Rubem Alves*
Cheguei à janela do apartamento em que me encontrava, no
décimo segundo andar do hotel. Olhando para baixo viam-se gramados,
árvores, casas. Um bando de pombas voava. Umas cinquenta. Voavam muito
próximas umas das outras. Sem esbarrar. Não estavam indo a lugar algum.
Seu voo não tinha nenhuma intenção prática. Voavam pela alegria de voar.
Brincavam de voar. Huizinga, filósofo holandês, escreveu um livro com o
título Homo Ludens, o homem brincante. Brincar é fazer algo sem nenhum
resultado prático, só pelo prazer de fazê-lo. Pular corda. Jogar damas.
Armar quebra-cabeças. Música. Pintura. Poesia. Mas ele observou que
também os animais gostam de brincar. Os gatos, os cães, os potrinhos.
Ao ver as pombas pensei: também as pombas gostam de brincar. As
pombas, mais do que nós, sabem para que se vive. A princípio foi o puro
prazer da contemplação. Elas iam e vinham fazendo curvas inesperadas. De
repente, o bando batia as asas voando para cima e todas juntas, ao
mesmo tempo, paravam de bater as asas e deslizavam para baixo como se
estivessem deslizando numa montanha-russa. Imaginei que esse movimento
deveria dar-lhes a mesma sensação visceral que se tem quando o carro
sobe rápido e, ao fim da subida, começa a descer. Todas ao mesmo tempo.
Como se houvesse um cérebro único que as guiasse. Não seguiam uma
pomba-líder. Não havia tempo. Todas se moviam como um balê ensaiado. E
quando faziam as curvas rápidas de 180º a pomba que parecia ser líder
ficava na retaguarda. Por cerca de quinze minutos fiquei a observá-las.
Fiquei curioso. Suas asas não se cansariam? Pensei que suas asas
deveriam bater três vezes por segundo. Cento e oitenta vezes por minuto.
Desci para o café da manhã. Lá fiquei por cerca de meia hora. Ao voltar as pombas continuavam a brincar de voar, sem ir a lugar algum. Elas não queriam ir a lugar algum por já se encontrarem no lugar onde queriam estar: o espaço do brincar. Jesus também jogava tempo fora observando os pássaros em vôo. O que o levou a dizer que para se viver como se deve é preciso gastar tempo observando as aves. Não nascemos com nenhuma missão a ser cumprida. Não somos peões no xadrez que Deus joga com o Diabo... Vivemos para viver. Fiquei com inveja das pombas...
***
LEONARDO DA VINCI foi uma dos maiores gênios da humanidade. Pintor,
músico, construtor de instrumentos musicais, compunha, improvisava,
arquiteto, escultor, imaginava máquinas de todos os tipos, inclusive
voadoras, estudou os fósseis, a meteorologia, a anatomia, amava os
cavalos. Pois fiquei sabendo que, além de tudo isso, ele se dedicava à
culinária. No final do século 15 foi trabalhar na corte de Ludovico
Sforza, governante e protetor da cidade. Lá ele não só inventava
utensílios culinários como também coordenava eventos pantagruélicos.
Aqui vão os nomes de alguns dos pratos que se serviam nos
banquetes: crista de galo com miolo de pão, testículos de carneiro com
creme e mel, rabos de porco com polenta, pastelão de cabeça de cabra,
sopa de rã, enguias cozidas, galinha recheada com uvas, sopa de
caracóis, intestinos de truta. Quem quiser experimentar as receitas que
compre o livro e depois me diga: 'Os Cadernos de Cozinha de Leonardo da
Vinci', Rio de Janeiro, Editora Record, 2002.
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* Escritor. Educador. Teólogo.
Fonte: Correio Popular online, 06/04/2014
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