Juremir Machado da Silva*
O que houve?
Num texto célebre, que traduzi para o Brasil, “A conjuração dos
imbecis”, o filósofo Jean Baudrillard esbanjava sua tradicional ironia:
“Revisão dolorosa: antes, a direita encarnava os valores morais, e a
esquerda, ao contrário, uma certa exigência histórica e política
contraditória; hoje, a esquerda, despojada de toda energia política,
tornou-se pura jurisdição moral, encarnação dos valores universais,
campeã do reino da Virtude e defensora dos valores de museu do Bem e do
Verdadeiro”.
Jean não contava as surpresas brasileiras.
A esquerda, quando ele escreveu o artigo, parecia-lhe uma paradoxal
“jurisdição que pode exigir prestação de contas de todo mundo sem ter de
responder diante de ninguém”. A esquerda, que chegou ao poder no Brasil
com Lula, teve de prestar contas ao Supremo Tribunal Federal. A
direita, aproveitando-se da situação, tentou retomar a sua função de
detentora dos valores morais. Foi um blefe. Baudrillard, falando da
experiência francesa, tinha razão num ponto: “A ilusão política da
esquerda, congelada durante vinte anos na oposição, revelou-se, com a
chegada ao poder, portadora, não do sentido da História, mas de uma
moral da História”: o poder corrompe e exige tudo.
Ex-marxista, convertido ao niilismo, Baudrillard, no fundo, sonhava
com uma política pura e denunciava a “moral da Verdade, do Direito e da
boa consciência — grau zero do político e, certamente mesmo, ponto mais
baixo na genealogia da moral”. Não era, porém, o fim do político. Mas a
política por outros meios. Não era, tampouco, o fim da separação de
direita e esquerda, mas um deslocamento de posições. Joaquim Barbosa no
papel de justiceiro solitário tentou transformar a política em questão
técnica. Não convenceu nem a si mesmo. A questão técnica é sempre
política. O cinismo só entende o cinismo. Ponto.
Quando se descobriu que os Estados Unidos espionavam todo mundo, os
pragmáticos deram de ombros: “É assim mesmo, sempre foi assim, faz parte
da natureza das relações internacionais”. Muitos desses que se
manifestaram com tanto conformismo em relação à bisbilhotice americana
aderiram à tese de Barbosa de que o governo montou uma maioria de
conveniência no STF para absolver seus amigos do crime de formação de
quadrilha. Por que não usam o mesmo raciocínio: sempre foi assim, é
assim mesmo, faz parte da natureza da política”. Não é?
Sem quadrilha como fica a aplicação da Teoria do Domínio do Fato que
tomou José Dirceu como o necessário chefe do bando, o que teria de saber
de tudo para que o fato pudesse acontecer? Na lógica de Baudrillard,
não haveria dúvida: pode não ter acontecido o crime tal qual ele é
descrito por uma parte, mas quadrilha houve: pessoas se associaram, e
confessaram, para praticar caixa dois. O texto jurídico, contudo, tem
suas sutilezas. Baudrillard temia metástase da política. Ela chegou. A
patologia é sempre do outro. A corrupção só é maléfica e extraordinária
quando praticada pelos nossos adversários.
Sempre que a palavra técnica é agitada, há ideologia.
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* Sociólogo. Prof.Universitário. Escritor.
Fonte: Correio do Povo online, 06/03/2014
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