sexta-feira, 21 de março de 2014

A primavera está por toda a parte. Até em nós?

José Tolentino Mendonça*

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A primavera está por toda a parte. Em nosso redor a natureza parece vencer a imobilidade do inverno e amontoa os traços insinuantes do seu reflorir. Há uma seiva que revitaliza a paisagem do mundo. Mesmo nos baldios, nos pátios e quintais abandonados, nos jardins mais desprovidos a primavera desponta com uma energia que arrebata. Penso muitas vezes nos versos do Cântico dos Cânticos, o mais primaveril poema da Bíblia: «Fala o meu amado e diz-me: “Levanta-te! Anda, vem daí, ó minha bela amada! Eis que o inverno já passou, a chuva parou e foi-se embora; despontam as flores na terra, chegou o tempo das canções, e a voz da rola já se ouve na nossa terra; a figueira faz brotar os seus figos e as vinhas floridas exalam perfume. Levanta-te! Anda, vem daí, ó minha bela amada! Minha pomba, nas fendas do rochedo, no escondido dos penhascos: deixa-me ver o teu rosto, deixa-me ouvir a tua voz; pois a tua voz é doce e o teu rosto, encantador”» (Ct 2, 10-14). Neste poema, a primavera do mundo é uma representação simbólica da primavera interior que nos desafia. Na verdade, o nosso coração não pode continuar eternamente sequestrado pelos impasses dos seus invernos gelados. A nossa vida está prometida à primavera – é a mensagem que o despertar da natureza (e aquele mais íntimo) nos parece segredar.

Mas também acontece que o renascimento do mundo nos parece incomparavelmente mais simples que o nosso. Por nossa parte, sentimo-nos soterrados e sem forças. Achamos que já passou demasiado tempo, que em algum momento do percurso nos perdemos e que talvez isso seja agora irremediável. Vamo-nos deixando ficar num conformismo tácito, insatisfeitos e adiados, a ponto de desistir. Certamente a voz da primavera não nos deixa indiferentes: ela há de sempre sobressaltar-nos. Mas olhamos para ela com mais nostalgia do que com esperança. Contemplámo-la à distância. Ou então defendemo-nos dela como podemos, fingindo não perceber o que significa. No fundo de nós mesmos, consideramos que a primavera já não é para nós. E no nosso coração andamos às voltas com aquela pergunta que também a Bíblia conserva e que não temos paz enquanto não conseguirmos responder: «Pode um homem, sendo velho, nascer de novo?» (Jo 3,4).


Os cristãos percorrem por estes dias um tempo litúrgico que é uma espécie de pronto-socorro da primavera. Falo da quaresma. Gosto de explicá-la a mim mesmo como um curso intensivo de jardinagem, pois trata-se de revitalizar a paisagem da vida, projetando-a dinamicamente, devolvendo-lhe intensidade e cor. A quaresma aprofunda três sulcos, afinal muito simples (o da oração, o da esmola e o da renúncia a que chamamos jejum), mas pode constituir uma alavanca de transformação que restaura em nós a liberdade de ser, que cimenta a capacidade de reconstruir a vida e de a viver fraternalmente, que nos dá um sentido de confiança capaz de abraçar criativa e serenamente a própria fragilidade, que melhora o nosso ânimo e até o nosso humor. Fazemos Quaresma para arriscar a Páscoa.
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* Teólogo. Poeta. Escritor.
In Diário de Notícias (Madeira)
Imagem: Vincent Van Gogh
14.03.11 ! Atualizado em 20.03.14

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