João Pereira Coutinho*
O terrorismo nem sequer estabelece uma distinção mínima entre alvos legítimos e ilegítimos
O mundo está com os olhos postos no Brasil: há Copa daqui a dois meses.
Mas chegou à imprensa europeia um desagradável pormenor dessa Copa: o
projeto de lei 499 que pretende punir atos de terrorismo em solo
brasileiro.
Ponto prévio: nenhum Estado de Direito pode ignorar ameaças terroristas.
Se o Brasil não tem legislação específica contra o crime, sobretudo
quando tem a Copa em 2014 e as Olimpíadas em 2016, seria aconselhável
que os congressistas pensassem rapidamente no assunto.
O problema é que a "lei antiterror", tal como está redigida, enforma
dois problemas: não entende o que significa terrorismo e, pior, abre a
porta para formas informais de "lei marcial" sempre que alguém, algures,
protesta com estridência (ou até violência) contra o governo.
Sobre a noção de terrorismo, entendo que o conceito não seja pacífico.
Mas o filósofo Michael Walzer, que tem dedicado uma parte substancial da
sua obra ao tema, deixou ficar uma definição possível: terrorismo não é
sabotagem, vandalismo ou ocupação indevida do espaço público. Tudo isso
é crime, sem dúvida, mas a legislação ordinária já lida com o assunto
--e o Brasil não será exceção.
"Terrorismo" habita uma categoria à parte: significa o uso de violência letal e indiscriminada contra pessoas inocentes.
Quebrar vitrines ou ocupar estradas é uma coisa. Usar bombas em cinemas
ou restaurantes, de forma a assassinar o maior número possível de
brasileiros ou estrangeiros, é outra. Se o Brasil pedir informações ao
governo israelense sobre a matéria, entenderá a diferença.
Claro que, para piorar as coisas, até podemos perguntar se o terrorismo
pode ser lícito em certos contextos políticos. Michael Walzer condena-o
sem reservas por entender que o terrorismo, na matança indiscriminada de
inocentes, nem sequer estabelece uma distinção mínima entre alvos
legítimos (ditadores, por exemplo) e ilegítimos (populações que vivem
sob ditadura).
Mas existem outros filósofos --como o sempre perturbante Lionel
Mcpherson-- que não hesita em virar o debate: o terrorismo pode ser
preferível a uma guerra convencional. Morrem menos civis em atentados
terroristas do que em guerras convencionais, diz ele.
E, além disso, podem existir situações --o apartheid na África do Sul, cita o autor-- que tornam o terrorismo necessário.
Mas a "lei antiterror" brasileira não é apenas imprecisa na definição de
terrorismo. Se ela for aplicada, o governo terá amplos poderes para
suprimir liberdades civis básicas.
Quando se lê que a lei procura evitar ofensas "à vida, à integridade
física ou à saúde ou à privação da liberdade" de alguém, isso significa
tudo e nada. Significa, no limite, que o governo interpreta, de acordo
com a sua conveniência, se uma manifestação contra a presidente Dilma
constitui uma "ofensa" contra a "liberdade" de quem deseja aplaudi-la.
A boa notícia é que, segundo o jornal "The Guardian", que me despertou
para o problema, cresce a contestação à "lei antiterror". Essa aberração
é condenada por defensores dos direitos humanos, obviamente; mas também
por muitos congressistas, que já vislumbram o buraco que a lei pode
abrir na democracia do país.
E pouco me importa que muitos desses congressistas estejam mais
preocupados em proteger as ações dos sem-terra e de outros grupos
esquerdistas do que o Estado de Direito propriamente dito. O que importa
é repudir essa lei.
Porque existem coisas piores do que não vencer a Copa. É o Brasil ter
como herança da festa um dos instrumentos típicos da repressão
totalitária.
P.S. "" Um leitor escreveu para esta Folha perguntando-me por que motivo não existe um Estado binacional para palestinos e israelenses.
Curiosamente, Noam Chomsky defendeu isso anos atrás. Pouco tempo depois,
rebentou a guerra civil na ex-Iugoslávia e o mundo percebeu que não é
boa ideia juntar na mesma casa vários povos com problemas de
conjugalidade. Israel recusa um Estado binacional porque, depois de 60
anos de guerras ininterruptas, ninguém convida para dentro do galinheiro
a raposa que andou sempre a rondá-lo.
Mas a esmagadora maioria dos palestinos também. Escutar o que diz o
Hamas e mesmo a Autoridade Palestina acaba com qualquer fantasia
"binacional".
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* Jornalista, escritor, historiador e comentador e cientista político português.
Fonte: Folha online, 22/04/2014
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