Talvez a pior coisa que
possamos ter diante
de nós são os que querem fazer o bem.
Principalmente
aqueles que nos querem
fazer entrar no paraíso aqui mesmo na terra.
Em
“Genealogia do fanatismo” Cioran escreve: “Idólatras por instinto,
convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos
interesses”.[1]
Na minha leitura e por conta única e exclusivamente da minha
interpretação, com essa frase, o filósofo romeno parece atingir aquele
que mais quis nos libertar das figuras do cabeça-dura e do sabichão. O
pensador que quis nos salvar dessa dupla aborrecedora foi o inventor da
filosofia, Platão. Para este, o rapsodo e o sofista, ou o contador de
mitos e o político falastrão, eram o cabeça dura e o sabichão. A figura
do filósofo deveria ser um novo tipo de intelectual nessa constelação da
vida cultura ateniense.
Para Platão, fazia-se necessário saber
antes o que é a coragem que contar sobre os atos de generais corajosos;
saber o que é a justiça antes que contar sobre reis justos. Segundo ele,
essa foi a busca de Sócrates, ao menos o que imaginamos ser o Sócrates
histórico – o Sócrates histórico de Platão. Mas o Sócrates capaz de
apontar para o mundo das Ideais ou Formas (ou seja, ou objetos
absolutos) e então mostrar o lugar da Coragem, da Justiça, do Belo etc.,
já seria o Sócrates reeducado por Platão. Este seria o Sócrates como o
personagem que teria dado um passo a mais e saído das aporias com as
quais Platão finalizou seus “primeiros diálogos”.[2]
Vendo assim a história da filosofia, esse Sócrates-Platão poderia
realmente ser o alvo primeiro de Cioran. No meu jargão: uma matriz para
fanatismos, já que estes, sabemos bem, são feitos por quem tem um altar
pronto para a Verdade.
Rasinari, Romênia, casa em que Cioran nasceu
Essa impressão fica mais forte, se acompanhamos o texto de Cioran: “a história se torna um desfile de falsos Absolutos, uma
sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito
ante o improvável. Mesmo quando se afasta da religião, o homem permanece
submetido a ela; esgotando-se em fabricar simulacros de deuses,
adota-os depois febrilmente (…)”.[3]
Ora, lendo isso, não há como não se lembrar das variadas intepretações
que terminam por afirmar, sempre, como que Platão deu base antes para a
nossa religião moderna que para a dos gregos, e de como o Mundo das
Ideias ou das Formas (Eidos) nunca foi outra coisa senão uma antessala
do céu cristão – dos cristãos cultos, é claro. Na linha dessa
interpretação, veríamos também, não sem algum exagero, aqueles que
amarram Marx e principalmente Lênin ao comunismo enquanto um novo falso
Absoluto. Cioran serviria, então, para afastar de nós não só todo
filósofo capaz de construir utopias, mas principalmente o dos que
quiseram “realizar a filosofia”, ou seja, trazer o céu para a história,
para a Terra.
Podemos dar crédito para tal conclusão e
desenharmos Cioran como esse pensador desdenhoso dos que buscam a
“felicidade humana”, a chamada “sociedade melhor”? Mais ou menos nesse
sentido, ele diz: “só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos:
os excessos suscitados pela deusa Razão, pela ideia de nação, de classe
são parentes da Inquisição e da Reforma. As épocas de fervor se
distinguem pelas façanhas sanguinárias”.[4]
Não é isso uma pancada com bastão de
beisebol na cabeça de religiosos, iluministas exacerbados, fascistas e
bolcheviques? Não seriam eles todos, enfim, homens que defenderam
versões políticas de alguma maneira herdeiras do platonismo? Os
absolutos de Platão (mas não toda a filosofia de Platão)[5]
não estariam embutidos aí nesses desfiles de homens donos da verdade,
gente “idólatra por instinto”? E, se assim é, não temos mesmo que dar o
braço a torcer e confessar, junto com Adorno e Rorty que pessoas com
utopias no horizonte, pronta para realizá-las historicamente[6], são pessoas com a Verdade na cabeça e, portanto, motivadas o suficiente para pregações e guerras de salvação?
Cioran é ironicamente cruel. Ele vê cada
cristão morto não como vítima, mas como mais culpado que Nero. Este,
por sua vez, seria apenas alguém que se divertia com o massacre, mas
incapaz de criar uma doutrina do massacre, incapaz de elaborar o que os
cristãos elaboraram, ou seja, o conceito de heresia. Criar tal conceito
foi efetivamente o mais terrível, pois isso não nos deu divertimento
esporádico de ver sangue em arenas, mas o dever cotidiano de fazer o
sangue jorrar nas torturas de masmorras que jamais poderiam deixar de
funcionar. Cioran afirma: “O diabo empalidece comparado a quem possui
uma verdade – a sua verdade”.[7]
Vamos ser sinceros, nós sabemos bem disso. Sabemos muito bem o quanto
se cria de preconceito ao inventarmos de fabricar conceitos, eles
próprios já bases para doutrinas do inferno do cotidiano.
Talvez a salvação da filosofia, diante
disso, pudesse estar na ideia de Schlick, que ele atribui já a Sócrates:
a filosofia lida com o significado, a verdade é negocio da ciência.[8] É certo que os positivistas lógicos tiveram de esperar Quine para verem que haviam transformado, erradamente,
também o significado em mais uma peça no “desfile dos absolutos”. Rorty
fez parte desses filósofos pós-Quine, como Donald Davidson: nem verdade
e nem significado iriam servir de porto seguro para novos
revolucionários terem plataformas de onde partir para o mar, içando lá a
foice e o martelo ou a suástica, como outrora outros navegantes fizeram
com a cruz. Rorty apareceu na filosofia para que filósofos como eu,
modificando-o, possam dizer: se quiser matar em nome da Verdade faça
isso como responsabilidade sua e não como uma tarefa política que
precisa de filosofia. Não precisa. Assassinos deveriam parar de buscar
na filosofia formas de conviver com os espelhos e com os rostos de seus
filhos.
Cioran pode servir para dizer algo
assim, em uma linguagem mais tradicional, mais continental, digamos
assim – algo próprio de um romeno com cultura afrancesada. Ele apela
para uma via relativamente familiar entre nós. No texto já referido, ele
assinala: “Sinto-me mais seguro diante de um Pirro do que de um São
Paulo, pela razão de que uma sabedoria de boutades é mais doce que uma
santidade desenfreada”.[9]
Aliás, diga-se de passagem, Rorty é atento em lembrar que o ceticismo
só se tornou uma “filosofia da dúvida”, elaborada tecnicamente, com
Descartes. Na antiguidade, concordo com Rorty[10]
e Cioran, o ceticismo era mesmo uma “sabedoria de boutades”, ou seja,
uma prática de emissão de chistes, uma atitude sempre espirituosa a
respeito de profissões de fé. No mundo antigo, não se queria duvidar
como Descartes quis duvidar, ou seja, de modo “profissional”. Antes de
tudo, o que se desejava era viver com menos seriedade. Viver de modo a
não fazer da vida uma saída triunfal e fervorosa da estrada para
Damasco, fonte de ataques epiléticos.
Cioran diz falar contra a filosofia,
contra os filósofos. Ele faz isso, sim, sem dúvida. Mas abre exceções.
Entre os antigos, ele visivelmente ama Diógenes. Entre os
contemporâneos, ele deixou bem claro o quanto Nietzsche era uma exceção.
Em seus escritos, há um ponto comum entre o acompanhante dos cães e o
homem que abraçou o cavalo: o elemento indiferença.
Nietzsche circunscreveu o que chamou de pathos da distância.
Os homens em geral são incapazes de não avaliar, de não valorar. É da
condição humana valorar e criar valor. O homem é moral. Ou talvez
dizendo de modo mais exato: o homem moderno é moral e não toma
distância. Não conhece aquilo que Cioran diz que Diógenes procurou, de
dia, com uma lanterna: um homem indiferente. A indiferença que
Cioran elogia não é o desdém premeditado, muito menos a atitude blasé, e
menos ainda um o que se faz na moderna cultura do descarte. Indiferença
em Cioran tem a ver com algo que não precisa ser conscientemente
assumido, pois é o pathos da distância, aquela postura de Galactus
frente ao mundo, condenada pelo seu arauto, o Surfista Prateado.
Na história de Stan Lee, Galactus é um
gigante cósmico que precisa devorar mundos, destruí-los e apanhar a
energia para sobreviver. Ele perambula o cosmos assim fazendo. É como um
imenso beija flor: funciona com tanto frenesi que não faz outra coisa
senão ir de seiva em seiva, glicose em glicose. Não há tempo e, por
isso, menos interesse ainda, em saber o que são mundos. Ninguém olha uva
por uva para devorar um cacho em uma viagem. A paisagem é vista como
paz da alma, cada uva é destruída na boca, isso quando um cacho inteiro
não vai para a língua e dentes para um esmagamento delicioso, mas atroz
do ponto de vista de cada uva. Diante do planeta terra, ele, Galactus,
se prepara para pisar sobre um formigueiro e, é claro, como todos nós,
sem qualquer dúvida de que deve assim fazer. Nem lhe passa pela cabeça
desviar-se da terra. Quando o Surfista lhe diz que a terra é diferente,
que realmente é um mundo, com seres afetivos e inteligentes em sua
superfície, Galactus não o entende, e se volta contra o seu arauto. O
castigo do Surfista é ficar preso à atmosfera terrestre. Galactus não
consome a Terra, apenas pega outra uva do cacho. Para Galactus, que se
foda a uva podre, em torno da qual deverá orbitar para sempre a
melancólica e patética figura do Surfista.
Eis aí o pathos da distância, eis aí a
indiferença. Galactus condena o Surfista a ficar na terra, mas não por
querer saber algo de nosso mundo. Ele é completamente indiferente em
relação a esse mundo. Quando comemos um cacho de uva na própria
parreira, nem olhamos para uma uva que cai de nossa mão. Muito menos
contamos quantas ficaram no cacho.
A indiferença é central, fora dela o
homem age como quem precisa ser “o acontecimento.” Seria ridículo para
Cioran o lema que infesta a literatura de auto-ajuda: “faça a
diferença”. Mas, mais que isso, seria nefasta. Pode-se ser diferente.
Pirro, Diógenes e Nietzsche foram diferentes. Todavia, não foram
playboys ou guerrilheiros ou pregadores, aqueles que buscam antes fazer a
diferença que serem espontaneamente o que são. Galactus jamais pregou,
escreveu ou defendeu qualquer causa! Mesmo o seu castigo para o
Surfista, não foi outra coisa senão um enfrentamento de um nobre
cavaleiro contra um pigmeu revoltoso. Galactus nem se deu ao trabalho de
eliminá-lo, apenas o colocou numa caixinha de fósforos do universo.
Nessa linha de raciocínio, observo que o
mais terrível fervoroso não é aquele que nasceu nas entranhas da
doutrina ou da militância, mas o recém-convertido. É na estrada para
Damasco que tudo de mais maligno pode ocorrer. Ninguém que tivesse um
pingo de juízo deveria procurar sua estrada para Damasco. Mas,
infelizmente, os homens que caem do cavalo nessa estrada, e recebem uma
benção, saem dali de espada na mão para se colocar a serviço da missão
contrária daquela que fazia, e isso com um fervor redobrado. O militante
que sai dessa queda. Do fascista do passado à feminista do presente, o
que não há é a indiferença, ainda que qualquer um desses possa olhar
para um cachorrinho perdido na rua e não lhe dar atenção ou simplesmente
achar que aborto é algo que deixa de ser uma morte se usarmos para ele a
expressão “é uma questão de saúde pública”. O não indiferente, criado
na estrada para Damasco, sai dali como o mais ardoroso amante, tem um
coração enorme, mas cujo tamanho, nesse caso, nada favorece. Afinal,
está preenchido por uma única coisa: sua doutrina de purificação do
mundo. Um coração grande preenchido por uma única paixão é o fanatismo, e
é o monstro que se põe diante de um coração que, embora pequeno, se
diversifica em seus amores.
Vá e faça a diferença, disse Jesus a São
Paulo, segundo o próprio São Paulo, é claro! Caso não tenha dito com
essas palavras, eu juro que a intenção foi essa. E São Paulo trocou a
espada que decepava cabeças de cristãos por uma cruz capaz de rasgar
coração e cérebro de todos. Aliás, nunca ninguém teve a ideia de se
masturbar com uma espada, mas com a cruz … Foi então que a Igreja de
Pedro se tornou o acampamento militar de São Paulo. Ele foi o único
discípulo direto de Jesus sem ter vivido com Jesus. Ganhou status de
apóstolo mesmo não tendo estado entre os doze. Fez o papel deixado por
Judas: traiu a vida reclusa dos cristãos em favor do lema “vamos lá,
vamos fazer a diferença”. Não seremos nunca indiferentes. Sim, não se é
indiferente e, por isso mesmo, o mundo torna–se sua propriedade. Ou o
mundo se torna um paraíso ou eu farei dele um deserto – todos vão ser
bons nem que eu tenha de tortura-los um por um. Assim pensava São Paulo.
Mas nosso desespero seria pequeno se só a
estrada de Damasco produzisse “homens do delírio”. Nosso desespero é
grande porque o mundo é todo ele uma estrada para Damasco. Cioran diz
claramente: “em todo homem dorme um profeta e, quando ele acorda, há um
pouco de mais mal no mundo…” E continua: “a loucura de pregar está tão
enraizada em nós que emerge de profundidades desconhecidas do instinto
de conservação. Cada um espera o seu momento para propor algo: não importa o quê.”[11]
Nosso desespero está, então, no problema
do profeta se confundir com o humano de modo que não sabemos se existe
no homem uma outra condição. “Um ser possuído por uma crença e que não
procurasse comunica-la aos outros é um fenômeno estranho à terra, onde a
obsessão da Salvação torna a vida irrespirável”, diz Cioran. Podemos
olhar para todos os lados e notarmos “larvas que pregam”. “Cada
instituição traduz uma missão; as prefeituras têm seu absoluto como os
templos: a administração, com seus regulamentos – metafísica para uso de
macacos.” “A ânsia para tornar-se fonte de acontecimentos atua sobre
cada um como uma desordem mental ou uma maldição intencional”. “A
sociedade é um inferno de salvadores!”. [12]
Há alguém, para Cioran, que escapa disso
que, enfim, é a “lepra lírica que contamina as almas” e que na forma
sintética exprime o fanatismo? Escapam disso os céticos, os preguiçosos e
os estetas.[13]
Duvidar, não fazer e contemplar – é isso que produz o homem de Cioran,
que está fora do círculo do fanatismo, em que todos os outros se
enredam?
É difícil, diante dessa compreensão, não
virar na direção de Cioran, ou para nós mesmos, a pergunta sobre a
filosofia: o filósofo não tem outra saída senão se considerar um sério
candidato ao fanatismo? Afinal, mesmo que um filósofo se torne o
primeiro a se livrar do “melhorismo”, não está ele sujeito, pela sua
própria condição de filósofo, a se tornar um fanático do não-melhorismo?
Não conhecemos filósofos que se tornaram jornalistas pregadores das
doutrinas mais conservadoras, em um fanatismo maior do que os
“melhoristas”? Conhecemos. Será que eles são menos infernais que os
“melhoristas”, ou são tão insuportáveis quanto?
Há alguma trilha para a filosofia, mesmo
que contaminada, que não seja sempre uma ladeira pronta para fazer
descer alguma militância que, mesmo falando contra o absoluto, não trate
seu mundo sem absolutos como ele próprio um absoluto?
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* 2014 Paulo Ghiraldelli, filósofo.
[2] Ghiraldelli, P. A aventura da filosofia. Barueri: Manole, 2010, vol. 1.
[3] Cioran, E. Op. cit.
[4] Idem, ibidem, p. 14.
[5]
Nunca é demais lembrar que Platão, ele próprio, nunca foi um
plantonista fanático. Tanto é verdade que a Academia, após sua morte, se
tornou nas mãos de seu sobrinho uma escola cética.
[6]
Há os que tratam utopias de modo errado, achando que utopias são
projetos realizáveis, e que todo filósofo que projeta uma utopia a quer
vê-la realizada. Não é verdade. A utopia é por definição o “lugar
algum”, e irrealizável, e assim os filósofos a tomam, ao menos antes do
século XIX. É só a partir do século XIX que a palavra utopia começa a se
casar com o pensamento histórico e, então, paulatinamente pode ser
imaginada como uma idealização, um projeto. Habermas nota bem isso:
Habermas, J. A nova intransparência. In: Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo: 1987.
[7] Cioran, E. Op. cit., p. 14.
[8] [1932] Schlick, M. The future of Philosophy. In: Rorty, R. (org.) The linguistic turn. Chicago e Londres: Chicago Press, 1992, p. 48.
[9] Idem, ibidem, p. 15.
[10] Rorty. R. Philosophy and the Mirror of Nature. New Jersey: Princeton University Press, 1979, p. 46.
[11] Idem, ibidem, p. 17
[12] Idem, ibidem, p. 15.
Excelente. E se me permite um aforismo "nada mais aborrecido do que o Absoluto dos outros"
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