Juremir Machado da Silva*
Doze anos de escravidão é filme. Os outros são
entretenimento. Levou o Oscar que merecia. Trapaça não enganou os
jurados. Ficou de mãos vazias. Abaixo o texto que publiquei, na volta do
Caderno de Sábado, no Correio do Povo, sobre a obra mais necessária,
retumbante e emocionante das últimas décadas. O filme que falta ao
Brasil.
*
Tomografia da escravidão
Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir já falavam de amores
contingentes e necessários. Por que não se falar em filmes contingentes e
necessários? Foi o que fez Raul Juste Lores, em artigo publicado na
Folha de S. Paulo, ao classificar “12 anos de escravidão”, do britânico
Steve McQueen, como “o melhor e mais necessário filme em muitos anos”. A
principal característica da indústria cinematográfica, especialmente a
que leva a marca indelével de Hollywood, é produzir o contingente como
se fosse necessário, o eterno com duração e degustação de, no máximo,
duas horas e um grande pacote de pipocas.
A escravidão é uma das mais hediondas invenções da humanidade. Tão
chocante e ignominiosa quanto o holocausto dos judeus pelo nazismo
durante a Segunda Guerra Mundial. Um holocausto praticado contra os
negros ao longo de vários séculos na América Latina. O Brasil, por
exemplo, teve a desonra de ser o último, já no crepúsculo do século XIX,
a fechar a câmara massacrante de exploração, tortura e assassinato de
africanos e de seus descendentes. Milhões de negros viveram a
experiência horrenda do chicote, do tronco, da violação, da espoliação e
da redução à condição de mercadoria. No Rio Grande do Sul, não foi
diferente. A diferença é que não temos filmes como “12 anos de
escravidão”, a história do negro livre Solomon Northup, contada por ele
em livro publicado em 1853, sequestrado e vendido como escravo.
É a história do arbítrio, da violência e das contradições dos Estados
Unidos: um negro livre em Nova York, convidado para tocar violino em
Washington, enganado, raptado e escravizado. Cada cena estraçalha um
mito. Nenhum senhor de escravos foi bom, pois ser proprietário de seres
humanos é essencialmente o oposto do bem, da bondade e da dignidade.
Nenhum senhor de escravo, mesmo o mais genial, pode ser realmente
admirado. A escravidão é uma chaga que não pode ser justificada com o
relativismo simplório da expressão cínica “eram os valores da época”.
Havia quem rejeitasse esses valores. Os escravos sabiam da ilegitimidade
moral do que viviam. O resto é ideologia, racismo e horror.
Por que não temos um filme como “12 anos de escravidão” sobre a mais
infame noite da história do Rio Grande do Sul, 14 de novembro de 1844,
quando negros lanceiros e infantes dos farrapos foram massacrados,
depois que David Canabarro mandou tirar o cartuchame da infantaria,
consumando-se a traição de Porongos? Por que só fazemos filmes
contingentes? Por que não aprendemos a fazer filmes necessários? O
desempenho de Chiwetel Ejiofor, como Salomon, é emocionante. Um negro é
presidente dos Estados Unidos. Nenhum até hoje ganhou o Oscar de melhor
diretor. McQueen poderá ser o primeiro. Como não pensar na escravidão
brasileira? Como não insistir na situação do Rio Grande do Sul? Como não
pensar nos viajantes estrangeiros descrevendo os maus tratos aos
escravos no Rio Grande do século XIX? Arsène Isabelle revelando a
tortura praticada em nossa campanha: pimenta colocada em incisões feitas
no corpo dos negros. Apenas um pálido exemplo dessa história brasileira
da tortura. Americanos reverenciam alguns pais da pátria escravocratas.
Há sempre, contudo, alguém para abordar o lado sujo das suas
biografias. George Washington, ao morrer, deixou, em testamento, a
liberdade para seus escravos. Pragmático americano, usou-os enquanto
viveu. Bento Gonçalves transmitiu os seus aos herdeiros. Pragmatismo
brasileiro: não se desperdiça o patrimônio.
Depois de anos vendo filmes contingentes, enfim uma obra para encher
os olhos, inclusive de lágrimas. Um filme que arranca a máscara, atira a
verdade na cara, fulmina qualquer tentativa sórdida de relativismo e
obriga o espectador a pensar em toda a sujeira escondida sob o tapete da
sala da sua própria casa. Tivemos a coragem de inventar o mito da
democracia racial e de dizer, que no Rio Grande do Sul, a escravidão foi
mais branda. “Doze anos de escravidão” não é entretenimento. É arte.
Entretenimento é “Trapaça”. Tudo esclarecido.
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* Jornalista. Prof. Universitário. Escritor. Colunista do Correio do Povo
Fonte: Correio do Povo online, 03/03/2014
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