J. P. Cuenca*
Somos o melhor carcereiro de
nós mesmos.
Sábado atípico de sol e calor em Nova York para um fevereiro. Começo em
Chelsea. Há uma exposição na Pace Gallery com uma série completa de
esculturas de Sol LeWitt. As estruturas geométricas em progressão
horizontal, séries de cubos abertos no chão, reage ao nosso caminhar com
um efeito de moiré. Viram obras cinéticas. Não sei se é porque a
composição minimalista lembra o esqueleto de edifícios tombados, mas há
algo que nos impulsiona para o alto, alterando nossa percepção da
dimensão da sala e de nós mesmos.
A algumas quadras dali, na Gagosian, outras esculturas abstratas
produzem efeito contrário. Antes a delicadeza fria de LeWitt, aqui o
frio brutal e opressivo. As lápides e muralhas de metal fundido de
Richard Serra pesam toneladas nos ombros assim que entramos na sala.
Caminhar aqui é para baixo, com um nó no peito. Os monolitos de Serra
expõem a fragilidade da nossa casca. Somos um amontoado de carne, sangue
e vísceras tentando nos equilibrar num mundo de números perfeitos. Há
um cálculo desumano que nos exclui.
Muitas vezes ajudamos a alimentar o monstro. Da mesma forma que escrever
repetidamente sobre uma página já escrita vai gerar uma mancha
ininteligível no papel, o acúmulo de informação sobre informação
transforma nossa mente viciada no próximo estímulo num ponto negro. A
nuvem onipresente de dados da internet, nossa consciência coletiva, pode
estar nos oferecendo um novo tipo de catarata: vemos tanto que estamos
perdendo o olhar. Essa acumulação expansiva ganha uma manifestação
concreta na obra de Simon Evans exposta na James Cohan Gallery. Ele cria
grandes panoramas com a colagem de notas, bilhetes, rabiscos, flyers,
lixo. A topografia mental que ele sugere com essa superexposição de
fragmentos não poderia ser mais contemporânea.
Se o sentimento de ameaça nas esculturas de Serra pode ser lido como um
suvenir do velho império industrial e de suas máquinas de produção e
extermínio em massa, o pavor construído por Evans faz referência a novas
formas de opressão. Saio querendo atirar o meu iPhone no lixo.
Mais tarde, entro na Venus Over Manhattan, galeria no prédio da Gagosian
na Madison Avenue. Encravado num terceiro andar no meio do Upper East
Side, o espaço exibe "Ishtar", um trabalho de Charles Harlan, artista da
Georgia de 30 anos. A obra consiste em dois elementos. O primeiro é um
portão de correr, desses de garagem. O portão encara um muro, também de
folhas de metal, que acompanha o perímetro de toda a sala. O portão está
fechado. Ao dar a volta na galeria, transformada numa sequência de
corredores estreitos, percebemos que o muro de metal não tem nenhuma
abertura.
Desisto e vou tomar um dry martíni no outro lado da rua, no bar do hotel
Carlyle, o Bemelmans Bar. O garçom velhinho, que serve o drinque com um
refil naquela pequena garrafa sobre um pires de gelo, é o mesmo que nos
serviu da última vez. Os desenhos art déco das paredes douradas me
fazem lembrar você falando baixinho no meu ouvido.
Se o mito babilônico sobre "A Descida de Ishtar ao Submundo" mostra a
deusa atravessando o umbral, outra narrativa subterrânea, o canto quinto
do "Inferno" de Dante, fala sobre o tormento doloroso da lembrança de
tempos felizes na desgraça. Somos o melhor carcereiro de nós mesmos.
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* J. P. Cuenca, 35, é escritor. Autor dos livros 'Corpo Presente'
(2003), 'O Dia Mastroianni' (2007) e 'O Único Final Feliz para uma
História de Amor É um Acidente' (2010), foi selecionado em 2012 pela
revista britânica 'Granta' como um dos 20 romancistas brasileiros mais
promissores com menos de 40 anos.
Imagem da Internet :
escultura de Sol LeWitt.
Fonte: Folha on line, 07/03/2014
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