P. José Tolentino Mendonça*
Ao falar de uma espiritualidade inscrita no quotidiano,
o frei Carlos Maria Antunes, no livro "Só o pobre se faz pão", diz que
uma das nossas dificuldades é a dispersão. O nosso coração está
disperso, dividido por muitas coisas. Somos objeto de múltiplos apelos e
necessidades. Um rebuliço sem fim atravessa o nosso interior. E com
ele também um cansaço e uma angústia que vamos tentando compensar de
várias formas.
O cansaço e a angústia são um terreno fértil para a
multiplicação das falsas necessidades e falsos desejos. A dispersão
provoca mais dispersão.
Neste quadro, a nossa unidade e vigilância interior,
que são fundamentais no nosso interior, tornam-se frágeis. Vamo-nos
tornando mais vulneráveis, e acabamos, muitas vezes, num movimento de
defesa, por endurecer o nosso coração, fazendo de conta que não vejo,
que não oiço. Mas esta atitude também não nos dá a verdadeira unidade
de coração.
Precisamos de aprender uma arte do acolhimento da nossa
própria vida. Acolhermo-nos, acolher aquilo que somos, acolher o que
nos chega como uma oportunidade, mas partindo de um centro, de um
núcleo vital que em nós está desperto.
O padre Carlos cita o trecho de um poeta persa, Rumi,
que diz o seguinte: «O ser humano é uma casa de hóspedes; cada manhã,
um novo recém-chegado, uma alegria, uma tristeza, uma maldade, que vem
como um visitante inesperado. Diz-lhes que são bem-vindos, e recebe-os a
todos, ainda se são um coro de penúrias que esvaziam a tua casa
violentamente. Trata cada hóspede com todas as honras; ele pode estar a
criar-te um espaço para uma nova delícia. O pensamento obscuro, a
vergonha, a malícia, recebe-os à porta sorrindo e convida-os a entrar.
Agradece a quem quer que venha, porque cada um foi enviado como um guia
do Além».
Esta arte do acolhimento da vida, de saber abraçar tudo
a partir de uma unidade interior, pede de nós a pobreza espiritual, a
pobreza de coração.
Aquando da eleição do papa Jorge Mario Bergoglio -
todos nós já tivemos a oportunidade de ouvir esta história -, o cardeal
Claudio Hummes, arcebispo de S. Paulo, que estava ao lado dele,
abraçou-o e disse-lhe: «Não te esqueças dos pobres». Estas palavras
ficaram a fazer-lhe caminho no coração, e quando se tratou de escolher o
nome, ele optou por Francisco, lembrando-se de Francisco de Assis e da
sua espiritualidade universal.
Falando aos jornalistas nos primeiros dias, o papa
deixou os papéis e teve um suspiro, a expressão de um desejo, e disse:
Quem me dera que a Igreja se tornasse pobre e fosse uma Igreja para os
pobres. Uma Igreja que se torna pobre e faz do acolhimento dos pobres a
sua razão de ser, a sua missão.
A pobreza espiritual aparece-nos como um conselho
evangélico, isto é, como modo de vida, como uma opção que cada cristão é
chamado a fazer para se configurar a Cristo, para se tornar mais
próximo de Cristo. Há mais dois conselhos evangélicos: a obediência, ou
seja, a capacidade de escutar e permanecer fiel à palavra que se
recebe; o outro é a pureza de coração, e aí a castidade é muito mais do
que uma privação, tornando-se um modo positivo de estar na vida.
Cada um destes conselhos é vivido na Igreja por todos
os batizados, embora de modos diferentes. Todos somos chamados à
configuração com Cristo, que é pobre, puro de coração e obediente ao
Pai.
Como é que podemos concretizar a opção por uma vida
pobre, por uma pobreza espiritual? A vida espiritual não é uma técnica,
não é uma habilidade, não é um conjunto de ritos. A vida espiritual é
um modo de ser. E quando se fala de adotar uma atitude espiritual de
pobreza no coração - S. Francisco chamava-lhe a Irmã Pobreza, ou Santa
Pobreza -, temos, antes de tudo, de exercitar o nosso ser.
«Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade
medindo o equilíbrio dos meus passos. Mas as coisas têm máscaras e véus
com que me enganam, e, quando eu um momento espantada me esqueço, a
força perversa das coisas ata-me os braços e atira-me, prisioneira de
ninguém mas só de laços, para o vazio horror das voltas do caminho»
(Sophia de Mello Breyner).
Há um momento da nossa vida em que deixamos de saber de
nós próprios. Parece que já não há um fundo de ser a marcar aquilo que
somos e que nos estrutura, uma decisão fundamental, mas, pelo
contrário, somos a dispersão.
A nossa vida não é só um conjunto de inevitabilidades:
ela tem de ser uma opção fundamental, isto é, tem de ser algo que eu
decido, que eu quero, um caminho que escolho, em diálogo com o
Espírito. A minha vida tem de ter fundamento, para não ser uma deriva,
um fragmento flutuante no oceano convulso. Precisamos de um centro.
E para ter um centro, precisamos de momentos de
recentramento para ouvirmos a nossa voz interior, para nos escutarmos
mais profundamente, para perguntarmos: «O que é que eu vivo? O que me
enlaça? O que procuro? O que sou?». Estes momentos de recentramento são
revitalizadores.
A Quaresma não são 40 dias para tentarmos fazer rituais
mais ou menos arcaicos. A Quaresma é um tempo de revitalização, um
tempo para nos colocarmos as perguntas-chave que vão favorecer o
renascimento do que somos. E Deus sabe como cada um de nós precisa de
renascer. Por isso este é o tempo de voltar a si.
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*P. José Tolentino Mendonça . Teólogo. Escritor português.
Fonte: Redação: SNPC/rjm
In Capela do Rato
04.03.14
Fonte: Redação: SNPC/rjm
In Capela do Rato
04.03.14
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