Meu
amigo Pondé tem razão ao dizer que o ódio ao comércio não nos deixa em
nenhum bom porto. Quem quer viver em uma sociedade sem que se possa
atacar o consumismo? Eu não! Todavia, o que ele acabou se esquecendo em
seu artigo “Moral de amadores” (Folha,
10/03/2014) é que a justiça social, que ele diz que é trazida pelo
comércio, vem pela via que ele odeia: o resultado do politicamente
correto.
O politicamente correto em sua via
exclusivamente coercitiva é algo burro. Mas o nascimento dele foi
coercivo e veio exatamente com o comércio, com a sociedade de mercado
liberal.
No início dos tempos modernos os
burgueses europeus botaram balcões na frente de suas casas e
transformaram os centros das cidades em lugar não só de feira, mas de
feira e moradia. Passaram então a receber gente de toda parte não para
encontros fortuitos de troca, mas para encontros já na porta de casa,
para pequenos e grandes negócios. Os que vinham de longe não passavam do
balcão, mas estavam mais que próximos agora do que quando dos primeiros
tempos da feira. Então, regras de convívio antes rápidas, tornaram-se
necessariamente mais duradouras.
No balcão há a conversa e, não raro, o aparecimento das famílias dos dois lados. As crianças são
sempre mais espontâneas e uma criança de dentro do balcão poderia dizer
da outra: “nossa pai, de onde vieram esses seus fregueses tão pretos e
feios?” O pai concordava em tudo com a criança, mas viu que só o tapa na
cabeça do rebento iria logo colocar-lhe no campo da hipocrisia boa para
os negócios. A expansão disso, o hábito de ensinar as crianças todas
que a loja vale mais que tudo, fez nascer o politicamente correto. O
freguês é lindo, correto, bom e inteligente. Sua religião então nem se
fale, a melhor do mundo. Sua pele? Ma-ra-vi-lha!
O politicamente correto nada tem a ver
com a esquerda política, ao menos não nas suas origens. Tem a ver com o
capitalismo, no seu núcleo mercantil.
A esquerda americana – e só ela –
acentuou esses traços, os do politicamente correto, por conta dos
Estados Unidos ser um país multicultural par excellence e por ser
o reino do mercado liberal, o modelo do mundo em matéria de comércio.
Não à toa é um país de judeus em cargos importantes, e de árabes de todo
tipo, mas sem cargos, todos prontos para negociar até a alma. A
política de esquerda apenas seguiu essa trilha.
Pondé não sabe disso porque não
quer. Ele sabe que para seu público é melhor posar um pouco mais à
direita. A Casa do Saber gosta disso e acho até que ele se especializou
em chocar as pessoas apenas em dose homeopáticas. Então, ele vai nessa
toada, que eu acho que é uma arte da prudência: “vamos chocar ao menos
os de esquerda, e sendo eles meio tontos a ponto de quererem sempre, ao
falar do capitalismo, jogarem fora a criança com a água do banho, vamos
acentuar com eles os momentos de choque”. “Eles reclamarão e, com isso,
garantirão minhas ‘bases’”. Pondé diz não gostar de política, mas cada
vez mais só fala de política e só age em função de política. Isso o
distancia de ter de admitir esse dado histórico: comércio, hipocrisia e
politicamente correto formam uma equação do primeiro grau.
Não chamar o freguês de feio, esquisito
e, enfim, dourar a pílula para que até o cheiro do freguês se torne
suportável (o “cheiro de negro” ou de qualquer outro estrangeiro é
horrível para narizes nacionais ou narizes classistas – e nariz
universal é classista atualmente!), é uma arte ensinada aos filhos dos
burgueses e, depois, transmitida a seus empregados e até à criadagem,
quando os burgueses, então, já nem moravam mais no centro da cidade ou
nem mesmo mais na cidade. Quando os grupos minoritários americanos se
tornaram também compradores e vendedores, essa regra da hipocrisia do
comércio, ancestral do politicamente correto, se espalhou por tudo. As
distinções começaram a se fazer pelo dinheiro, geografia, universidades,
mas no balcão todo mundo ficou como no facebook, igual e bonito. Daí
para a ideia de ampliar a hipocrisia para os ombros do estado e, com
isso, ampliar rendas para todos poderem vir para o comércio, foi um
passo. Justiça social foi o nome bonito para isso. Justiça social se
tornou um nome para uma política estatal ou para um costume de
donativos, nada além da extensão da hipocrisia ou, depois, politicamente
correto. O New Deal americano foi base para tal e, em seguida, após a
Guerra, casou-se com a social democracia europeia, aliás, financiando-a
por meio Plano Marshal, da re-emergente América.
Adorando o comércio, como Pondé faz, e
vendo a sociedade americana como um modelo (sem Obama, enquanto que eu
prefiro com Obama), ele teria de também engolir a hipocrisia, a
prudência e a justiça social vinda do comércio, ou seja, tudo aquilo que
hoje está envolto pela retórica do politicamente correto. Azar e sorte
do Pondé. Eu não preciso dizer “amo tudo isso”, assim, no pacote. Posso
gostar da América com Obama porque sei que o chato do politicamente
correto não veio dele, mas do conjunto de condições históricas do
capitalismo liberal. Então, me acho mais tranquilo com a esquerda, mesmo
nas suas manifestações irritantes.
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/ponde-foi-as-compras/10/03/2014
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