Rodrigo Coppe Caldeira*
Na era da 'espiritualidade: faça você mesmo', Francisco é um
quase-produto, usado simbolicamente por grupos em comunhão ou não com
Roma
Os caminhos da igreja são de fato insondáveis. Foi o que afirmei um dia
depois da eleição do argentino Jorge Mario Bergoglio ao sólio papal em
artigo para a Folha.
Ao escolher o nome Francisco e se apresentar no balcão da basílica de
São Pedro de maneira inédita como bispo de Roma, pedindo aos presentes
que rezassem por ele, inaugurou a temporada das especulações: quem era
aquele homem? O que a escolha daquele nome significava? Aquele seria o
papa que mudaria o rosto da igreja?
Centenas de análises foram feitas no decorrer deste ano, no qual
Francisco se tornou o queridinho da opinião pública, desbancando seu
"antecessor midiático", João Paulo 2º. Sua imagem está por todos os
lados: é o perfil mais influente no Twitter, foi eleito personalidade do
ano de 2013 pela revista norte-americana "Time", apareceu
inesperadamente na capa da revista de cultura popular "Rolling Stones", é
figurinha fácil nos jornais diários pelo mundo.
Neste momento em que a imagem tem papel central nas relações sociais,
delineando identidades e marcando quão "autênticos" somos, Francisco
torna-se um papa na medida do nosso tempo. Não que ele se queira assim.
Mas assim se torna.
Na era do "consumo emocional" identificado pelo sociólogo francês Gilles
Lipovetsky e da "espiritualidade: faça você mesmo", Francisco é um
quase-produto, usado e abusado simbolicamente de diferentes maneiras por
indivíduos e grupos em comunhão ou não com Roma.
A obsessão atual por autenticidade, concretizada na busca por
singularidades e excepcionalidades que nada mais são do que expressões
do "mito do genuíno", fornece esse caldo psicocultural por meio do qual
os sujeitos se relacionam e interpretam os significados em torno de
Francisco.
São através dessas lentes que enxergam o papa, que, por sua desenvoltura
pessoal carismática, desperta as mais variadas experiências
imaginárias, afetivas e emocionais. Ao não ceder a modelos já
estabelecidos, Francisco age livremente, pronunciando-se sobre temas de
maneira nunca antes feita por seus predecessores, o que encanta e gera
identificação a diversos grupos.
Escuta-se, aqui e ali, as reações positivas de algumas pessoas que se
sentem profundamente tocadas pelos seus gestos e palavras, seu olhar e
seu sorriso. Ao se colocar de forma aberta frente às diferenças e
assumir publicamente seus próprios erros --como o furto de uma cruz que
praticou no passado--, Francisco desperta emoções nos corações mais
reticentes com a instituição que ele representa e se aproxima de maneira
inédita daqueles que já não esperavam mais nada da igreja.
É tarefa difícil ficar impassível à sua imagem. Aquele homem de branco,
tão humano e próximo, que carrega sua própria valise e opta por uma vida
simples tornou-se um exemplo para a contemporaneidade e seus indivíduos
atomizados, que fazem dele um "papa pessoal".
Resta saber se esse impacto da imagem de Francisco renderá frutos à
Igreja Católica diante da crise cultural em que está imersa e se
possibilitará o retorno à vida sacramental daqueles muitos católicos não
praticantes que perderam a sensação de acolhimento nessa instituição.
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*RODRIGO COPPE CALDEIRA, 36, historiador, é professor do
Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas (Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais) e autor de "Os Baluartes da
Tradição"
Fonte: Folha online, 16/03/2014
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