Esther Vivas*
“As companhias armazenam estes dados e utilizam-nos via
marketing para melhorar suas vendas. Assim, conhecem quem consome o que e
quando, podendo realizar exaustivos perfis de seus compradores. A
partir desse momento, oferecem-nos tudo aquilo de que ‘necessitamos’ e o
compramos encantados. Nossa vida privada nas mãos das empresas
converte-se em uma nova fonte de negócios. Nós nem tomamos consciência
disso.”
A reflexão é de Esther Vivas, em artigo publicado no jornal espanhol Público, 29-03-2014. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Nós associamos a compra no supermercado a modernidade, autonomia,
livre escolha, mas há poucos lugares no mundo, que fazem parte da nossa
vida cotidiana, tão controlados e monitorados quanto estes
estabelecimentos. Com a nossa compra, embora não pareça, há muito em
jogo. Por isso, em um supermercado nada está por acaso. Tudo é pensado
para que compremos, e quanto mais, melhor.
Um laboratório chamado ‘super’
Chegamos ao ‘super’ e cartazes, em geral de cores claras, nos dão as
boas-vindas animando-nos a entrar, muitas vezes acompanhados de ofertas
que anunciam preços muito baratos. Pegamos o carrinho, tão grande que
precisamos muito para enchê-lo para que não pareça vazio, e começamos a
busca do que precisamos por inúmeros corredores com estantes abarrotadas
de produtos. O carrinho, por mais que ande reto sempre esbarra com a
estante e ali você vê, como quem não quer a coisa, um novo artigo que
não esperava e o acrescenta à lista de compras.
Tem necessidade de leite e iogurte e precisa atravessar todo o centro
comercial para obtê-los. Por que sempre colocam aquilo de que mais
necessitamos no fundo do mercado? No caminho, um fio de música ritmada
toca. Quase não é possível ouvi-la, mas ela está aí, animando-o para
comprar. Você olha preços e nunca entende porque os preços não são
redondos, mas sempre terminam com decimais, dificultando a comparação
entre uns e outros. Sorte que você se fixa em todos aqueles que acabam
em nove, e assim economiza um pouco. Embora, talvez, também não haja
tanta diferença entre pagar um centavo a mais ou a menos. Isso sim, o
produto parece mais barato.
Às vezes é preciso parar, porque dois carrinhos com pessoas comprando
se encontram. E me pergunto: por que fazem os corredores tão estreitos?
Enfim. Aproveito para olhar uma estante e outra e ali está esse pacote
de batatas fritas que não me convém olhando de frente. Vai, não virá
daqui... ao carrinho! Avanço agora buscando o pacote de arroz que
preciso, mas já o mudaram outra vez de lugar. Não entendo porque cada x
de tempo mudam os produtos de lugar. Quando já sei o caminho de cor,
devo, novamente, dar mil voltas antes de encontrar o que procuro. Isso
sim, ao reaprender o caminho descubro novos produtos aos quais não havia
me antenado antes.
Resta-me apenas pegar o detergente. Na sessão de limpeza e à altura
dos olhos vejo essa marca que dizem, na televisão, deixa a roupa tão
limpa. Pego uma unidade e, por acaso, olho o preço... que caro! Devolvo a
unidade. Observo acima e abaixo na prateleira e ali encontro outra
marca menos conhecida, mas mais barata. Abaixo-me e a pego. Por que será
que a colocam em um lugar mais difícil para pegar? Chega a hora de
passar pelo caixa. Na fila e cansada com a espera vejo chocolates,
balas, guloseimas... e a apenas um palmo. Impossível dizer “não”. Vai
para a cesta.
Analisando meu “percurso”, me pergunto: quantas coisas comprei e que
não necessitava? Adquiri os produtos que me interessavam? Calcula-se que
entre 25% e 55% da nossa compra é compulsiva, fruto de estímulos
externos. Colocamos no carrinho, mesmo que não nos faça falta. E ao
passar por uma prateleira, cerca de 20% compram antes a marca que se
encontra na altura dos olhos do que outra qualquer, apenas por
comodidade, embora as outras sejam mais baratas. Sem estarmos
conscientes, somos porquinhos da índia em um grande laboratório chamado
‘super’.
Sorria, você está sendo filmado
Nossos movimentos em um supermercado nunca passam despercebidos. Uma
câmera ou outra, colocada aqui ou ali, registra tudo. Mas, o que é feito
com essas imagens? Sabemos quando estamos sendo filmados? Podemos ter
acesso a essas imagens? O professor Andrew Clement, da Universidade de Toronto e fundador do Instituto de Identidade, Privacidade e Segurança, assinala a nossa indefesa em relação a estas práticas. Segundo um estudo realizado por sua equipe no Canadá,
nenhuma das câmeras colocadas nos maiores centros comerciais canadenses
cumpria os requisitos de sinalização obrigatórios por Lei. Aqui, na Europa, a polêmica também está presente. Não temos ideia de que, nem como, nem quando filmam, nem o que fazem com as imagens.
A cadeia de supermercados Lidl protagonizou um dos
maiores escândalos quando, em março de 2008, descobriu-se que espiava
sistematicamente os seus trabalhadores em vários estabelecimentos na Alemanha
com mini-câmeras colocadas em lugares estratégicos. Cada segunda-feira,
estas câmeras serviam para controlar os trabalhadores, gravar suas
conversas e elaborar perfis pessoais detalhados. Não se trata de um caso
isolado. Sua concorrente, a Aldi, foi acusada, em março de 2013, de espiar os seus empregados em vários supermercados na Alemanha e na Suíça com câmeras ocultas, segundo a revista alemã Der Spiegel.
Aqui, a Agência Espanhola de Proteção de Dados abriu um processo sancionador contra a Alcampo por espiar os seus trabalhadores. No final de 2007, a Alcampo instalou secretamente em um hipermercado de Ferrol
três câmeras ocultas em espaços reservados aos funcionários. Semanas
depois, utilizou o conteúdo destas fitas para demitir um empregado e
punir outros onze.
Os consumidores são, também, objeto de voyeurismo. O último foi
estreado pela cadeia de supermercados Tesco, no final de 2013, na Grã-Bretanha.
A empresa instalou em 450 postos de combustíveis pequenas câmeras com o
objetivo de escanear o rosto de seus clientes na fila do
estabelecimento com o objetivo de detectar sua idade e sexo e
oferecer-lhes a publicidade mais apropriada aos seus perfis. O filme de
ficção científica Minority Report de Steve Spielberg
tornado realidade, mesmo que os anúncios personalizados a partir da
leitura da retina, como aparecia no filme, não precisem, pelo que
parece, esperar até 2054.
A nossa vida em um cartão
“Tem cartão de cliente?”, já é um ritual que nos perguntam quando
passamos pelo caixa. E se não o tem, oferecem-nos um mar de vantagens,
descontos e recompensas após a compra. Deste modo, corremos para
preencher o formulário, anotando todos os nossos dados, sem sequer ler o
que assinamos, para poder ter acesso o quanto antes a tão fantásticas
promoções. No entanto, o que acontece com a informação que damos? Quem a
usa? Para que finalidades? Isso é algo que não nos contam na hora de
preencher o formulário.
Os supermercados são os reis dos cartões de fidelização. Oferecem-nos
presentes, descontos, pontos... se passamos uma e outra e outra e outra
vez no caixa. Além de contar com a nossa fidelidade, as empresas da
grande distribuição buscam, mediante estes cartões cliente, conhecer
tudo, ou quase tudo, sobre a nossa vida privada: quem somos, a nossa
idade, estado civil, preferências, hobbies. À margem do que diz a ficha
que preenchemos, as compras periódicas que realizamos ficam, a partir de
então, registradas para sempre em nosso arquivo: se gostamos ou não de
chocolate, se preferimos a carne ao peixe, qual café, massa, bebidas,
conservas, verduras... Sabem tudo.
As companhias armazenam estes dados e utilizam-nos via marketing para
melhorar suas vendas. Assim, conhecem quem consome o que e quando,
podendo realizar exaustivos perfis de seus compradores. A partir desse
momento, oferecem-nos tudo aquilo de que “necessitamos” e o compramos
encantados. Nossa vida privada nas mãos das empresas converte-se em uma
nova fonte de negócios. Nós nem tomamos consciência disso.
O rastro do que compramos
Dizem que comprar no supermercado do futuro será mais prático,
cômodo, rápido e não precisaremos fazer fila nem passar pelo caixa.
Tudo, graças, entre outras coisas, à tecnologia de identificação por
radiofrequência ou etiquetas RFID. Etiquetas que contêm
um microchip e que registram informação detalhada sobre a “vida” do
produto no qual se encontram. São como um número de série único que
armazena e emite, através de antena, dados específicos sobre esse
artigo.
Assim, num futuro não tão distante, parece, poderemos entrar em um
supermercado, pegar um carrinho de compras “inteligente”, carregar em
sua base de dados a lista de compras, deixar que nos guie até os
produtos indicados, dar-nos informações sobre os mesmos e indicar o
quanto estamos gastamos. E ao sair, não será necessário passar pelo
caixa. Pelo fato de cada produto trazer embutido uma destas etiquetas,
uma antena receptora fará automaticamente a identificação e o total da
compra será debitado diretamente em nossa conta... e sem fazer fila. O
que mais podemos pedir?
O problema reside, como assinalaram grupos de consumidores nos Estados Unidos, como o Caspian (Consumidores contra a Invasão da Privacidade dos Supermercados) e o Epic
(Centro de Informação sobre Privacidade Eletrônica), no controle que
estes sistemas exercem sobre as pessoas. Nada impede, por exemplo, que
estas etiquetas possam continuar acumulando informação uma vez fora do
supermercado, seguindo cada um dos passos dos produtos e de nós como
consumidores.
Hoje, encontramos estas etiquetas RFID em alguns
produtos dos supermercados, que convivem com os tradicionais códigos de
barra. Seu custo, no entanto, limita no momento e em parte uma maior
generalização. Embora, segundo o Instituto Nacional de Tecnologias da Comunicação e a Agência Espanhola de Proteção de Dados
cada vez seja mais frequente encontrá-las nas etiquetas de roupas e
calçados assim como em sistemas para a identificação de mascotes,
cartões de transporte, pagamentos automáticos de pedágios, passaportes,
entre outros, colocando em risco a nossa privacidade.
Querem nos fazer crer que os centros comerciais são sinônimos de liberdade. Agora, o Supermercado Caprabo
apela, em sua publicidade, ao “livre comprador” que está dentro de nós.
“Damos-lhe tudo para que seja livre para escolher o que mais gosta”,
disse. No entanto, a liberdade de escolha não está no supermercado, mas
fora dele.
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* Colaboradora Internacional do Portal EcoDebate, escritora, ativista e pesquisadora em movimentos sociais e políticas agrícolas e alimentares.
Fonte: IHU online, 31/03/2014
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