outros. Buscam construir, a partir daí, unidade, respeito mútuo,
diálogo, convivência fraternal. Algumas ensaiam ou compartilham, inclusive,
projetos de evangelização juntas. O segundo, o chamado macro ecumenismo,
compreende o desafio de construir diálogo e convivência sem violência ou
exclusão preconceituosa entre religiões distintas. Por exemplo, entre o Budismo
e o Cristianismo, o Islamismo e o Hinduísmo, o Judaísmo e o Cristianismo,
dentre tantas outras possibilidades. Quanto maior for a diferença no campo das
doutrinas ou os muros de separação historicamente construídos, maior será o
desafio de aproximação, reconhecimento mútuo da alteridade e da beleza,
construção do diálogo, partilha de projetos, dentre outros.
Há
muros históricos de ódio, separação e condenação, mas, com o tempo, os membros
de cada tradição descobrem-se chamados a empenhar-se na superação de tais
divisões e construir pontes de amizade e solidariedade, alicerçadas no respeito
e na bondade. Já aconteceram, ao longo da história, passos tímidos e amistosos,
outros ousados e concretos nos dois níveis, inclusive, com experiências de
parcerias em estudos e projetos sociais solidários e ecológicos. No campo
acadêmico da teologia e das ciências da religião, por exemplo, há publicações
conjuntas de pesquisas, organização de congressos e outras tantas atividades.
Mas muitos passos ainda precisam e podem ser dados.
O
conflito de ideias e o debate não são experiências negativos, ao contrário,
fazem parte do fenômeno humano, na busca do conhecimento, da verdade e da
felicidade. Podem ser vivenciados em clima de abertura e sinceridade na busca
da verdade e dos caminhos para a justiça e a paz.
Cite-nos um exemplo real e positivo de
ecumenismo religioso. Como podemos multiplicá-lo na sociedade atual?
Edward: Há vários exemplos reais e
positivos de ecumenismo religioso. Podemos citar, por exemplo, no nível macro,
os famosos Encontros de Assis, promovidos pelo Papa João Paulo II, no dia 04 de
outubro, entre líderes das grandes tradições religiosas; entre nós, há o
"Carnaval da alma", um encontro entre membros das diversas religiões
em Campina Grande, na Paraíba, durante o período do Carnaval; há também
inúmeras passeatas e outras manifestações multirreligiosas empenhadas em lutar
contra a intolerância e o preconceito religioso, dentre tantos outros. No nível
micro, há a rica experiência de espiritualidade cristã ecumênica da Comunidade
de Taizé; entre nós, a criação do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic),
do Fórum Ecumênico Brasil e do Conselho Mundial de Igrejas (CMI); a elaboração
conjunta de Campanhas da Fraternidade pelas Igrejas Cristãs do Brasil;
experiências de ação solidária conjuntas na promoção da cidadania; encontros de
música gospel, promovidos por Igrejas Evangélicas, dentre muitos outros.
Entre
os meios de multiplicar experiências ecumênicas destacam-se o investir na
formação para o pluralismo religioso e as experiências de espiritualidade
ecumênica libertadora. A educação e a espiritualidade são caminhos necessários
para desconstruir posturas de intolerância, os falsos muros do fundamentalismo
religioso e gestar nova mentalidade e prática religiosa alicerçadas na
compreensão do pluralismo, não como ameaça, mas como expressão da riqueza do
Mistério de Deus e do multicultural fenômeno humano.
Desejamos
que cada tradição religiosa empenhe-se e contribua para o crescimento do
ecumenismo e do diálogo inter-religioso. Concretamente, desejamos também que
cada jovem participante do I Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade
Libertadora torne-se protagonista, no seu meio familiar, de trabalho ou estudo
e na sua rede social, um construtor de pontes entre as diversas tradições de
sabedoria e que ajudem a construir a cultura da paz e o intercâmbio entre os
povos e nações.
Em que consiste a "Teologia do
Pluralismo”?
Edward: De maneira bem simples, podemos
dizer que a Teologia do Pluralismo surge como um novo campo de investigação,
análise e produção teológica cristã. Trata-se de campo de estudo e pesquisa que
visa refletir, de um lado, sobre os entraves e dificuldades, por outro, sobre
as possibilidades de superação e avanço no campo do ecumenismo e do diálogo
inter-religioso. Por exemplo, refletir e demonstrar os limites de posturas
"religiocêntricas", ou seja, a pretensão de uma denominação cristã
conceber-se e apresentar-se como o único caminho de salvação (postura
exclusivista). A Teologia do Pluralismo propõe ideias teológicas novas, com
fundamentação bíblica, abertas para a construção de nova postura capaz de
perceber e reconhecer a salvação cristã, por exemplo, presente nas outras
religiões (postura inclusivista), até chegar a mentalidade predominante na
atual Teologia do Pluralismo propriamente dita (postura de pluralismo): considera-se
cada religião como potencial caminho de salvação para o adepto. Todas possuem
suficiência salvífica, independente de qualquer relação com o Cristianismo.
Deus não tem religião e seu projeto salvífico amoroso, para o cristão revelado
em plenitude em Jesus Cristo, é universal, está presente e perpassa todas as
culturas e religiões.
Como o senhor entende a relação entre
ecumenismo e espiritualidade? De que forma o primeiro pode fortalecer a segunda
e vice-versa?
Edward: A espiritualidade toca o mais
profundo da pessoa e favorece o autoconhecimento, a integração e autoestima.
Trabalha com delicadeza os sentimentos e ajuda no discernimento e purificação
dos desejos do ser humano. Ela contribui para a conquista da liberdade
interior, alimenta as reservas de esperança e provoca avanços no processo de
humanização e "amorização". Quando a experiência de espiritualidade
torna-se ecumênica, então, ela favorece a percepção do outro como irmão, como
igual, pois centra-se na lógica da unidade no amor.
O
ecumenismo consolida e ajuda a pessoa a internalizar dimensões mais amplas que
tendem a universalidade: amor a vida, amor e serviço ao próximo, respeito,
liberdade e dignidade. Quando vivido em contexto de espiritualidade
libertadora, provoca a percepção de que cada ser humano como parte de
"algo maior". Cada pessoa é contemplada como um rosto que interpela,
alguém habitado por Deus, portador de centelha divina singular enquanto filho/a
amado/a.
A
espiritualidade ecumênica provoca o cultivo da acolhida e a disposição de
colocar-se a serviço do outro. Favorece, portanto, aprofundamento do que
significa concretizar o amor ao próximo: trata-se de aproximar do outro,
acolhê-lo e promover a sua dignidade enquanto outro. O ecumenismo transformado
em espiritualidade provoca o cultivo da abertura, promove o diálogo e o
reconhecimento do outro enquanto outro. O pluralismo religioso, então, passa a
ser acolhido como expressão da riqueza inesgotável do Mistério que denominamos
Deus.
Qual a sua expectativa para o I Encontro Nacional
de Juventudes e Espiritualidade Libertadora?
Edward: Estamos animados e cheios de
entusiasmo com as possibilidades que o Encontro Nacional oportunizará aos
participantes. Será um tempo forte de experiência libertadora de Deus e,
portanto, vivência que nos possibilitará avançar na busca de sermos melhores,
pois, libertados para a prática da justiça e do amor. Temos certeza de que
todos sairemos de lá enriquecidos, com a aquela sensação de que "valeu a
pena", "quem não veio perdeu" e de que "é preciso continuar
essa caminhada, fazer desse encontro apenas o primeiro de uma série".
Então, até maio, a gente se encontra em Fortaleza. Transformados pela
"alegria do Evangelho", juntos na missão de participar, vivenciar,
colocar-se a serviço e contribuir na construção da sociedade justa, solidária,
inclusiva, ecumênica e sustentável.
Edward
Neves M. B. Guimarães é mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta
de Filosofia e Teologia (Faje). Professor do Departamento de Ciências da
Religião da PUC Minas, onde, no Sistema Avançado de Formação (Anima) coordena o
Centro de Estudos teológicos e pastorais (Cestep) e publicou pela Paulus, com
João Batista Libanio, no contexto da JMJ 2013, a pesquisa Linguagens sobre
Jesus. As linguagens da juventude e da libertação e, nos Cadernos do Núcleo de
Estudos Sociopolíticos, publicou a pesquisa Traços do perfil contemporâneo do
laicato da Arquidiocese de Belo Horizonte.
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Fonte:http://site.adital.com.br/site/noticia
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