Sírio Possenti*
Imagem do cérebro humano resultante de um diálogo entre
ciência e arte. A tese de que a linguagem expressa o pensamento não é
falsa, mas não pode ser aceita como indiscutível. (imagem: Juan Ramon
Rodriguez Sosa/ Flickr – CC BY-SA 2.0)
A suposição de que deve haver relação direta entre palavras e
coisas e entre coisas e a mente faz ‘especialistas’ condenarem frases
que não violam as regras da língua.
Creio que se pode dizer que é só entre leigos que a tese segundo a
qual a linguagem expressa o pensamento é uma tese aceita como
indiscutível. O que não significa que seja falsa, mas apenas que a
versão ‘leiga’ se aplica mais ou menos cegamente e tende a descartar
como problemáticas construções que não pareçam conformes à razão
elementar (expor textos a comentários fornece uma interessante
experiência: quanto menos os leitores são especialistas, mais certezas
eles têm).
O português apresenta um conjunto de construções que nenhum linguista
considera estranhas, no sentido de violarem regras do sistema da
língua, mas que são, vulgarmente, consideradas sem sentido. Pode-se ler
isso facilmente em colunas que tratam de língua nos jornais.
Alguns exemplos podem ser: “o governador está previsto para chegar às
14h”, “só fumem nas áreas permitidas”, “meu carro furou o pneu”.
Comecemos por este último (ver a coluna 'Por que falamos como falamos?').
O português apresenta um conjunto de construções que nenhum linguista
considera estranhas, no sentido de violarem regras do sistema da língua,
mas que são, vulgarmente, consideradas sem sentido
O fato mais evidente que aqui se pode verificar é que o ‘possuidor’
(o carro) funciona como sujeito.
Quem critica esse tipo de construção
dirá que, sendo ‘furar’ um verbo de ação, a estrutura dá a entender que
‘o carro’ é o agente, o que é um absurdo.
A solução apresentada é a de sempre: eliminar tais construções,
ensinar o português correto, de preferência fazendo apelo à razão, para
que os aprendizes se deem conta de que estão dizendo frases sem sentido.
Acontece que os que empregam essas construções não acham que não
fazem sentido. Eles simplesmente as interpretam adequadamente, sabem
perfeitamente que essa oração quer dizer que o pneu do carro (um pneu
entre tantos...) passou de um estado a outro como consequência de um
fato não mencionado. Não se acusa ninguém de ser responsável pelo
evento. Muito menos o carro...
O erro está na teoria de interpretação evocada pelos ‘professores’,
que supõem que deva haver uma relação direta entre as palavras e as
coisas e entre as coisas e a mente.
Sintaxe e semântica
Vejamos o segundo caso: “só fumem nas áreas permitidas” (um aviso que
se ouve nas aeronaves, assim que pousam). Se se considerar estritamente
a relação entre a oração e os fatos, vê-se logo que a construção não
parece literal. Afinal, o que é permitido (ou não) é fumar. Assim, a
construção ‘área permitida’ parece estranha; as duas palavras não
combinam semanticamente.
A sequência que deriva essa expressão poderia ser representada assim:
fumar nas áreas em que fumar é permitido -> fumar nas áreas em que
[x] é permitido -> fumar nas áreas que é permitido -> fumar nas
áreas permitidas.
A oração adjetiva ‘em que é permitido’ se reduz ao final a um
adjetivo e, assim, concorda sintaticamente com ‘áreas’. Mas essa
aproximação sintática não implica necessariamente que a relação
semântica seja de predicação ‘profunda’.
Ou seja: a sintaxe não transforma o carro em agente nem a área em
permitida. O pneu continua furado sabe-se lá por quê, e é ainda fumar
que é permitido em certos lugares.
Finalmente, considere-se “o governador está previsto para chegar às
14h”. Aceite-se como óbvio que a previsão é relativa à chegada, não ao
governador. Mas não se pode esquecer que se trata da chegada dele, do
governador, ou seja, que ele não está ausente das informações.
Os elementos com os quais o falante tem que lidar são: previsão –
chegada – governador. Pode arranjá-los diferentemente, do ponto de vista
sintático, sem prejuízo do sentido. Pode dizer:
a chegada do governador está prevista... OU está previsto que o
governador chegue... OU o governador está previsto para chegar... Entre
outras, claro, como: “a previsão é que o governador chegue”, “a previsão
é que a chegada do governador ocorra”...
A construção que merece reparos dos que querem ‘clareza’ e ‘lógica’ é
a que predica diretamente ‘previsto’ a ‘governador’. A alegação é que o
governador não é previsto, no mundo real, e sim sua chegada. Alega-se
que, querendo ‘governador’ na cabeça, que então se deve dizer ‘o
governador tem sua chegada prevista...”.
Nada contra, muito pelo contrário. Na hora de ensinar, isto é, nas
aulas de português, quanto mais alternativas propostas, melhores serão
as aulas. Mas, se o que se quer é tratar de análise, não é bom misturar
norma com gosto, preconceito ou teorias que não levam os fatos em conta.
O erro está em mapear sintaxe e semântica, em fazer corresponder diretamente palavras e coisas, coisas e sua
representação mental
Não se pode impedir que ‘governador’ fique na cabeça da oração. E a
consequência dessa decisão é que ‘previsto’ deve aparecer nessa forma,
por exigência das regras de concordância.
O erro está em mapear sintaxe e semântica. Em todos os exemplos, o
erro está em fazer corresponder diretamente palavras e coisas, coisas e
sua representação mental.
A relação de ‘governador’ com ‘previsto’ se explica também por outra
hipótese. Estamos acostumados a pensar que as relações entre palavras
(numa oração) são do tipo tudo ou nada.
Assim, pensamos em geral que, em casos como “ele anda rápido”,
‘rápido’ é um advérbio e, portanto, se relaciona apenas com o verbo.
Mas, se ‘rápido’ se relaciona a ‘anda’ e ‘anda’ se relaciona a ‘ele’,
não deixa de haver uma relação (em pontilhado, secundária) entre
‘rápido’ e ‘ele’.
Se a chegada do governador está prevista, quem chega é o governador.
Não há como impedir que esse liame ‘psicológico’ seja considerado.
Aliás, a frase analisada mostra que ele pode passar para o primeiro
plano. É disso que resulta “o governador está previsto”, que está longe
de ser uma aberração. Embora não seja a única alternativa, como deveria
ser claro.
-------------------------
* Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas
-------------------------
* Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas
Fonte: http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/palavreado/linguagem-e-pensamento
Nenhum comentário:
Postar um comentário