Miguel Sanches Neto*
1 Um grande contista não precisa ser um grande romancista, já o
romancista tem que ter produzido alguns contos antológicos. Mas quem
escreve romances deve passar pelo conto não como um estágio preparatório
para a ficção maior. O conto de qualidade nunca é um mero exercício de
musculação literária e, sim, um ponto de convergência do tratamento
poético da linguagem e do corpo narrativo próprio da prosa. Esse
encontro de duas modalidades textuais leva a uma consciência estética
nos domínios da ficção.
Ricardo Piglia, em "Teses sobre o Conto", defende a narração de
duplas histórias, uma de superfície e outra secreta. Essa natureza
sobreposta também se manifesta na linguagem, que pertence a campos
distintos.
2 Nessa linha, o conto se afastaria de uma das
principais marcas da crônica: o relaxamento de linguagem. Uma
crônica-padrão parece estar sempre esteticamente desarrumada. É um
improviso em que as pequenas iluminações do cotidiano pesam mais do que a
busca de uma precisão de conjunto. Há algo de troncho nas crônicas que
se produz sob a pressão do prazo, uma tendência para o ziguezague, um
bate-bola no meio do campo. O cronista não deseja fazer gol.
3 O conto é linguagem que se espraia de forma
tensionada. Cerca em que os arames estão muito esticados. Nada pode
ficar frouxo nesses arranjos. Dizer cada coisa encaminhando o leitor
para o centro pulsante da história. Um bom conto, portanto, exige muito
mais controle do que o romance e a crônica. Poderíamos dizer que nele a
língua se encontra bem-acabada tanto do ponto de vista plástico quanto
estrutural.
4 Aceita essa sua vocação para a amarração de
linguagem, resta a imagem do contista como um atormentando com a palavra
certa. Ele revisa antes, durante e depois da escrita. A sua identidade é
essa. Luiz Vilela conta que, viajando em um ônibus, ouvia a conversa de
passageiros à sua frente e, ali, sem dormir, modificava mentalmente as
frases, procurando palavras e ritmos mais adequados. Um revisor insone,
eis o contista.
Já Tchekhov pedia a seu amigo ("Cartas a Suvórin: 1886-1891",
tradução de Aurora F. Bernardini e Homero F. de Andrade. Edusp: 2002)
que lhe mandasse contos para revisar. Revisar era para ele editar,
copidescar as narrativas dos amigos, para as quais escrevia outros fins,
alterando a ordem, cortando partes. Vangloria-se o mestre: "Eu leio
rápido. Lembre-se de que numa noite de inverno, em sua casa, fiz de um
conto mal-ajambrado de [Evguéni Fiódorovitch] Kóni algo digno da edição
de sábado, que no dia seguinte agradou muita gente" (23 de outubro de
1889). O conto não aceita ser mal-ajambrado, quer-se apresentável para a
edição de sábado. Nesse trabalho, Tchekhov encontra mais do que
passatempo: "A leitura dos contos e os consertos não me tomam mais de
meia hora por vez, e me distraem. Não deixa de ser uma ginástica para o
cérebro" (25 de novembro de 1889).
Na carta anterior, falando das características de certa dama, o
médico nele se revela, pois comenta que ela precisa fazer ginástica.
Traduzindo isso para os dias atuais, o conto seria "uma linguagem
sarada".
5 Esse investimento na forma, no artesanato textual,
quando desconsidera a trama, a história propriamente dita, conduz a uma
prosa poética que é, em sua essência, a negação do conto. Esse formato
exige uma habitação de fronteira, um pé aqui e outro acolá. Contar, mas
também construir. Aproximar amorosamente as palavras sem obscurecer o
enredo, potencializando-o.
6 Outro desvio que tal postura pode gerar é o da
redução extrema da narrativa. O revisor tem uma tendência obsessiva pelo
corte, pela amputação de membros supérfluos. E isso o faz miniaturizar
os textos. Aliás, Ernest Hemingway chama de "Miniaturas" os seus contos
de um parágrafo, publicado em "In Our Time" (Paris, 1924). E Dalton
Trevisan, outro revisor obsessivo, inventa o "haiconto", a narrativa em
dimensões de haicai. Ainda é Tchekhov quem identifica esse impulso:
"Corto sem dó. Curioso, agora ando com mania de coisas curtas. Tudo o
que leio, seja meu ou de outrem, parece que nunca é curto o suficiente"
(6 de fevereiro de 1889). Essa mania se tornou uma tendência moderna.
No entanto, o conto reduzido a uma frase, a um parágrafo, só funciona
como tal quando deixa como virtualidade toda uma história a ser
escrita, quando transfere ao leitor o acréscimo daquilo que falta. Ou
seja, quando se faz deflagrador de algo maior.
7 No polo oposto, o conto se estende e atinge as
dimensões da novela ou de pequenos romances. O conto longo não é muito
comum na tradição brasileira, em que prevalece a pegada de crônica. O
leitor "made in Brazil" também está mais afeito ao formato ligeiro, alma
dos textos de jornais e de revistas, e agora consagrado pela internet.
Nosso maior representante nessa outra linhagem é Aníbal Machado,
mestre absoluto desta arte, que a modernizou sem deixar que perdesse o
apelo narrativo próprio do século XIX. Na obra-prima "Viagem aos Seios
de Duília", Machado une as duas pontas da vida de um funcionário público
aposentado, movido, décadas depois, por um alumbramento erótico da
infância. Mas a viagem que ele faz no espaço não coincide com a viagem
no tempo.
8 O Nobel concedido em 2013 a Alice Munro tem, entre
outros méritos, como o de premiar uma contista que fala da vida no
interior do Canadá, o de colocar em cena o conto longo. Em suas
narrativas, ela acompanha durante anos, muitas vezes em idas e vindas, a
história dos personagens. O fim sempre cria um choque no leitor, pois
confronta o que aconteceu no passado com o que a personagem se tornou no
presente. Mesmo que alguns possam ser lidos como romances falhados,
eles guardam as características próprias do conto.
Falando de sua técnica de produção remunerada para jornais, Tchekhov
explica o seu processo criativo, que pode ajudar a entender Alice Munro,
muito comparada a ele: "Meus inícios sempre prometem, como se estivesse
começando um romance, o meio sai espremido, tímido, e o final [sic],
como um conto breve, é uma espécie de fogo de artifício".
Na mesma carta, o autor de contos breves e longos define a sua
gramática, mostrando os limites do gênero: "Entre uma grande quantidade
de heróis e semi-heróis, você escolhe apenas uma personagem - o marido
ou a mulher -, coloca esta personagem sobre um fundo e passa a desenhar e
a dar realce somente a ela, enquanto as demais são espalhadas sobre
este fundo, como moedas miúdas" (27 de outubro de 1888). Não é o tamanho
que define o conto, mas o foco num personagem (que pode ser visto
momentaneamente, num único relance de sua vida, ou apresentado ao longo
de décadas) e numa língua altamente tensionada.
Numa tradição da rapidez, o conto longo recupera um fôlego de
romance, aproximando-se do leitor comum, mas sem renunciar aos
acabamentos de linguagem e de estrutura.
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*Miguel Sanches Neto, doutor pela Unicamp, professor da
Universidade Estadual de Ponta Grossa, é romancista, poeta, contista e
ensaísta. Autor, entre outros, do romance "A Máquina de Madeira"
(Companhia das Letras) e da coletânea de contos "Então Você Quer Ser
Escritor?" (Record)
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