sábado, 22 de março de 2014

Vaidade fora dos padrões

Isabel Gnaccarini*

No Brasil, o assunto moda e beleza está ancorado nos cuidados com o corpo. Não é à toa que o país é o terceiro mercado mundial de produtos de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos, conforme dados do Ibope para 2013. A pesquisa realizada pela Pyxis Consumo, um braço do Ibope Inteligência, mostra que o mercado da beleza pessoal cresceu 87% desde 2007. E a estimativa de gastos dos brasileiros com esses produtos foi de R$ 55,13 bilhões no ano passado, o que representa um crescimento de 11% em relação ao ano anterior. A continuar nesse ritmo, sobretudo com a crise instalada nas economias dos EUA e países europeus, o Brasil chegará à vice-liderança no ranking mundial de consumos com cosméticos até 2017, chamando a atenção das grandes marcas de beleza do planeta.

Se por um lado o aquecimento da economia brasileira nos últimos anos responde por boa parte do lucro desse setor, não se pode ignorar o peso da Classe C para que o bom resultdo fosse alavancado (leia mais na reportagem "Entre o consumo e a consciência: um conto brasileiro"). A nova classe média sozinha respondeu por 40% do consumo de cosméticos no país. O destaque fica com o Nordeste. Segundo a Pyxis, três em cada dez pessoas que entraram para o mercado de consumo da beleza vivem na região. Caso emblemático desse movimento é o estado do Ceará. Somente no ano passado, o número de salões de beleza aumentou 47% em terras cearenses. Diante desse cenário, uma pergunta não quer calar: qual o padrão de beleza que a brasileira tanto busca alcançar?

"Visto nosso clima tropical, mostramos muito mais a pele e as formas do corpo. A cobrança em relação à estética corporal é grande", acredita Marilda Santos, 40 anos, assessora administrativa e ativista em movimentos negros. Mas segundo ela, os padrões estéticos impostos à mulher pela sociedade são de alguma maneira o avesso da real beleza brasileira. "Com exceção da moda praia (quando a brasileira se valoriza muito mais), seguimos um padrão europeu que por diversas vezes não valoriza os traços culturais da brasileira", diz.

Haveria uma "necessidade" de fazer parte de um modelo que nem sempre condiz com a realidade e a situação de nossas mulheres. "A mídia impõe um padrão que nem sempre é possível seguir por não ser adequado à pessoa, por questões estéticas ou financeiras", arremata com ‘um quê’ da feminista Naomi Wolf, célebre por fundamentar o "mito da beleza" como um dispositivo cultural que se utiliza da imagem de beleza feminina contra as próprias mulheres.

Essa crítica aos padrões impostos à estética do corpo, difundidos principalmente pelo mercado da moda e pela publicidade, traz a questão: como ficam aquelas mulheres que querem se libertar desses rituais, saindo da rota das tendências da estação e do consumismo? Há alternativas possíveis?

Para as consultoras de moda da Oficina de Estilo, a resposta está na autoestima. "E nossa ferramenta é o autoconhecimento", afirma Cristina Zanetti, sócia da consultoria. Desde maio de 2003, a empresa atendeu mais de 300 clientes na cidade de São Paulo em busca de um visual próprio. "Queríamos atender a mulheres como nós, mulheres reais", conta Cristina, apontando para seu público formado por mulheres de 25 a 45 anos, classe B. "Entendemos trabalhar com estilo, e não com imagem, pois a imagem é algo que não controlamos", vaticina.

As ferramentas da Oficina de Estilo são questionários, exercícios, entrevistas para conhecimento detalhado da pessoa e de seu guarda-roupa. "É a partir do momento em que a referência pessoal passa a ser a interna,não mais a externa, que passamos à autoaceitação e nos sentimos mais bonitas na frente no espelho", afirma a consultora. Afinal, quando vestimos algo que atenda às nossas necessidades, caminhamos com autoconfiança e segurança.

Fora dos padrões

Parece ser esse o caminho para a mulher comum que queira deixar de lado padrões sociais para ser tornar uma mulher especial.

Karina Belissi, advogada de 41 anos é um exemplo. Ela sabe explorar o seu biotipo de 1,58m de altura. No guarda-roupas, evita bermudas, saias longas, sandálias rasteiras. Entre colegas e familiares, seu estilo de vestir é alvo de elogios, escolhendo peças básicas, coordenáveis entre si e atemporais. Também não usa materiais sintéticos, tanto pela intolerância no contato com a pele quanto por acreditar que esse tipo de material não é de boa qualidade. Bastante vaidosa, Karina procura uma boa relação custo-benefício antes de consumir qualquer produto, priorizando a qualidade. Entre os itens de beleza que mais consome estão as maquiagens e os produtos para cabelos. Procura produtos hipoalergênicos, de alta durabilidade no uso. Para os cabelos, gosta dos rituais caseiros, que combinam mais com sua agenda agitada: usa máscaras, cujas receitas encontra em blogs sobre moda e beleza.

"Mas sair do julgo da beleza ideal não é fácil", confessa Marilda Santos. "Temos que vencer este estigma social, onde a mulher é vista como um objeto em exposição: a mulher objeto", resume. "Me libertei destes ideais quando entendi que o mercado não respeitava o meu padrão de beleza", completa. Havia uma época em que não havia cosméticos específicos para mulheres negras.

Ela faz questão de falar do problema racial ao tratar de beleza feminina. "Sempre fui grande, desde os 9 anos tenho coxas grossas, cintura fina, fora dos padrões estéticos. Mas minha mãe e irmãs sempre me mostraram que eu era bonita e que não precisava ser igual a ninguém, até porque somos de uma família de 5 mulheres, fisicamente diferentes umas das outras. Então, por que teríamos que parecer com algo imposto por alguém?", avalia Marilda.

No Brasil, a mistura de raças se fez desde a sua formação (se você não conhecer sua árvore genealógica ou não for estrangeiro, automaticamente será fruto de uma mistura de raças!), no entanto as pessoas se intitulam brancas. "É claro que temos problemas de autoimagem", acrescenta ela.

"O processo de libertação é um trabalho muito mais interno, de descobertas, do que de cirurgias plásticas, clínicas de estética ou cosméticos importados", diz Cristina Zanetti. O trabalho de autoaceitação e valorização é o que ela prega no livro "Vista quem você é" – um esforço de autoconhecimento e resgate. Para ela, consumo consciente é o consumo conscientizado: substituir o consumo por autoestima e comprar o que faz sentido para a pessoa, sem cair na armadilha de consumir por indulgência.

Para a professora de Moda do Senai-Cianorte (PR), Leny Pereira, a pesquisa na área de moda inclusiva levou-a a produzir modelagem de roupas para pessoas com deficiência. O trabalho começou em 2006 e reflete diretamente na autoestima dessas pessoas. Há 12 anos atuando na área, ela confirma que "a moda é um fenômeno cultural, onde o padrão de beleza demora muito a se modificar". O exemplo é cruel: não se usa mais espartilho, mas se preciso, as mulheres vão retirar uma costela para conseguir o mesmo objetivo.

Portanto, o conceito de sustentabilidade na moda para ela vai além dos produtos com vida útil maior. Isso ambém inclui enxergar as pessoas como elas são no mundo real. No Brasil, consumir o que vem de fora é um problema sério. "Precisamos valorizar a nossa imagem", ela defende.

A experiência da Oficina de Estilo confirma que a mulher costuma não querer apenas o corpo, mas a vida daquela mulher que está na capa da revista. "A mulher acredita que tendo aquele corpo, terá aquela vida também. Mas somos imperfeitas e incompletas. Isso é ser humano", alerta Cristina.

Sem dados estatísticos, mas com fortes indícios de que as brasileiras, mais do que outras, estão muito presas ao perfil de magreza e ao sofrimento com o envelhecimento, Cristina entende que a beleza real é ter um corpo saudável.

"Em nossas oficinas falamos em ter um corpo natural. Ensinamos que o corpo mais legal do mundo é o nosso corpo, aquele que recebemos geneticamente", conta a consultora. E a receita é reativamente simples: ingerir alimentos saudáveis, praticar algum exercício e dormir bem.

Consciência e educação

Quando o assunto é o uso de ingredientes da biodiversidade na composição da cosmética natural, uma pesquisa junto a consumidores de 11 países mostra que os brasileiros são os mais conscientes: 96% no Brasil; 95% na França; e 94% na China (dados de 2013). Porém, a confiança do consumidor em relação às empresas de beleza que se dizem ecológicas continua sendo baixa: 42% nos EUA e na Europa, e 64% nas economias emergentes confiam nas empresas. Quano o assunto é ética no uso da biodiversidade, a confiança é ainda menor: apenas 36% nos EUA e na Europa. O referido estudo é feito desde 2009 pela Union for Ethical BioTrade (UEBT), que avalia a
conscientização sobre biodiversidade e consumo em todo o mundo, incluindo saber como são percebidas as práticas das marcas de higiene e beleza que fazem uso da natureza em seus produtos.

Até hoje, o ‘Barômetro da Biodiversidade’ entrevistou 31 mil consumidores. Apoiada pela Natura Cosméticos, Denise Alves, diretora de Sustentabilidade da empresa, vê nesse mapeamento valiosas perspectivas sobre a consciência dos consumidores e suas expectativas sobre as práticas de suprimentos em biodiversidade. Mas a grande maioria (87%) dos consumidores gostaria de ter acesso a mais informações sobre o uso de biodiversidade na cosmética. E que fique um alerta às fabricantes: 84% dos consumidores desses produtos afirmam que deixariam de comprar uma marca caso ela não respeite as práticas éticas.

As pessoas respeitam quem respeita seu próprio negócio. E isso já vem fazendo história. Há 15 anos, Marilda Santos participou de uma campanha de conscientização pedindo que a mídia enxergasse os negros e negras, reconhecendo-os como consumidores. "Se nos comerciais não havia atores negros, entendíamos que não era para o negro consumir", explica. Hoje, é muito mais fácil tratamentos com especialistas em raça negra (esteticistas e dermatologistas) e há muitos bons produtos especiais no mercado. "Mas não são baratos, e este é o preço que prefiro pegar para não perder minhas raízes", ilustra a jovem mulher.

Já no setor da moda, o maior desafio está na área de modelagem e padronagem, que, segundo a professora Leny Pereira, deve ser revisto em acordo com a especificidade de cada biótipo existente no Brasil. "A brasileira é difícil de vestir pela diversidade étnica", avalia.

Quer dizer, para além da necessidade de educar o olhar conforme sua própria cultura, apurar a autoestima e melhorar o autoconhecimento, a indústria da moda e beleza tem uma grande responsabilidade nas mudanças.

Se o processo de conscientização foi apenas iniciado, a mitologia indica que a vaidade, o apreço à beleza e os cuidados femininos são anteriores e independentes de padrões e de consumismo. Nada poderá mudar o fato de que a beldade Vênus, símbolo do amor e da beleza no Panteão Romano, foi venerada, antes de mais nada, por seu vago olhar, uma característica feminina que nenhum creminho pode mudar.
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* Jornalista de formação, bióloga por destino, e socióloga por herança, concluí pós-graduação na École de Hautes Études en Sciences Sociales, Paris (1993), e fiz especialização no Centro de Estudos de Administração e Terceiro Setor da USP (2004). Na prática, foi a partir de 1999 que as matérias escritas para o Jornal Valor Econômico, O Estado de SP e Editora Abril ganharam contornos socioambientais. De 2004 para cá, seja editando publicações para a Ashoka Empreendedores Sociais, ou atuando em projetos sobre a Amazônia, economia da floresta, design e bioenergia, venho procurando entender o que é de verdade um mundo sustentável.
Fonte:  http://www.mercadoetico.net.br/

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