Francisco Rüdiger*
O amor se emancipou e adquiriu condição de direito universal
Foto:
Bruno Alencastro / Bruno Alencastro
O amor é livre e, como tal, está no ar, fluindo por toda parte — mas
isso não faz muito tempo, ao contrário do que sugere o barulho feito à
sua volta pelo palavreado cotidiano e os meios de comunicação. Às
pessoas convém lembrar que, até o início do século passado, os
relacionamentos afetivos eram, em geral, rigidamente controlados pelos
ordenamentos coletivos. A família, a igreja, a etnia e até o Estado
impunham suas normas à maneira como homens e mulheres podiam se
relacionar. A liberdade para amar quem desejamos, com base apenas na
atração mútua, começou a surgir há pouco mais de meio século e, em
muitas partes do planeta, ainda é desconhecida.
O fato de ter passado a ser assim é bom ou mau? As pessoas são,
agora, mais felizes em sua vida afetiva? A resposta às perguntas não
deveria ser linear. A prática do amor puro, exercido em condições de
plena liberdade, pode ser tão custosa e desafiadora quanto a do
relacionamento forçado e a convivência de circunstância que gravava
nossa alma em um passado não muito distante.
A burguesia se projetou como classe, entre outros aspectos, ao
promover a valorização do sentimento interior, autêntico e
espiritualizado, e, assim, condenar a frivolidade com que, segundo seus
porta-vozes, o amor era vivido na sociedade aristocrática. O amor se
tornou, para ela, algo profundo e comprometedor, em que era preciso ter
pureza de intenções e saber escutar a voz do coração — sem, contudo,
desrespeitar as convenções sociais e os ordenamentos coletivos.
O resultado disso foi, como se sabe, a conversão de uma atividade
lúdica, mais ou menos tolerada pelos costumes, desde que fora do
casamento, em motivo esperado do bom matrimônio que, impossível de ser
posto em prática pela maioria, rápido se tornou signo, às vezes
patológico, da hipocrisia moral burguesa.
Por volta de 1900, o cenário, no entanto, começou a se alterar. Freud
deu sinal de que esse arranjo se tornara insuportável. Apareceram
movimentos políticos e sociais decididos a criar uma nova moral sexual,
se não um novo cosmo amoroso. O amor livre passou não apenas a ser
pensado pelos intelectuais, mas a ser posto em prática por setores cada
vez mais amplos da sociedade. O movimento de emancipação política e
jurídica da mulher, que lhe abriu a perspectiva da vida profissional,
combinou-se com as reforma do mundo do trabalho, em meio a um novo ciclo
de desenvolvimento do capitalismo, que levou o individualismo a
prosperar entre as massas.
As pessoas começaram a se destacar dos velhos ordenamentos,
adquirindo uma consciência do eu individual que, apesar dos percalços,
lhes trouxe, em vários setores da vida, mais liberdade. A crescente
preocupação com os assuntos amorosos a que se assiste desde então deve
ser situada neste contexto, marcado pelo aumento da prosperidade, mas
também por um crescente estranhamento entre os seres humanos.
Os sinais disso cada um vai aprendendo conforme amadurece, apesar de
todo o treinamento romântico que, movido por um interesse mercadológico,
promovem a literatura, o cinema e as artes populares. Os
relacionamentos são livres e por eles não falta atração, mas paira hoje o
sentimento de que estes se tornaram mais frágeis e difíceis. Os
críticos se apressam em acusar o narcisismo vigente em nosso tempo por
tanto, mas se equivocam, tomando o efeito pela causa - se é que não
tomam por cotidiano do homem comum do nosso tempo o que não passa, de
fato, de seu aspecto cosmético.
Vivemos em um sistema onde os principais estímulos nos movem no
sentido da satisfação egoísta e que, por isso, tende, na prática, a
dificultar o desenvolvimento das competências com que se poderia
cultivar o tipo de relacionamento que o amor exige, uma vez posto em
situação de liberdade. O fato de isso torná-lo ainda mais desejado e
sedutor, predispondo-o à exploração como mercadoria barata pelos meios
de comunicação, é apenas um indício do problema maior que deriva da
ideia de que talvez não amar seja a regra em uma sociedade onde, menos
que descartáveis, nossa condição é a de acessórios uns para os outros.
O amor se emancipou das cadeias que o prendiam às autoridades
tradicionais e, assim, adquiriu a condição de direito universal, que
atravessa nossas vidas como fluido mágico prometedor de uma felicidade
extraordinária. O problema consiste em saber como vivenciá-lo em meio a
uma sociedade que, incentivando o individualismo e, em nosso caso,
carecendo dos meios culturais que o atenuariam, obstaculiza o
desenvolvimento de relacionamentos íntimos duráveis o bastante para
trazerem a seus sujeitos estímulos, prazeres e admiração recíprocos.
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*Professor da UFRGS e da PUCRS, publicou recentemente O Amor e a Mídia (UFRGS, 2013)
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*Professor da UFRGS e da PUCRS, publicou recentemente O Amor e a Mídia (UFRGS, 2013)
Fonte: http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/
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