José Tolentino Mendonça*
A primavera está por toda a parte. Em nosso redor a
natureza parece vencer a imobilidade do inverno e amontoa os traços
insinuantes do seu reflorir. Há uma seiva que revitaliza a paisagem do
mundo. Mesmo nos baldios, nos pátios e quintais abandonados, nos
jardins mais desprovidos a primavera desponta com uma energia que
arrebata. Penso muitas vezes nos versos do Cântico dos Cânticos, o mais
primaveril poema da Bíblia: «Fala o meu amado e diz-me: “Levanta-te!
Anda, vem daí, ó minha bela amada! Eis que o inverno já passou, a chuva
parou e foi-se embora; despontam as flores na terra, chegou o tempo
das canções, e a voz da rola já se ouve na nossa terra; a figueira faz
brotar os seus figos e as vinhas floridas exalam perfume. Levanta-te!
Anda, vem daí, ó minha bela amada! Minha pomba, nas fendas do rochedo,
no escondido dos penhascos: deixa-me ver o teu rosto, deixa-me ouvir a
tua voz; pois a tua voz é doce e o teu rosto, encantador”» (Ct 2,
10-14). Neste poema, a primavera do mundo é uma representação simbólica
da primavera interior que nos desafia. Na verdade, o nosso coração não
pode continuar eternamente sequestrado pelos impasses dos seus
invernos gelados. A nossa vida está prometida à primavera – é a mensagem
que o despertar da natureza (e aquele mais íntimo) nos parece
segredar.
Mas também acontece que o renascimento do mundo nos
parece incomparavelmente mais simples que o nosso. Por nossa parte,
sentimo-nos soterrados e sem forças. Achamos que já passou demasiado
tempo, que em algum momento do percurso nos perdemos e que talvez isso
seja agora irremediável. Vamo-nos deixando ficar num conformismo tácito,
insatisfeitos e adiados, a ponto de desistir. Certamente a voz da
primavera não nos deixa indiferentes: ela há de sempre
sobressaltar-nos. Mas olhamos para ela com mais nostalgia do que com
esperança. Contemplámo-la à distância. Ou então defendemo-nos dela como
podemos, fingindo não perceber o que significa. No fundo de nós
mesmos, consideramos que a primavera já não é para nós. E no nosso
coração andamos às voltas com aquela pergunta que também a Bíblia
conserva e que não temos paz enquanto não conseguirmos responder: «Pode
um homem, sendo velho, nascer de novo?» (Jo 3,4).
Os cristãos percorrem por estes dias um tempo litúrgico
que é uma espécie de pronto-socorro da primavera. Falo da quaresma.
Gosto de explicá-la a mim mesmo como um curso intensivo de jardinagem,
pois trata-se de revitalizar a paisagem da vida, projetando-a
dinamicamente, devolvendo-lhe intensidade e cor. A quaresma aprofunda
três sulcos, afinal muito simples (o da oração, o da esmola e o da
renúncia a que chamamos jejum), mas pode constituir uma alavanca de
transformação que restaura em nós a liberdade de ser, que cimenta a
capacidade de reconstruir a vida e de a viver fraternalmente, que nos
dá um sentido de confiança capaz de abraçar criativa e serenamente a
própria fragilidade, que melhora o nosso ânimo e até o nosso humor.
Fazemos Quaresma para arriscar a Páscoa.
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* Teólogo. Poeta. Escritor.
In Diário de Notícias (Madeira)
Imagem: Vincent Van Gogh
14.03.11 ! Atualizado em 20.03.14
In Diário de Notícias (Madeira)
Imagem: Vincent Van Gogh
14.03.11 ! Atualizado em 20.03.14
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