sexta-feira, 21 de março de 2014

O QUE O CONTO ENSINA AO ROMANCE

 Miguel Sanches Neto*
1 Um grande contista não precisa ser um grande romancista, já o romancista tem que ter produzido alguns contos antológicos. Mas quem escreve romances deve passar pelo conto não como um estágio preparatório para a ficção maior. O conto de qualidade nunca é um mero exercício de musculação literária e, sim, um ponto de convergência do tratamento poético da linguagem e do corpo narrativo próprio da prosa. Esse encontro de duas modalidades textuais leva a uma consciência estética nos domínios da ficção.

Ricardo Piglia, em "Teses sobre o Conto", defende a narração de duplas histórias, uma de superfície e outra secreta. Essa natureza sobreposta também se manifesta na linguagem, que pertence a campos distintos.

Nessa linha, o conto se afastaria de uma das principais marcas da crônica: o relaxamento de linguagem. Uma crônica-padrão parece estar sempre esteticamente desarrumada. É um improviso em que as pequenas iluminações do cotidiano pesam mais do que a busca de uma precisão de conjunto. Há algo de troncho nas crônicas que se produz sob a pressão do prazo, uma tendência para o ziguezague, um bate-bola no meio do campo. O cronista não deseja fazer gol.

O conto é linguagem que se espraia de forma tensionada. Cerca em que os arames estão muito esticados. Nada pode ficar frouxo nesses arranjos. Dizer cada coisa encaminhando o leitor para o centro pulsante da história. Um bom conto, portanto, exige muito mais controle do que o romance e a crônica. Poderíamos dizer que nele a língua se encontra bem-acabada tanto do ponto de vista plástico quanto estrutural.

Aceita essa sua vocação para a amarração de linguagem, resta a imagem do contista como um atormentando com a palavra certa. Ele revisa antes, durante e depois da escrita. A sua identidade é essa. Luiz Vilela conta que, viajando em um ônibus, ouvia a conversa de passageiros à sua frente e, ali, sem dormir, modificava mentalmente as frases, procurando palavras e ritmos mais adequados. Um revisor insone, eis o contista.

Já Tchekhov pedia a seu amigo ("Cartas a Suvórin: 1886-1891", tradução de Aurora F. Bernardini e Homero F. de Andrade. Edusp: 2002) que lhe mandasse contos para revisar. Revisar era para ele editar, copidescar as narrativas dos amigos, para as quais escrevia outros fins, alterando a ordem, cortando partes. Vangloria-se o mestre: "Eu leio rápido. Lembre-se de que numa noite de inverno, em sua casa, fiz de um conto mal-ajambrado de [Evguéni Fiódorovitch] Kóni algo digno da edição de sábado, que no dia seguinte agradou muita gente" (23 de outubro de 1889). O conto não aceita ser mal-ajambrado, quer-se apresentável para a edição de sábado. Nesse trabalho, Tchekhov encontra mais do que passatempo: "A leitura dos contos e os consertos não me tomam mais de meia hora por vez, e me distraem. Não deixa de ser uma ginástica para o cérebro" (25 de novembro de 1889).

Na carta anterior, falando das características de certa dama, o médico nele se revela, pois comenta que ela precisa fazer ginástica. Traduzindo isso para os dias atuais, o conto seria "uma linguagem sarada".

Esse investimento na forma, no artesanato textual, quando desconsidera a trama, a história propriamente dita, conduz a uma prosa poética que é, em sua essência, a negação do conto. Esse formato exige uma habitação de fronteira, um pé aqui e outro acolá. Contar, mas também construir. Aproximar amorosamente as palavras sem obscurecer o enredo, potencializando-o.

Outro desvio que tal postura pode gerar é o da redução extrema da narrativa. O revisor tem uma tendência obsessiva pelo corte, pela amputação de membros supérfluos. E isso o faz miniaturizar os textos. Aliás, Ernest Hemingway chama de "Miniaturas" os seus contos de um parágrafo, publicado em "In Our Time" (Paris, 1924). E Dalton Trevisan, outro revisor obsessivo, inventa o "haiconto", a narrativa em dimensões de haicai. Ainda é Tchekhov quem identifica esse impulso: "Corto sem dó. Curioso, agora ando com mania de coisas curtas. Tudo o que leio, seja meu ou de outrem, parece que nunca é curto o suficiente" (6 de fevereiro de 1889). Essa mania se tornou uma tendência moderna.
No entanto, o conto reduzido a uma frase, a um parágrafo, só funciona como tal quando deixa como virtualidade toda uma história a ser escrita, quando transfere ao leitor o acréscimo daquilo que falta. Ou seja, quando se faz deflagrador de algo maior.

No polo oposto, o conto se estende e atinge as dimensões da novela ou de pequenos romances. O conto longo não é muito comum na tradição brasileira, em que prevalece a pegada de crônica. O leitor "made in Brazil" também está mais afeito ao formato ligeiro, alma dos textos de jornais e de revistas, e agora consagrado pela internet.

Nosso maior representante nessa outra linhagem é Aníbal Machado, mestre absoluto desta arte, que a modernizou sem deixar que perdesse o apelo narrativo próprio do século XIX. Na obra-prima "Viagem aos Seios de Duília", Machado une as duas pontas da vida de um funcionário público aposentado, movido, décadas depois, por um alumbramento erótico da infância. Mas a viagem que ele faz no espaço não coincide com a viagem no tempo.

O Nobel concedido em 2013 a Alice Munro tem, entre outros méritos, como o de premiar uma contista que fala da vida no interior do Canadá, o de colocar em cena o conto longo. Em suas narrativas, ela acompanha durante anos, muitas vezes em idas e vindas, a história dos personagens. O fim sempre cria um choque no leitor, pois confronta o que aconteceu no passado com o que a personagem se tornou no presente. Mesmo que alguns possam ser lidos como romances falhados, eles guardam as características próprias do conto.

Falando de sua técnica de produção remunerada para jornais, Tchekhov explica o seu processo criativo, que pode ajudar a entender Alice Munro, muito comparada a ele: "Meus inícios sempre prometem, como se estivesse começando um romance, o meio sai espremido, tímido, e o final [sic], como um conto breve, é uma espécie de fogo de artifício".

Na mesma carta, o autor de contos breves e longos define a sua gramática, mostrando os limites do gênero: "Entre uma grande quantidade de heróis e semi-heróis, você escolhe apenas uma personagem - o marido ou a mulher -, coloca esta personagem sobre um fundo e passa a desenhar e a dar realce somente a ela, enquanto as demais são espalhadas sobre este fundo, como moedas miúdas" (27 de outubro de 1888). Não é o tamanho que define o conto, mas o foco num personagem (que pode ser visto momentaneamente, num único relance de sua vida, ou apresentado ao longo de décadas) e numa língua altamente tensionada.

Numa tradição da rapidez, o conto longo recupera um fôlego de romance, aproximando-se do leitor comum, mas sem renunciar aos acabamentos de linguagem e de estrutura.
--------------------------------
*Miguel Sanches Neto, doutor pela Unicamp, professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa, é romancista, poeta, contista e ensaísta. Autor, entre outros, do romance "A Máquina de Madeira" (Companhia das Letras) e da coletânea de contos "Então Você Quer Ser Escritor?" (Record)
Fonte: Valor Econômico online, 21/03/2014

Nenhum comentário:

Postar um comentário