terça-feira, 29 de abril de 2014

'O contato que estabeleço com os jovens alimenta meu horizonte de esperança'

 
Ainda hoje o exercício da religiosidade é um desafio para muitos povos. Persistem, em várias partes do mundo, preconceitos fomentados por posturas de discriminação com o "religiosamente diferente" e, atitudes como esta, impedem a sociedade de avançar na construção do ecumenismo 
e do diálogo inter-religioso. 

Estas são algumas das reflexões de Edward Guimarães, que estará em Fortaleza, Ceará, de 1 a 4 de maio deste ano para participar do o I Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora.
 
O teólogo acredita que a juventude contemporânea, por estar inserida em um contexto culturalmente plural e multirreligioso, saberá construir convivências e interações muito mais bonitas e fecundas que as gerações anteriores. Edward Guimarães ministrará a oficina de Espiritualidade e Ecumenismo no encontro nacional que reunirá teólogos de todo os pais e convidados da América Latina, que está sendo organizado pela Adital e demais parceiros.

Durante a entrevista , o teólogo respondeu também questionamentos sobre o avanço político das igrejas, ciências teológicas, ciências da religião, Teologia do Pluralismo e a relação entre ecumenismo e espiritualidade.

O avanço político de igrejas voltadas para um discurso moralista e conservador pode influenciar na divisão das comunidades cristãs, ou faz parte de um processo natural de evolução da religião?
Edward: Por um lado, a religião, como produto cultural, está presente em todos os âmbitos da vida humana. Não poderia ser diferente na política. Por outro, atualmente, de fato, de modo visível nos diversos meios de comunicação, ampliou-se a presença e a tentativa de influência sociopolítica de representantes de diversas denominações cristãs, sobretudo, no parlamento brasileiro (Senado, Câmera Federal, Estadual e Municipal).

Assusta-nos, neste caso, o cunho tradicionalista, conservador e, muitas vezes, alicerçado em um fundamentalismo bíblico moralista e anacrônico. Esta presença tem se caracterizado por posturas polêmicas e/ou unilaterais e, o que é pior, sem diálogo com a sociedade, bem como sem compromisso com políticas públicas estruturantes. Além disso, apresenta-se distante dos anseios de dignidade e das históricas bandeiras levantadas pelos grupos de fé e política, movimentos populares, associações, centrais sindicais, ONGs e demais grupos da sociedade civil em vista da construção da sociedade sustentável, justa, inclusiva, garantidora do acesso à cidadania e aos direitos básicos para todos.

Este fenômeno, no meu modo de entender, não deve ser considerado como uma espécie de etapa natural do processo de evolução da religião. Ao contrário, trata-se de estratégias de disputa de território, de poder e de influência sociopolítica. Há estudos que apontam e comprovam, inclusive, o interesse de grandes grupos econômicos a financiar esse tipo de presença religiosa conservadora em toda América Latina e Caribe.

Determinados posicionamentos morais, mesmo quando deles discordamos, podem ser definidos e talvez legitimamente defendidos no âmbito particular e interno de uma organização religiosa específica, livremente constituída, em país que se declara democraticamente laico e que defende a liberdade de culto. Porém, quando colocados de forma contundente, imperativa e impositiva para toda sociedade geram divisão e conflito. Isso acontece em relação aos membros das demais tradições religiosas, mas também, e sobretudo, com os cidadãos ou grupos que deles divergem ou neles não se reconhecem. Como exemplo, podemos citar o caso da condenação da homossexualidade ou do reconhecimento da união civil homoafetiva como algo abominável.

Em termos de diversidade religiosa, tais posturas agravam os conflitos pela falta de diálogo, intolerância e "demonização” de quem pensa de modo diverso. Neste caso, como nos diversos desafios da convivência em contexto de pluralismo o diálogo crítico, a tolerância e o respeito mostram-se balizas do melhor caminho para a paz.

Em pleno século XXI exercer livremente sua religião não é possível para muitos povos na Terra. Para o senhor, como é possível a religião ser um instrumento de separação entre as pessoas? O que esperar para as próximas gerações?
Edward: Nós ainda estamos dando os primeiros passos na consolidação de sociedades multiculturais. Muitas pessoas, infelizmente, vivem isoladas ou a margem dos processos e não participam das benesses dos diversos aspectos da globalização ou mundialização. No campo religioso, os desafios ainda são gigantescos. Há muitos preconceitos fomentando posturais de discriminação do religiosamente diferente. Muitas tradições religiosas ainda alimentam o sonho de, um dia, ser reconhecida por todos como a única religião verdadeira. Os adeptos de algumas tradições religiosas ainda se aproximam dos membros de outras denominações com posturas apologéticas, agressivas e/ou proselitistas. Em outras palavras, querem demostrar, muitas vezes a ferro e fogo, a superioridade da própria religião e desejam que o outro deixe a própria religião, ou mesmo a postura a-religiosa assumida em sua autonomia, e converta-se à crença por ele veiculada.

Com atitudes como essas não conseguiremos conviver sem muros ou sem guerras e divisões entre as religiões e, portanto, entre as pessoas. Consequentemente não avançaremos na construção do ecumenismo e do diálogo inter-religioso.

Todas as tradições religiosas recebem e provocam influências das culturas onde lançam raízes e se edificam. A história nos mostra o quanto as religiões influenciam-se mutuamente. Não há religião quimicamente pura. Cada cultura que acolhe uma tradição religiosa oferece possibilidades novas no processo de inculturação. Por exemplo, se é verdade que o Judaísmo influenciou na formação do Cristianismo e, estas duas, na do Islamismo. Do mesmo modo, receberam influências desta última. O mesmo pode ser dito das religiões afro-brasileiras, como o Candomblé e a Umbanda, e das diversas tradições indígenas em relação ao Cristianismo e vice-versa.

Todos precisamos ser educados para acolher, aprender a ser e a conviver em contexto de pluralismo cultural e multirreligioso, mas as juventudes contemporâneas trazem consigo algo novo. A maioria dos jovens atuais nasceu e cresceu em contexto de "aldeia global”. Estes estão a construir suas identidades diretamente mergulhados em contexto culturalmente plural e multirreligioso encontrado em qualquer cidade de médio ou grande porte. Além disso, estão constantemente conectados com rica diversidade de redes socioculturais e religiosas. O acesso ao pluralismo, portanto, é uma realidade cotidiana. Nesse sentido, acredito que as juventudes contemporâneas saberão construir convivência e interação muito mais bonita e fecunda que as gerações passadas deram conta de concretizar. O contato que estabeleço com os jovens alimenta meu horizonte de esperança.

O que a ciência teológica e as ciências da religião entendem por ecumenismo? Como se dá essa convivência entre diferentes ideias e concepções entre os estudiosos do tema?
Edward: Entende-se, geralmente, por ecumenismo o cultivo, entre pessoas de religiões diferentes, da postura de abertura, na verdade e no amor, de diálogo aprendiz, amável e cordial, pautado pelo reconhecimento da maneira de ser e de pensar do outro, pela busca da convivência solidária e fraternal. Trata-se de condição necessária para haver justiça e paz no mundo. Ecumenismo, concretamente, é sempre um desafio: criar condições de convivência tolerante, respeitosa e dialogal entre pessoas que constroem sua identidade social a partir de diferentes tradições ou denominações religiosas. Descobre-se que a pessoa humana é valor maior que a religião. Esta revela-se, dentre outras funções na vida humana, ser meio propício para a busca do sustento para a esperança, da realização espiritual e do sentido profundo para a existência.

Distinguem-se, pela complexidade implicada, dois níveis de ecumenismo. O primeiro, o chamado micro ecumenismo, ou simplesmente ecumenismo, compreende o desafio de construir diálogo, unidade e convivência sem violência, mútua condenação ou "demonização" entre diferentes denominações ou divisões dentro da mesma tradição religiosa. Por exemplo, o ecumenismo cristão entre os diversos cristianismos: ortodoxo, católico, protestante, evangélico, pentecostal, neopentecostal etc. Para além das diferenças, partem do reconhecimento do patrimônio comum, tais como a Bíblia, a fé em Deus Pai, a esperança da salvação em Jesus Cristo, a presença do Espírito Santo, o mandamento do amor ao próximo, dentre outros. Buscam construir, a partir daí, unidade, respeito mútuo, diálogo, convivência fraternal. Algumas ensaiam ou compartilham, inclusive, projetos de evangelização juntas. O segundo, o chamado macro ecumenismo, compreende o desafio de construir diálogo e convivência sem violência ou exclusão preconceituosa entre religiões distintas. Por exemplo, entre o Budismo e o Cristianismo, o Islamismo e o Hinduísmo, o Judaísmo e o Cristianismo, dentre tantas outras possibilidades. Quanto maior for a diferença no campo das doutrinas ou os muros de separação historicamente construídos, maior será o desafio de aproximação, reconhecimento mútuo da alteridade e da beleza, construção do diálogo, partilha de projetos, dentre outros.

Há muros históricos de ódio, separação e condenação, mas, com o tempo, os membros de cada tradição descobrem-se chamados a empenhar-se na superação de tais divisões e construir pontes de amizade e solidariedade, alicerçadas no respeito e na bondade. Já aconteceram, ao longo da história, passos tímidos e amistosos, outros ousados e concretos nos dois níveis, inclusive, com experiências de parcerias em estudos e projetos sociais solidários e ecológicos. No campo acadêmico da teologia e das ciências da religião, por exemplo, há publicações conjuntas de pesquisas, organização de congressos e outras tantas atividades. Mas muitos passos ainda precisam e podem ser dados.

O conflito de ideias e o debate não são experiências negativos, ao contrário, fazem parte do fenômeno humano, na busca do conhecimento, da verdade e da felicidade. Podem ser vivenciados em clima de abertura e sinceridade na busca da verdade e dos caminhos para a justiça e a paz.

Cite-nos um exemplo real e positivo de ecumenismo religioso. Como podemos multiplicá-lo na sociedade atual?
Edward: Há vários exemplos reais e positivos de ecumenismo religioso. Podemos citar, por exemplo, no nível macro, os famosos Encontros de Assis, promovidos pelo Papa João Paulo II, no dia 04 de outubro, entre líderes das grandes tradições religiosas; entre nós, há o "Carnaval da alma", um encontro entre membros das diversas religiões em Campina Grande, na Paraíba, durante o período do Carnaval; há também inúmeras passeatas e outras manifestações multirreligiosas empenhadas em lutar contra a intolerância e o preconceito religioso, dentre tantos outros. No nível micro, há a rica experiência de espiritualidade cristã ecumênica da Comunidade de Taizé; entre nós, a criação do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic), do Fórum Ecumênico Brasil e do Conselho Mundial de Igrejas (CMI); a elaboração conjunta de Campanhas da Fraternidade pelas Igrejas Cristãs do Brasil; experiências de ação solidária conjuntas na promoção da cidadania; encontros de música gospel, promovidos por Igrejas Evangélicas, dentre muitos outros.

Entre os meios de multiplicar experiências ecumênicas destacam-se o investir na formação para o pluralismo religioso e as experiências de espiritualidade ecumênica libertadora. A educação e a espiritualidade são caminhos necessários para desconstruir posturas de intolerância, os falsos muros do fundamentalismo religioso e gestar nova mentalidade e prática religiosa alicerçadas na compreensão do pluralismo, não como ameaça, mas como expressão da riqueza do Mistério de Deus e do multicultural fenômeno humano.

Desejamos que cada tradição religiosa empenhe-se e contribua para o crescimento do ecumenismo e do diálogo inter-religioso. Concretamente, desejamos também que cada jovem participante do I Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora torne-se protagonista, no seu meio familiar, de trabalho ou estudo e na sua rede social, um construtor de pontes entre as diversas tradições de sabedoria e que ajudem a construir a cultura da paz e o intercâmbio entre os povos e nações.

Em que consiste a "Teologia do Pluralismo”?
Edward: De maneira bem simples, podemos dizer que a Teologia do Pluralismo surge como um novo campo de investigação, análise e produção teológica cristã. Trata-se de campo de estudo e pesquisa que visa refletir, de um lado, sobre os entraves e dificuldades, por outro, sobre as possibilidades de superação e avanço no campo do ecumenismo e do diálogo inter-religioso. Por exemplo, refletir e demonstrar os limites de posturas "religiocêntricas", ou seja, a pretensão de uma denominação cristã conceber-se e apresentar-se como o único caminho de salvação (postura exclusivista). A Teologia do Pluralismo propõe ideias teológicas novas, com fundamentação bíblica, abertas para a construção de nova postura capaz de perceber e reconhecer a salvação cristã, por exemplo, presente nas outras religiões (postura inclusivista), até chegar a mentalidade predominante na atual Teologia do Pluralismo propriamente dita (postura de pluralismo): considera-se cada religião como potencial caminho de salvação para o adepto. Todas possuem suficiência salvífica, independente de qualquer relação com o Cristianismo. Deus não tem religião e seu projeto salvífico amoroso, para o cristão revelado em plenitude em Jesus Cristo, é universal, está presente e perpassa todas as culturas e religiões.

Como o senhor entende a relação entre ecumenismo e espiritualidade? De que forma o primeiro pode fortalecer a segunda e vice-versa?
Edward: A espiritualidade toca o mais profundo da pessoa e favorece o autoconhecimento, a integração e autoestima. Trabalha com delicadeza os sentimentos e ajuda no discernimento e purificação dos desejos do ser humano. Ela contribui para a conquista da liberdade interior, alimenta as reservas de esperança e provoca avanços no processo de humanização e "amorização". Quando a experiência de espiritualidade torna-se ecumênica, então, ela favorece a percepção do outro como irmão, como igual, pois centra-se na lógica da unidade no amor.

O ecumenismo consolida e ajuda a pessoa a internalizar dimensões mais amplas que tendem a universalidade: amor a vida, amor e serviço ao próximo, respeito, liberdade e dignidade. Quando vivido em contexto de espiritualidade libertadora, provoca a percepção de que cada ser humano como parte de "algo maior". Cada pessoa é contemplada como um rosto que interpela, alguém habitado por Deus, portador de centelha divina singular enquanto filho/a amado/a.

A espiritualidade ecumênica provoca o cultivo da acolhida e a disposição de colocar-se a serviço do outro. Favorece, portanto, aprofundamento do que significa concretizar o amor ao próximo: trata-se de aproximar do outro, acolhê-lo e promover a sua dignidade enquanto outro. O ecumenismo transformado em espiritualidade provoca o cultivo da abertura, promove o diálogo e o reconhecimento do outro enquanto outro. O pluralismo religioso, então, passa a ser acolhido como expressão da riqueza inesgotável do Mistério que denominamos Deus.

Qual a sua expectativa para o I Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora?
Edward: Estamos animados e cheios de entusiasmo com as possibilidades que o Encontro Nacional oportunizará aos participantes. Será um tempo forte de experiência libertadora de Deus e, portanto, vivência que nos possibilitará avançar na busca de sermos melhores, pois, libertados para a prática da justiça e do amor. Temos certeza de que todos sairemos de lá enriquecidos, com a aquela sensação de que "valeu a pena", "quem não veio perdeu" e de que "é preciso continuar essa caminhada, fazer desse encontro apenas o primeiro de uma série". Então, até maio, a gente se encontra em Fortaleza. Transformados pela "alegria do Evangelho", juntos na missão de participar, vivenciar, colocar-se a serviço e contribuir na construção da sociedade justa, solidária, inclusiva, ecumênica e sustentável.

Edward Neves M. B. Guimarães é mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas, onde, no Sistema Avançado de Formação (Anima) coordena o Centro de Estudos teológicos e pastorais (Cestep) e publicou pela Paulus, com João Batista Libanio, no contexto da JMJ 2013, a pesquisa Linguagens sobre Jesus. As linguagens da juventude e da libertação e, nos Cadernos do Núcleo de Estudos Sociopolíticos, publicou a pesquisa Traços do perfil contemporâneo do laicato da Arquidiocese de Belo Horizonte.
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Fonte:http://site.adital.com.br/site/noticia

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