D. José Policarpo*
Considerar a beleza um caminho de diálogo entre crentes
e não crentes é uma boa ideia mas de muito difícil realização,
sobretudo se se perspetiva este diálogo como meio de evangelização e
momento de anúncio da fé cristã. Deter-me-ei, para começar, nas
dificuldades, de ordem cultural, para arriscar, depois, a indicação de
alguns caminhos concretos, de ordem pastoral, com vista a este diálogo.
Dificuldades culturais
Identifico o primeiro grau de dificuldades no interior
da própria Igreja, enquanto comunidade de crentes. Este diálogo suporia
que os cristãos fossem capazes de tornar a beleza presente no diálogo
entre eles, na sua maneira de interpretar a vida, considerando a
plenitude da vida, à qual aspiram, como uma experiência de fé.
Identifica-se facilmente a beleza com a arte, sem que
se dê conta que pode haver experiências de beleza que nunca foram
materializadas em expressão artística. A beleza deveria ser uma
experiência contínua na vida do cristão. A Igreja possui um vasto
património de arte religiosa, mas ele é considerado sobretudo como um
tesouro a preservar, sem se ser capaz de o integrar nas expressões
atuais da vida de fé.
A Liturgia, fonte principal e viva da beleza cristã,
nem sempre o é, e a Teologia é mais influenciada pelo racionalismo
científico e pelas ciências humanas do que pela contemplação simples e
profunda da harmonia do mistério. A dimensão mística da compreensão da
fé pode revelar-se decisiva para fazer da vida uma experiência de
beleza. Há um longo caminho a percorrer na Teologia, na pastoral, na
linguagem, para tornar os cristãos capazes de fazer da beleza o lugar
de um diálogo com os não crentes. É preciso redescobrir o laço que
existe entre a fidelidade à verdade, a procura do bem, domínio da
moral, e a beleza.
Um segundo género de dificuldades reside no quadro
cultural, contexto inevitável deste diálogo. Todos consideram, de bom
grado, a arte e as expressões do belo como pertencendo ao mundo da
cultura. Mas as categorias culturais que inspiram os comportamentos
correntes são muito pouco influenciadas pela beleza. São prisioneiras
de uma racionalidade lógica, cartesiana, difundida pela via
científico-tecnológica, que gera uma visão pragmática da vida,
concebida como fruição, sem a contemplação do belo. A não crença, quer
se exprima no ateísmo assumido ou tome a forma do agnosticismo ou do
ateísmo prático, tem frequentemente a sua origem nesta racionalidade
limitada.
A dificuldade de integrar a beleza na racionalidade,
isto é, na procura da compreensão do Homem e do universo, não é
inevitável. Desde a Grécia Antiga que a beleza fazia parte da
racionalidade. O Homem era considerado como a síntese do universo, e
nele, na sua harmonia, compreendia-se toda a criação. A harmonia e a
proporção eram as suas características fundamentais. A ciência, através
da geometria e da matemática, e a arte, através da estética, seguiam os
mesmos códigos de expressão da realidade. A própria arte deveria
procurar a harmonia e a proporção, em ordem ao esplendor. Mais tarde,
este esplendor será sublinhado pela claridade, a epifania da luz e da
cor. O esplendor gera a o desfrutar. Gosta-se de contemplar o que é
belo. «O belo (kalón) é o que agrada, que suscita a admiração,
que atrai o olhar. O objeto belo, em virtude da sua forma, satisfaz os
sentidos, especialmente a visão e a audição. Mas não são apenas os
aspetos percetíveis aos sentidos que exprimem a beleza do objeto. No
caso do corpo, assumem igualmente um papel importante as qualidades da
alma e do caráter que são percebidos pelos olhos do espírito e não
apenas e sobretudo pelos do corpo» (Umberto Eco, História da Beleza). A
harmonia dos sentimentos e das ideias, eis o horizonte mais vasto da
beleza, inseparável do pensamento.
Isto permite-nos abordar um aspeto crucial da cultura
contemporânea: a relação entre a beleza, a verdade e a procura do bem (a
moral).
Beleza, verdade e procura do bem
A relação entre a beleza e a verdade interessa os
filósofos desde a época clássica. Platão, por exemplo, nega que a
beleza da arte possa exprimir a verdade profunda dos seres. É preciso
não esquecer que, na filosofia de Platão, a verdade profunda dos seres
está oculta pela matéria, onde se situam as artes figurativas, como a
pintura e a escultura. Nesta perspetiva, permanece aberta a procura de
uma beleza do espírito, de que a beleza sensível é a imagem, e o
anúncio, que é o aspeto importante para todo o diálogo sobre a beleza.
A perspetiva da filosofia cristã é esta: a beleza
sensível, e dos artistas e da harmonia do universo, é o anúncio da
beleza espiritual dos seres, sobretudo do Ser supremo, Deus. Como a
Palavra, a beleza é uma linguagem que desvela, revela, a beleza
interior. A beleza sensível é uma linguagem que nos permite atingir a
beleza espiritual, que brilha na profundidade do ser. Aqui, a relação
entre a beleza e a verdade é assumida positivamente; a arte torna-se
catequese e a beleza completa a Palavra, porquanto ela anuncia o
esplendor do mistério. Na perspetiva cristã, a relação da beleza com a
verdade situa-se ao nível da verdade vivida no amor, o que nos conduz
ao mistério do amor divino, na comunhão trinitária. Apenas o amor
vivido revela o esplendor da verdade. Veritatis splendor foi o título escolhido por João Paulo II para o documento sobre a moral. Este esplendor da verdade é a beleza.
Tocamos aqui na dimensão mística da beleza. Cito-vos um
autor da teologia oriental que define a beleza desta maneira: «A
verdade manifestada é o amor, e o amor realizado é a beleza». Rupnik
comenta assim esta definição: «Dos famosos transcendentais, a beleza
está no cume, onde o bem e a verdade tomam corpo. Ela coincide com a
plenitude do ser, mas revela-se no mundo exterior de maneira a permitir
que os olhos possam aperceber-se dela e se deixem encantar por ela. A
beleza é, assim, a forma sensível do bem e da verdade, a garantia de
que se trata do verdadeiro bem e da justa verdade. Em que se tornaria o
bem sem o verdadeiro, sem a verdade?» (T. Spidlik, M. Rupnik, Teologia Pastorale a partire dalla bellezza).
Neste sentido, a beleza está ligada ao amor vivido,
realizado, e na vida cristã isso é o fruto da ação do Espírito Santo,
«que se revela a si próprio na capacidade de ver a beleza das
criaturas». A ascese, como caminho de amor, é considerada obra de arte.
O mesmo autor continua: «O projeto de Deus sobre o Homem é esta
progressiva penetração do Espírito Santo em toda a pessoa humana, de
forma a tornar-se um raio de luz, quando se exterioriza. Todos os
santos são auréolas de luz. E é isso a beleza, dado que se trata de um
mundo penetrado de amor, de amor realizado. Através disto está o
sentido da vida espiritual: é o de tornarem-se belos, e não apenas bons»
(ibidem).
Caminhos pastorais
Como fazer passar esta perspetiva num diálogo pastoral,
sobretudo com os não crentes? Em primeiro lugar, é preciso
aprofundá-la entre os crentes, na sua forma de descobrir a vida e de
procurar a verdade. Trata-se, antes de mais, de um processo educativo,
que passa pela catequese e pela escola, mais preocupadas com a
transmissão de conteúdos de conhecimento e de explicação, e pouco
abertas à perspetiva da beleza, para a qual, em todo o caso, as
crianças são particularmente sensíveis. É necessário, para começar,
ensinar-lhes a discernir as experiências de beleza no quotidiano da
vida: a beleza do amor, da ternura, da generosidade. Mas também de as
ajudar a contactar com as coisas belas, na natureza e na arte. O
riquíssimo património de arte religiosa pode tornar-se um caminho de
descoberta da beleza de Deus. Pode descobrir-se a beleza da vida
através da arte. Isso exige que as imagens e outras obras de arte
religiosas, nas nossas igrejas, deixem de ser presenças silenciosas e
ignoradas, mas se tornem parceiras do caminho de uma comunidade, e que
as exposições ou museus não sejam somente exposições, mas ocasiões de
itinerários, orientados por pessoas preparadas, que ajudem a descobrir a
verdade que elas anunciam e de que são irradiação. Isso supõe, também,
uma transformação da Teologia, toda ela pastoral, enquanto
apresentação da verdade e da beleza do caminho cristão. Apenas a
perspetiva da beleza pode tornar a Teologia mais simples, compreensível
para todos.
O diálogo com os não crentes situa-se ao nível do
diálogo cultural, onde a perspetiva da beleza se abre a uma dimensão
transcendente da vida, porquanto a beleza é, nela mesma, afirmação da
transcendência da existência.
Hoje, sob os efeitos dos média, há um diálogo
frequente, em múltiplas circunstâncias, entre crentes e não crentes. É
muito importante que todos nós, clero e leigos, saibamos enquadrar a
nossa maneira de dialogar neste pano de fundo de beleza. Não se trata
de falar explicitamente sobre a beleza, mas de falar sobre qualquer
assunto de uma maneira em que a perspetiva da beleza esteja presente.
Pode projetar-se, também, como caminho para este
diálogo, a integração de artistas em iniciativas evangelizadoras da
Igreja. A nossa modesta experiência, em Lisboa, mostra que eles aceitam
com gosto participar, mesmo se se declaram não crentes. Excetuando
aqueles que são explicitamente crentes, os artistas têm uma
religiosidade difusa, mas aberta à participação em iniciativas de
qualidade. A sua participação pode concretizar-se na conceção do evento,
na elaboração de textos e na execução. Para a sessão de Lisboa do
Congresso Internacional para a Nova Evangelização [ICNE], convidámos,
através da Sociedade Nacional de Belas Artes, cuja presidente é uma
pintora católica comprometida [Emília Nadal], artistas plásticos a
criar uma peça sobre Cristo. A iniciativa foi muito bem acolhida e
organizou-se uma exposição, na sede da Sociedade, com cerca de quarenta
peças originais sobre Cristo. Os autores estiveram, na maioria, na
abertura da exposição, e gostaram de falar e de me dizer o significado,
para eles, desta participação. Alguns vieram, depois, individualmente,
prosseguir este diálogo.
Na mesma ocasião, outra iniciativa, coroada de sucesso,
foi um ciclo de cinema sobre Cristo, organizado pela Cinemateca
Nacional, durante uma semana. Cada filme foi precedido de uma
apresentação e seguido de uma curta mesa redonda em que se estabeleceu o
diálogo com o público. A sala encheu todos os dias da semana.
Tratam-se de pequenas gotas num vasto oceano; mas sem
elas, o oceano seria menos belo. A dificuldade, da nossa parte, reside
na preparação de pessoas que possam, com a autoridade que o meio exige,
preparar estas iniciativas, e poder investir o dinheiro necessário.
A valorização do património artístico religioso é um
campo aberto a este diálogo. A música é a mais fácil, tendo em conta o
conjunto de órgãos de grande qualidade nas nossas igrejas. É preciso
lutar para que este património seja considerado um elemento vivo e
atual numa Igreja viva. A perspetiva oficial dos especialistas, neste
domínio, tende frequentemente a separá-lo da Igreja de hoje,
considerando-o como um testemunho do passado. O que conduz a considerar
a Igreja como um fenómeno do passado. A Igreja foi bela; mas deixou de
o ser.
Termino, testemunhando-vos a minha convicção de que é
preciso aceitar que este diálogo seja feito sem esperar resultados
visíveis e previsíveis. É a semente lançada nos corações sensíveis à
beleza e que, talvez, só floresça nos jardins do Senhor.
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D. José Policarpo - Cardeal de Portugal. Morreu a 12 de Março de 2014, aos 78 anos, vítima de um aneurisma na aorta.
Encontro dos membros e consultores do Pontifício Conselho da Cultura e dos presidentes das comissões para a cultura das conferências episcopais da Europa
Sibiu, Roménia, 4.5.2007
In Pontifício Conselho da Cultura / Patriarcado de Lisboa
Trad.: SNPC/rjm
25.03.14
Encontro dos membros e consultores do Pontifício Conselho da Cultura e dos presidentes das comissões para a cultura das conferências episcopais da Europa
Sibiu, Roménia, 4.5.2007
In Pontifício Conselho da Cultura / Patriarcado de Lisboa
Trad.: SNPC/rjm
25.03.14
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