domingo, 16 de março de 2014

Um papa pra chamar de seu

Rodrigo Coppe Caldeira*
 

Na era da 'espiritualidade: faça você mesmo', Francisco é um quase-produto, usado simbolicamente por grupos em comunhão ou não com Roma 
Os caminhos da igreja são de fato insondáveis. Foi o que afirmei um dia depois da eleição do argentino Jorge Mario Bergoglio ao sólio papal em artigo para a Folha

Ao escolher o nome Francisco e se apresentar no balcão da basílica de São Pedro de maneira inédita como bispo de Roma, pedindo aos presentes que rezassem por ele, inaugurou a temporada das especulações: quem era aquele homem? O que a escolha daquele nome significava? Aquele seria o papa que mudaria o rosto da igreja? 

Centenas de análises foram feitas no decorrer deste ano, no qual Francisco se tornou o queridinho da opinião pública, desbancando seu "antecessor midiático", João Paulo 2º. Sua imagem está por todos os lados: é o perfil mais influente no Twitter, foi eleito personalidade do ano de 2013 pela revista norte-americana "Time", apareceu inesperadamente na capa da revista de cultura popular "Rolling Stones", é figurinha fácil nos jornais diários pelo mundo. 

Neste momento em que a imagem tem papel central nas relações sociais, delineando identidades e marcando quão "autênticos" somos, Francisco torna-se um papa na medida do nosso tempo. Não que ele se queira assim. Mas assim se torna. 

Na era do "consumo emocional" identificado pelo sociólogo francês Gilles Lipovetsky e da "espiritualidade: faça você mesmo", Francisco é um quase-produto, usado e abusado simbolicamente de diferentes maneiras por indivíduos e grupos em comunhão ou não com Roma. 

A obsessão atual por autenticidade, concretizada na busca por singularidades e excepcionalidades que nada mais são do que expressões do "mito do genuíno", fornece esse caldo psicocultural por meio do qual os sujeitos se relacionam e interpretam os significados em torno de Francisco. 

São através dessas lentes que enxergam o papa, que, por sua desenvoltura pessoal carismática, desperta as mais variadas experiências imaginárias, afetivas e emocionais. Ao não ceder a modelos já estabelecidos, Francisco age livremente, pronunciando-se sobre temas de maneira nunca antes feita por seus predecessores, o que encanta e gera identificação a diversos grupos. 

Escuta-se, aqui e ali, as reações positivas de algumas pessoas que se sentem profundamente tocadas pelos seus gestos e palavras, seu olhar e seu sorriso. Ao se colocar de forma aberta frente às diferenças e assumir publicamente seus próprios erros --como o furto de uma cruz que praticou no passado--, Francisco desperta emoções nos corações mais reticentes com a instituição que ele representa e se aproxima de maneira inédita daqueles que já não esperavam mais nada da igreja. 

É tarefa difícil ficar impassível à sua imagem. Aquele homem de branco, tão humano e próximo, que carrega sua própria valise e opta por uma vida simples tornou-se um exemplo para a contemporaneidade e seus indivíduos atomizados, que fazem dele um "papa pessoal". 

Resta saber se esse impacto da imagem de Francisco renderá frutos à Igreja Católica diante da crise cultural em que está imersa e se possibilitará o retorno à vida sacramental daqueles muitos católicos não praticantes que perderam a sensação de acolhimento nessa instituição. 
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*RODRIGO COPPE CALDEIRA, 36, historiador, é professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) e autor de "Os Baluartes da Tradição" 
Fonte: Folha online, 16/03/2014
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