Thomas Scanlon, autor de What we owe to each other, explora as relações de responsabilidade socialmente construídas que implicam nas ações de um agente
Coagida por um assaltante armado, uma atendente de banco
poderia ser responsabilizada pelo prejuízo financeiro da instituição? Ou
ainda, qual o tipo de responsabilidade desta personagem hipotética
sobre o papel que exerceu no crime em questão? E quais as relações que
construímos em nossa sociedade para compreender as responsabilidades que
temos uns com os outros? Essa é a discussão que o filósofo e escritor
Thomas Scanlon, um dos grandes nomes do neocontratualismo contemporâneo,
apresenta nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
De acordo com o professor Thomas Scalon, considerando os casos acima
citados, a questão da voluntariedade dos agentes não é central para
qualquer tipo de responsabilidade. Segundo ele, “o necessário é que a
ação de fato reflita as atitudes do agente.” Para o filósofo, o
entendimento dessa questão passa por compreendermos as diferenças entre a
responsabilidade moral e a substantiva (imputável – que é passível de
punição legal), a suposta autonomia do sujeito contemporâneo e as
contribuições de John Rawls, Immanuel Kant e Jean-Jacques Rousseau para o
debate acerca do contratualismo.
Thomas M. Scanlon Jr. é professor de Religião
Natural, Filosofia Moral e Política Civil da Universidade de Harvard.
Graduou-se em Filosofia em Princeton e obteve doutorado em Harvard. Seus
estudos iniciais dedicavam-se à lógica matemática, mas o grosso de sua
produção voltou-se para a filosofia moral e política. Scanlon é autor de
What We Owe to Each Other (Cambridge, Mass.: Belknap Press, 1998), The
Difficulty of Tolerance: Essays in Political Philosophy (Cambridge:
Cambridge University Press, 2003), Moral Dimensions: Permissibility,
Meaning, Blame (Cambridge: Belknap Press, 2008) e, da obra lançada este
ano, Being Realistic about Reasons (Oxford University Press, 2014).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que é responsabilidade substantiva e responsabilidade por imputabilidade?
Thomas Scanlon – Condições de responsabilidade são
as condições necessárias para que a ação ou a atitude de um agente tenha
certas consequências morais. Um tipo de consequência é tornar
apropriadas certas reações morais positivas ou negativas à pessoa, tais
como culpa, ressentimento, louvor ou gratidão. Outro tipo de
consequência moral é uma mudança nas obrigações da pessoa para com os
outros, ou dos outros para com ela. Por exemplo, se eu sou responsável
por prejudicar outra pessoa, então posso ter a obrigação de compensar
essa mesma pessoa. Se eu sou responsável por uma perda para mim mesmo,
pode significar que tenho menos direito de reivindicação contra os
outros para que me ajudem a lidar com isso. Chamarei as questões de
responsabilidade desses dois tipos de responsabilidade moral e
responsabilidade substantiva, respectivamente.
Em cada caso, identificar quais são as condições de responsabilidade é
uma questão moral de primeira ordem sobre o que é necessário para que
as consequências morais relevantes aconteçam. A resposta a essa pergunta
dependerá, portanto, exatamente de quais consequências serão tomadas.
No caso que acabei de chamar de responsabilidade moral, a consequência é
tomar certas "atitudes reativas" em direção ao agente, incluindo
atitudes como ressentimento e indignação, famosamente enfatizadas por P.
F. Strawson . Mas também, creio eu, incluem certas mudanças na
compreensão da pessoa de sua relação com o agente e em suas intenções
sobre como agir em relação a ele, que incluem a perda de confiança, da
vontade de ajudar ou de tornar-se amigo da pessoa .
Acredito que essas atitudes reativas podem ser tomadas de modo
apropriado simplesmente pelo fato de que o agente tem certas atitudes em
relação aos outros, como a falta de preocupação adequada com os
interesses deles. A questão da responsabilidade moral de um agente por
uma ação (a questão de saber se essa ação gera culpa ou outras reações
apropriadas), portanto, resume-se a saber se esta ação mostra o agente
tendo tais atitudes defeituosas. Isso poderia ser posto como a questão
de saber se tais atitudes são atribuíveis ao agente com base nessa ação,
e é por isso que, em What We Owe to Each Other, eu usei o termo
"responsabilidade como imputabilidade" [“responsibility as
attributability”] para me referir a essa forma de responsabilidade.
Apesar de ter mencionado apenas atitudes reativas "negativas", como
culpa e ressentimento, acredito que as mesmas condições de
responsabilidade moral se aplicam no caso de reações positivas, como a
gratidão. A gratidão é apropriada apenas no caso de a ação do agente
mostrar um nível particularmente elevado de preocupação para com a outra
pessoa e um desejo de beneficiá-la.
Esta visão da responsabilidade leva-me a dizer — o que pode parecer
surpreendente — que na maioria dos casos a coerção não enfraquece a
responsabilidade moral. A atendente do banco que diante de uma ameaça
crível entrega o dinheiro da gaveta é responsável por fazê-lo, mas ela
pode merecer a gratidão ou mesmo uma recomendação especial por lidar com
a situação com tanta calma. Isto se deve ao fato de que as atitudes que
são atribuíveis a ela, com base em sua ação, podem ser louváveis. A
coerção revela que a atendente não deve ser censurada, pois tal ação
alterou os motivos pelos quais ela entregaria o dinheiro. Isto, no
entanto, não faz desta uma ação pela qual ela não seja responsável. Ela
ainda é devidamente elogiada ou culpada — no caso, elogiada — pelas
atitudes atribuídas a sua base de ação.
Também é verdade, no entanto, que a entrega do dinheiro ao ladrão
pela atendente do banco não tem a consequência moral de fazer o dinheiro
ser dele. Se tivesse esta consequência, seria uma questão de
responsabilidade substantiva. Tal consequência não existe, pois acontece
de forma não livre, isto é, sob coerção. Assim, poderíamos dizer que a
falta de liberdade do tipo envolvido na coerção enfraquece a
responsabilidade substantiva, mas não a responsabilidade moral
(responsabilidade como imputabilidade). Isso é correto no caso em
questão, mas seria um erro generalizar e dizer que os tipos de
consequências morais envolvidos na responsabilidade substantiva —
transferência de propriedade, consentimento, renúncia a um direito, etc.
— fluem somente a partir de ações que são voluntárias ou expressam a
livre escolha do agente. O que eu faço, ou deixo de fazer, pode ter
consequências desse tipo, mesmo quando isso não reflete qualquer escolha
consciente de minha parte.
Se eu comprar entradas de teatro pela internet — e uma condição para a
venda é que eu tenho de buscá-las ao menos 30 minutos antes da hora do
início do espetáculo — então eu perco qualquer pretensão de possuir as
entradas se eu não conseguir fazer isso, mesmo que o meu fracasso seja
resultado de uma pura intenção ausente, ao invés de qualquer escolha ou
decisão, e mesmo que eu não tenha percebido essa condição quando cliquei
em "comprar entradas". Para que a minha falha ao pegar as entradas
tenha essa consequência é suficiente que o teatro, ou a agência de
reservas, tenha feito o máximo que podia ser obrigado a fazer para me
deixar ciente dessa condição. Não importa se eu, de fato, notei essa
condição e "livremente escolhi" ignorá-la. Se eu notei ou não, o
resultado é que eu sou "responsável" e não posso me queixar.
IHU On-Line - Quais são os nexos e distanciamentos entre ambos os tipos de responsabilidade?
Thomas Scanlon – Pode parecer natural dizer que o
que as duas formas têm em comum é que uma pessoa somente é responsável
por alguma coisa, em ambos os sentidos, se estiver sob o seu controle
voluntário. No entanto, no meu ponto de vista isso é falso. A
voluntariedade pode desempenhar um papel nas condições de
responsabilidade de ambos os tipos em alguns casos, mas não é central
para qualquer forma de responsabilidade. Como o caso da atendente do
banco indica, se uma ação foi voluntária (não coagida) ela tem um papel
na determinação de quais atitudes são imputáveis ao agente, mas para que
um agente seja responsável por uma ação não é necessário que esta seja
realizada livremente ou que as atitudes que reflita estejam sob o
controle voluntário do agente. O necessário é que a ação de fato reflita
as atitudes do agente. No caso de responsabilidade substantiva, o que
importa é a qualidade das condições em que o agente teve a oportunidade
de escolher para incorrer em uma consequência ou não. Como o caso das
entradas de teatro mostra, não é necessário que o agente realmente tenha
feito tal escolha.
IHU On-Line - Em que sentido esses tipos de responsabilidade tensionam a autonomia do sujeito contemporâneo?
Thomas Scanlon – Eu sou bastante desconfiado do
termo "autonomia", porque ele pode ser entendido de muitas maneiras
diferentes. É particularmente importante evitar essa ambiguidade, porque
o termo parece creditar um nível elevado de importância àquilo que ele
designa. Prefiro falar simplesmente em termos de "escolha", "valor da
escolha" e de ser "receptivo às razões". Se autônomo é entendido
simplesmente como o fato de ter a capacidade de agir em resposta às
razões que um indivíduo tem, então a autonomia é pressuposta por ambas
as formas de responsabilidade que descrevi. As condições de
responsabilidade como a imputabilidade surgem a partir da preocupação
dos outros com as atitudes de um agente em relação a eles, em particular
com as considerações que um agente vê como razões para tratá-los de uma
forma ou de outra. Isso não seria uma preocupação se o agente em
questão não fosse capaz de agir por razões. As condições da
responsabilidade substantiva, por outro lado, surgem das razões que um
agente tem para querer que o que aconteça com ele ou ela — em
particular, que obrigações ele ou ela tem para com os outros — dependam
de como ele ou ela responde quando confrontado com alternativas sob as
condições apropriadas. Isso depende, por sua vez, do grau em que, nessas
condições, o agente estará respondendo ao que ele ou ela considera como
as razões que favorecem uma alternativa ou outra e, portanto, do fato
de que o agente é "autônomo" no sentido que acabamos de definir, ou
seja, capaz de agir por razões.
IHU On-Line - Quais são os nexos principais entre a responsabilidade e o valor da escolha?
Thomas Scanlon – Por valor de escolha, eu me refiro
às razões que os indivíduos têm de querer o que acontece com eles, e
quais são as suas obrigações para com os outros, ser sensível à forma
como eles respondem quando lhes é "dada a escolha" sob certas condições.
Essas razões podem ser instrumentais. Eu quero que a comida que me é
servida em um restaurante dependa de como eu respondo quando olho para o
cardápio, porque considero que isso torna mais provável que eu vá
gostar do que é servido. Mas nem todas as razões para querer ter uma
escolha são instrumentais. Eu quero escolher o presente de aniversário
que dou para a minha esposa, porque quero que o presente expresse meus
sentimentos por ela, mesmo que ela possa desfrutar melhor de um presente
escolhido por um comprador profissional. Da mesma forma, eu tenho pelo
menos uma razão para querer que a decoração da minha casa expresse o meu
gosto particular, mesmo que eu possa gostar de algo que um decorador
escolheria para mim.
O valor da opção é variável, dependendo do motivo da escolha e das
condições em que estas se apresentem. O valor instrumental de ter uma
escolha é prejudicado se as condições em que se deve escolher são
aquelas em que não se tem informações relevantes, ou se houver
intimidação. Além disso, o valor de ter uma escolha pode ser negativo,
como, por exemplo, o valor da escolha de Sofia, apresentado no famoso
romance de William Styron . Se um de seus filhos deve viver e um deles
deve morrer, ela tem razão para querer que o resultado não reflita a sua
escolha. Finalmente, o valor da escolha não depende de termos
livre-arbítrio, mas apenas de termos a capacidade de optar por uma
alternativa ou outra em função das razões que nós enxergamos ter, mesmo
que nosso exercício dessa capacidade seja determinado por causas
externas.
Dado o valor da escolha, os indivíduos têm razões para querer que as
normas especifiquem como os outros podem tratá-los e as suas obrigações
para com os outros de ser sensíveis à maneira como eles respondem quando
apresentados com opções sob diferentes condições e, portanto, sobre as
suas oportunidades para responder dessa maneira. Assim, por exemplo,
eles têm razão quando querem ser capazes de moldar as suas obrigações
para com os outros fazendo promessas, mas também têm razões para querer
que essas promessas sejam obrigatórias somente se elas foram feitas em
um âmbito adequadamente de boas condições — quando eles não estão sendo
enganados ou coagidos, por exemplo. E mesmo no caso de "opções" que eles
preferem não ter de forma alguma — como a possibilidade de ser
prejudicado por alguma condição perigosa no seu bairro —, se devem estar
sujeitos a esses riscos, eles têm uma boa razão para insistir em normas
que exijam, daqueles que criam esses riscos, a emissão de avisos. Isso
porque ter a oportunidade de evitar danos ao fazer uma escolha
apropriada é uma forma importante de proteção contra o sofrimento. Eu,
portanto, acredito que, dentro de um quadro contratualista, a
importância que as normas morais válidas atribuem à escolha e a ter uma
oportunidade de escolher é inteiramente explicada pela variável “valor
de escolha”.
Há, é claro, a questão de até onde os outros devem ir para ter
certeza de que suas advertências são compreendidas, bem como até que
ponto deve-se ir ao fornecimento de outras salvaguardas contra eles. As
normas que especificam isso são determinadas pelo equilíbrio das razões
que as pessoas têm para evitar certa perda e as razões que os outros têm
para não arcar com o ônus de lhes oferecer proteção adicional contra
essas perdas. No caso das entradas de teatro, essas seriam as razões dos
donos de cinema e agências de reserva para evitar o custo do envio de
novos lembretes e evitar ficar com entradas não vendidas. Somente quando
os outros já "fizeram o suficiente" para me proteger contra a perda é
que se pode dizer que, se eu sofrer a perda, ela é "minha
responsabilidade".
Aqui, então, reside uma diferença central entre as reivindicações de
responsabilidade substantiva e as reivindicações de responsabilidade
moral, ou "responsabilidade como imputabilidade". Uma alegação de que um
agente é moralmente responsável por uma determinada ação é uma alegação
sobre as atitudes que tal ação mostra que o agente tem. Uma alegação de
que uma pessoa é substancialmente responsável por um determinado
resultado é uma alegação de que outros a colocaram em uma posição boa o
suficiente para determinar, por sua resposta, se esse resultado irá
ocorrer.
Essa distinção tem implicações políticas importantes. Costuma-se
dizer que, pelo menos, muitas pessoas pobres não têm nenhuma queixa
legítima contra a pobreza, porque esta é resultado do fato de elas serem
preguiçosas e não terem uma boa "ética de trabalho". Isso é,
simultaneamente, uma crítica moral dessas pessoas pobres e — como se
isso se seguisse disto — a alegação de que sua situação econômica é
justificada. Na visão que estou propondo, no entanto, essas duas
afirmações são bastante distintas. A alegação de que os pobres são
substancialmente responsáveis por seu destino repousa, a meu ver, em uma
alegação de que as condições em que eles tomaram as suas decisões sobre
o quanto trabalhar e desenvolveram as atitudes refletidas nessas
decisões eram "boas o bastante" que eles não têm nenhuma queixa contra o
fato de estar nessas condições. Isso não é resolvido por quaisquer
atitudes em relação ao trabalho que de fato tenham. É concebível que
algumas pessoas pobres possam ter atitudes em relação ao trabalho que
sejam sujeitas a críticas. Mas isso por si só não indicaria que é "sua
própria responsabilidade" elas serem pobres. Isso só pode mostrar que
elas nasceram em condições que são injustificáveis, em parte porque
estas levam à formação de tais atitudes.
Observe, mais uma vez, que eu não estou dizendo que essas pessoas não
são responsáveis pelos resultados de suas escolhas, porque essas
escolhas resultam de condições externas, sobre as quais elas não têm
controle. O ponto é, sim, que o fato de que um resultado obtido pela
escolha de uma pessoa faz desse resultado legítimo (faz dele algo que
ele ou ela é substancialmente responsável) somente se as condições nas
quais essa escolha foi feita eram suficientemente boas. Mesmo as
escolhas que fazemos sob as melhores condições podem ser causadas por
fatores externos sobre os quais não temos controle (eu suspeito que isso
seja verdade para todas as nossas escolhas). Mas, em meu ponto de
vista, esse fato não prejudicará a responsabilidade substantiva ou a
responsabilidade moral sobre o assunto.
IHU On-Line - Qual é a estrutura geral do modelo contratualista, conforme aborda em What we owe to each other?
Thomas Scanlon – A ideia central da teoria moral que
eu chamo de contratualismo é que a “correção” ou “incorreção” de uma
ação é determinada pelo equilíbrio das razões que os indivíduos em
diferentes posições têm para favorecer ou rejeitar uma norma que
permitiria tal ação. Assim, por exemplo, se é permitido quebrar um
contrato sob determinadas condições, isso depende de quais são as razões
daqueles que se encontram na posição de contratados para querer uma
norma que não exigiria o cumprimento sob tais condições, e quais as
razões daqueles que estão na posição de contratantes para rejeitar uma
norma que seja leniente dessa forma. Seria errado quebrar esse contrato
se fosse razoável para alguém na posição de contratado rejeitar uma
norma permitindo isso, mesmo tendo em conta as razões do outro lado.
Essa explicação da moral está em contraste com visões
"intuicionistas", que sustentam que há apenas algumas verdades sobre o
certo e o errado, as quais somos capazes de discernir se pensarmos sobre
o assunto com cuidado, mesmo que não haja nenhum relato sistemático do
que esse pensamento envolve. Também está em contraste com visões
"consequencialistas", que sustentam que há uma explicação mais
sistemática, que consiste em decidir qual ação, ou que norma, levaria a
melhores consequências em geral. O que é especial sobre o contratualismo
é a sua forma "individualista" da justificação: a maneira que ele
considera o certo e o errado depende do equilíbrio entre as
reivindicações dos indivíduos.
IHU On-Line - Qual é a importância do contratualismo tendo
como horizonte o estabelecimento da Declaração Universal dos Direitos
Humanos? Nesse sentido, quais foram as principais conquistas e o que
ainda falta estabelecer?
Thomas Scanlon – A ideia de direitos humanos tem
tanto um caráter moral quanto institucional. Existe, em primeiro lugar, a
ideia de que há certas maneiras pelas quais nenhuma pessoa deve ser
tratada. Depois, há a ideia de prevenir alguns erros desse tipo, criando
uma certa forma de prática internacional. Esta última depende da
anterior — nós não pensaríamos que é importante criar e sustentar essa
prática se não acreditássemos que essas formas de tratamento são
moralmente erradas. Mas a consideração do que deve ou não ser tido como
um direito humano tem de levar em conta a realidade do que pode e não
pode ser efetivamente institucionalizado dessa forma.
Com relação ao aspecto moral dos direitos humanos, no entanto, a
importância do contratualismo está no caráter individualista e
sistemático que acabei de mencionar. Como os direitos humanos
institucionalizam e validam as reivindicações de indivíduos de não serem
tratados em certos aspectos, eles precisam ser apoiados por uma visão
moral que, como o contratualismo, considera as alegações dos indivíduos
como básicas, ao invés de incluí-las dentro de uma ideia maior do que é
melhor para todos. Isso pode, naturalmente, ser feito por uma teoria
intuicionista, segundo a qual os indivíduos só têm certos direitos. Mas
depois há a questão de quais são esses direitos. São eles, por exemplo,
apenas os direitos libertários que Robert Nozick e outros libertários
defenderam? Para responder a essas perguntas precisamos ter uma forma
mais sistemática de pensar sobre quais direitos as pessoas têm, ao invés
de tomar alguns direitos como ponto de partida moral. O contratualismo
fornece essa explicação.
IHU On-Line - Quais são os principais limites e impasses para
a prática da tolerância em sociedades que, teoricamente, vivem sob um
contrato, mas praticam o Estado de exceção?
Thomas Scanlon – Não sei se entendi essa pergunta.
Mas aqui está uma breve declaração do que eu penso sobre a tolerância. A
tolerância, na minha opinião, é uma questão de ver outras pessoas terem
direitos, assim como eu mesmo tenho o direito a participar da vida
política de minha sociedade e contribuir para moldar o que é e o que
será a cultura daquela sociedade, mesmo que essas pessoas sejam
diferentes de mim em certos aspectos, como raça ou país de origem, e
mesmo que eu não concorde com elas sobre certos assuntos importantes,
como qual religião adotar, que língua falar e que tipo de vida familiar e
sexual é melhor ter. Adotar uma visão tolerante desse tipo é uma
questão, em primeiro lugar, de reconhecer esses outros — nos termos
contratualistas — como aqueles aos quais é devida uma justificação. Em
segundo lugar, é uma questão de ver como possível e intrinsecamente
desejável estar relacionado com os outros na própria sociedade dessa
forma, como membros cooperantes iguais. O desafio de levar as pessoas a
aceitar a tolerância é o de fazê-las ver esse tipo de relação com o
outro como possível e desejável, ao invés de se preocuparem apenas com
os membros do seu próprio grupo, com os quais têm laços mais apertados
de acordo, e ver uma sociedade que se funda sobre esses vínculos mais
fortes como o único tipo de sociedade possível e desejável.
IHU On-Line - Como é possível ser realista sobre razões sem a recaída nos problemas ontológicos tradicionais?
Thomas Scanlon – Esta é uma questão complicada, que
eu tento responder no capítulo 2 do meu novo livro, Being Realistic
about Reasons (Oxford University Press, 2014). O ponto principal é que,
para responder a essa pergunta, é importante primeiro pensar com clareza
sobre que tipo de "realidade" ou "existência" os fatos intrinsecamente
normativos sobre as razões para a ação ou fatos morais sobre o certo e o
errado teriam de possuir a fim de haver verdades sobre essas questões
que são "independentes de nós" em sentido mais relevante. Eu acredito
que, quando se pensa com clareza sobre isso, é evidente que nenhuma
realidade ou existência "metafísica" especial precisa estar envolvida.
Seria interessante considerar aqui a comparação com outros domínios. A
realidade evidente dos objetos físicos, por exemplo, é física. É uma
questão de ter localização no mundo espaço-temporal e interagir
causalmente com outros objetos. Para que existam esses objetos, e para
que eles sejam reais, não é necessário que, além dessas propriedades
físicas, eles também existam em mais algum sentido metafísico. O mesmo é
verdade, eu diria, para os números e conjuntos. Se eles existem é uma
questão puramente matemática, não uma questão de saber se são parte do
"mundo" em algum sentido metafísico. Da mesma forma, se existem verdades
determinadas sobre questões normativas ou morais é uma questão
normativa de quão determinístico é o domínio normativo. Isso pode ser
resolvido apenas por uma caracterização desse domínio em termos
normativos. Penso não haver dúvida de que existem verdades normativas
sobre razões para a ação, mas sérias dúvidas permanecem sobre se há um
fato da matéria acerca de cada questão normativa ou moral. Se não há,
isso se deve ao normativo sob determinação do domínio normativo, não a
alguma falta de realidade metafísica.
IHU On-Line - Quais são as contribuições de John Rawls ,
Immanuel Kant e Jean-Jacques Rousseau para o debate acerca do
contratualismo que o senhor desenvolve em suas obras?
Thomas Scanlon – A obra de Kant foi muito importante
no meu pensamento inicial sobre a filosofia moral, ajudando-me a ver
uma alternativa ao utilitarismo. Mais tarde, cheguei a pensar que,
embora as várias formas do Imperativo Categórico expressem ideias morais
importantes e atraentes, a tentativa de Kant de dar a elas uma base nos
requisitos da liberdade e da ação não teve êxito. Ainda depois, vim a
pensar que essas ideias morais são distorcidas se alguém tenta
encaixá-las dentro da estrutura metafísica de Kant. Então, não sou mais
um kantiano. A ideia contratualista de que o conteúdo da moral é
determinado por perguntar quais princípios ninguém poderia razoavelmente
rejeitar pode soar um pouco como o teste de Kant para saber se uma
máxima poderia ser desejada como uma lei universal. Mas as duas são, na
verdade, bastante diferentes. Elas são diferentes porque as respostas
para o teste contratualista residem nas reivindicações (realistas
normativas) sobre as razões que as pessoas têm, em vez dos requisitos
formais de liberdade ou de agência, ou o que alguém poderia
consistentemente desejar.
John Rawls foi meu professor e depois meu amigo e colega por muitos
anos. Suas ideias tiveram uma influência muito importante nas minhas
ideias, como suponho que deva estar claro para qualquer leitor. Como
professor, talvez a sua influência mais importante tenha sido
simplesmente a de abrir para mim a possibilidade de pensar sobre a moral
e a justiça de uma forma teórica sistemática. Uma diferença entre os
nossos pontos de vista é que eu tenho sido mais disposto a confessar e a
basear as minhas afirmações sobre moral e justiça em alegações
realistas substantivas sobre quais razões as pessoas têm. A relutância
de Rawls em apresentar sua teoria dessa forma, qualquer que tenha sido a
sua própria visão pessoal do assunto, pode estar em uma diferença entre
nossos projetos. Tenho me preocupado com a filosofia moral em geral,
inclusive a moral da conduta individual e a avaliação moral das
instituições sociais e políticas, e tento ver estas como parte de um
único assunto unificado. Em A Theory of Justice (Londres: Belknap Press,
2009), Rawls teve uma visão semelhante. Mas depois, em Political
Liberalism, ele sustentou a tese contrária, de que a filosofia política
não é uma parte da filosofia moral de forma mais geral, mas sim um
empreendimento separado distinguido por um objetivo prático e específico
de elaboração de princípios de justiça que poderiam desempenhar um
certo papel importante em uma sociedade liberal. Ele estava, portanto,
mais preocupado em trabalhar com o que as pessoas em tais sociedades
realmente acreditam e preocupado, sempre que possível, em evitar
reclamações controversas sobre as razões e seus estados.
A ideia de Rousseau de uma vontade geral tem um apelo óbvio, mas eu
sempre achei difícil de entender, e por isso tenho dificuldade de
avaliar a conexão entre essa ideia e a minha versão do contratualismo. A
parte de Rousseau à qual me vejo retornando ano após ano não é a do
Contrato Social, mas sim a discussão da igualdade em seu Segundo
Discurso.
-------------------------
Reportagem Por: Márcia Junges e Andriolli Costa /
radução: Moisés Sbardelotto
Fonte: http://www.ihuonline.unisinos.br/
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário