Entrevista: Ronaldo Mota
Ronaldo Mota, professor emérito da Universidade Federal de Santa Maria e autor do livro “Educando para a Inovação” (Berenice Roth)
O professor emérito da UFSM, especialista em ensino e inovação tecnológica, diz que o atual sistema educacional é obsoleto e que o novo modelo só se erguerá se docentes e instituições ouvirem as lições de um ator: o aluno
Bianca Bibiano
Séculos depois do início da universalização do ensino e décadas
após a introdução da formação profissional, a educação enfrenta uma
terceira revolução. O motor é a tecnologia. Nem todos, porém, reagem bem
ao terremoto, avalia Ronaldo Mota, professor emérito da Universidade
Federal de Santa Maria, ex-secretário de desenvolvimento tecnológico e
inovação no Ministério da Ciência e ex-secretário de ensino superior do
Ministério da Educação. "Os alunos já podem estudar em casa e até obter
diploma pela internet. Mas muitos professores ainda não perceberam esse
movimento: serão engolidos pela tecnologia e perderão a atenção dos
estudantes", diz Mota, que acaba de lançar, em coautoria com David
Scott, professor da universidade de Londres, o livro Educando para Inovação
(Elsevier, 49,90 reais). A obra aborda o desafio das escolas de formar
pessoas em um mundo de mudanças aceleradas em que a grande demanda é o
aprendizado permanente. A despeito do atraso geral de instituições e
mestres para lidar com a nova realidade — "O modelo de escola que
conhecemos hoje será completamente extinto. O papel do professor,
também" —, ele diz que o Brasil pode aproveitar a crise do modelo de
ensino para promover uma grande transformação. "Temos uma população
jovem, com nível de tolerância alto e flexibilidade diante de
experimentos, elementos que favorecem a adaptação. Se fizéssemos disso
um terreno para mudanças educacionais, provocaríamos uma grande
transformação." Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
"Seria um erro concluir que a escola não é mais importante. Ela
é, mas desde que reconheça a existência do novo processo e que saiba se
inserir nessa realidade."
Em Educando para Inovação, o senhor afirma que as
mudanças a que assistimos hoje não são apenas tecnológicas e que esse
movimento impulsiona também uma revolução de conceitos. Quais ideias
estão em transformação? Inovação é muito associada a
equipamentos e maquinário, mas as grandes mudanças deste século não têm
necessariamente essa característica. Tomemos como exemplo uma inovação
em outra área: o Cirque du Soleil. A partir do conceito tradicional do
circo, o grupo canadense promoveu uma reestruturação radical e formatou
um novo produto, criando um novo público. O conceito tradicional de
inovação parte da ideia de que existe, antes de tudo, uma demanda para
um produto ou processo. O que estamos vivendo neste século, porém, é o
aparecimento de mudanças que não provêm da necessidade. Elas são tão
revolucionárias que induzem a demanda após serem criadas. O tablet não
foi feito após uma consultoria descobrir que havia demanda por
computadores não portáteis. Ele surgiu como um produto inovador e criou a
demanda a partir dele. Talvez você não necessite de uma impressora 3D
agora, mas daqui a três anos vai querer uma em casa. O produto convence
você de que é impossível viver sem ele.
Como a escola se insere nesse contexto de mudanças aceleradas? O que significa educar para a inovação? Significa que a escola precisa formar pessoas aptas a viver nesse cenário de constante inovação. No modelo fordista (sistema predominante no séxulo XX marcado pela linha industrial de produção),
o papel da educação era formar técnicos competentes, aptos a atuar na
produção tradicional para desenvolver tarefas com eficiência.
Definitivamente, educação não é mais isso. O mundo não é mais fordista.
Hoje, o sucesso ou não das empresas está associado diretamente à
capacidade de inovar. O problema é que a escola segue se preparando para
o antigo modelo. É como formar profissionais competentes que podem
trabalhar em uma gráfica em vez de formar designers capazes de atuar em
várias plataformas de comunicação. As instituições de ensino ainda não
são, em geral, capazes de fazer esse raciocínio, pois carregam um atraso
intrínseco. A título de comparação, tomemos o que aconteceu na área
financeira nos últimos 30 anos: os bancos de hoje em nada lembram as
instituições do passado devido à ascensão tecnológica. Enquanto isso, a
escola permaneceu absolutamente a mesma. Ainda mantemos a figura
clássica do professor que entra na sala de aula e apresenta o conteúdo
para os alunos como se eles não soubessem nada. Isso, porém, não deve
nos dar a ilusão de que a escola não será transformada: ela será.
Que tipo de transformação será essa? O modelo de
escola que conhecemos hoje será completamente extinto. O papel do
professor, também. Ele poderá até receber outra denominação, como
"designer educacional", um profissional dedicado à organização de
conteúdos. Mas ele não poderá fazer essa tarefa sozinho: o processo de
ensino e aprendizado será cada vez mais coletivo. O designer educacional
de física que se propuser a colocar o conteúdo de aula em uma
plataforma on-line contará com ajuda de gente que saiba usar a
plataforma, alguém que entenda de design, usabilidade e ferramentas no
ambiente virtual. Não será uma pessoa só, vai ser um time. No começo do
processo de mudança, provavelmente ainda contaremos com um professor
clássico, que domina o conteúdo de uma disciplina. Mas ao lado dele,
veremos um menino de 14 anos, responsável por fazer a interface gráfica
da plataforma. É um fenômeno que já está acontecendo: as grandes
funcionalidades dos portais educacionais são desenvolvidas hoje por
jovens que dominam os sistemas digitais graças à afinidade que possuem
com o universo dos games. Se resolver ficar sozinho, o professor perderá
essa corrida.
Nesse cenário, como será o ensino? Grande parte dos
jovens já aprende parte do conteúdo escolar em canais que não dependem
da escola. Os alunos já podem estudar em casa e até obter diploma pela
internet. Mas muitos professores ainda não perceberam esse movimento:
serão engolidos pela tecnologia e perderão a atenção dos estudantes. Não
é o fim da escola, mas uma chance que se apresenta para aqueles alunos
que não aguentam permanecer em sala de aula e que procuram mecanismos
alternativos para adquirir o próprio conhecimento. Há muitos
adolescentes criativos, que serão profissionais muito competentes e que
simplesmente vivem em conflito com a escola. É um processo que vai
acontecer cada vez mais. Até pouco tempo, existia um conflito do
professor, que era alguém não digital, com o aluno, um nativo digital.
Já estamos na fase seguinte, do não diálogo. As crianças já chegaram a
uma etapa em que abstraem o conflito e simplesmente aprendem por conta
própria, independente da escola. Seria um erro concluir que a escola não
é mais importante. Ela é, mas desde que reconheça a existência do novo
processo e que saiba se inserir nessa realidade. Se a escola entender
isso como um confronto, vai perder.
Se a escola não mudar, a evasão de alunos vai crescer?
Sim. A escola já enfrenta esse fenômeno, ainda que se trate de uma
evasão não contabilizada. O aluno é deixado pelos pais na escola, senta
lá por algumas horas e finge prestar atenção às aulas. O professor, por
sua vez, altamente desestimulado, deixa o aluno ali, muitas vezes
evitando o conflito. Quando olhamos os resultados numéricos desse modelo
educacional, concluímos que o ensino vai mal. Sim, está ruim, mas é
mais grave que isso. Temos dois conflitos acontecendo ao mesmo tempo: o
ensino tradicional vai mal no Brasil e vai mal em si. Para superar essa
crise, precisamos melhorar a qualidade de ensino e, simultaneamente,
transformá-lo. O Brasil tem uma real oportunidade de dar um salto
significativo e mais rápido do que outros países se entender a
importância da inovação.
Por quê? Tomemos como base os resultados do exame do Pisa (mais importante avaliação educacional do mundo, realizada em alunos com 15 anos de idade),
da OCDE. A Finlândia está sempre nos primeiros lugares da prova, que
avalia o ensino tradicional. Qual a consequência? Os professores
finlandeses morrem de medo de mudar seu método de ensino: afinal, quem
quer mexer em time que está ganhando? A Finlândia pode não conseguir
enfrentar os desafios da inovação com tanta facilidade. O Brasil, por
sua vez, não tem motivo para temer a mudança. Afinal, se olharmos para o
ensino médio brasileiro, podemos afirmar que não há como piorar. Por
isso, temos um campo vasto para aplicar metodologias revolucionárias. O
Brasil tem 200 milhões de habitantes e 104 milhões de usuários da
internet, que em média navegam mais do que pessoas de outros países.
Temos uma população jovem, com nível de tolerância alto e flexibilidade
diante de experimentos, elementos que favorecem a adaptação. Se
fizéssemos disso um terreno para mudanças educacionais, provocaríamos
uma grande transformação.
Quais os caminhos para a inovação? Precisamos usar
metodologias que valorizem a aprendizagem independente. Em caminho
contrário, o Brasil deve ser o campeão mundial da aprendizagem
dependente. Desde a pré-escola até o pós-doutorado, o que fazemos é
estimular o estudante a ser dependente do professor. Por que o professor
que termina o pós-doutorado na universidade tem medo de sair do
laboratório? Porque ele é dependente. Nos países mais desenvolvidos, o
estudante é estimulado a encontrar seus próprios caminhos. Aqui,
criamos uma estrutura de dependência tão grande que as pessoas são
estimuladas a não abdicar da zona de conforto. O que mais precisamos é
do oposto disso. Quando isso ocorre, temos a rebelião à que estamos
assistindo, sem interferência do Estado, dos pais e muito menos da
escola: essa rebelião é movida pela juventude à procura de mecanismos
alternativos. Isso explica o sucesso de serviços de aprendizagem on-line
como o Veduca, que já tem 3,5 milhões de inscritos.
Como o senhor avalia projetos que tentam colocar o tablet na sala de aula?
Na maioria, são frustrantes, porque são feitos por gestores escolares
que não são do campo da tecnologia digital aplicada à educação. Daí,
cena comum, os pais pagam pelos tablets e, como as estatísticas
comprovam, eles ficam jogados em casa. Em geral, os alunos recebem o
aparelho com um material antiquado, com reproduções de apostilas
idênticas ao material impresso. Mas a questão vai muito além do produto.
O hábito de estimular o aluno a estudar em casa depois de ver o
conteúdo em sala aula é falido, não há a menor chance de dar certo. A
única forma de preparar alguém para a inovação e para a aprendizagem
independente é oferecer o conteúdo antes da aula e fazer com que os
momentos presenciais e coletivos passem por um filtro: só participam
desses momentos aqueles que demonstrarem o mínimo interesse. Se a
criança sequer tocar no conteúdo antes, ela simplesmente não deveria
participar do convívio. Sabemos, por vários experimentos, que se metade
da turma estiver prestando atenção e a outra metade não estiver, a parte
desinteressada contamina o restante do grupo e o resultado é um
desastre. Se o professor usar um filtro inicial baseado em interesse e
realizar os momentos coletivos somente com aqueles que demonstraram o
mínimo de interesse, os resultados vão lá para cima.
E o que o professor faria com o estudante que não se interessa?
Ele pode mandá-lo para a biblioteca, para uma sala de informática, para
qualquer outra atividade. Em uma metodologia tradicional, mesmo que o
professor tenha toda a rotina sob seu controle, ele precisa reprovar
aquele que não acompanhou o grupo. Isso não é negativo da mesma maneira?
Uma nova metodologia implica mudança de cultura. Vai ser normal que o
aluno assuma que não pode assistir à aula porque não se preparou para
ela, e terá que ser aceitável tanto para o gestor escolar quanto para os
pais. Na próxima aula, ele vai se preparar para participar.
Que mudanças de conceitos são necessárias para a transformação de que o senhor fala?
Todo o processo educativo tradicional é baseado na cognição, ou seja,
como se aprende e como se ensina. O mais importante no futuro será a
metacognição: o aluno terá que entender o processo ao que está submetido
e conhecer seus avanços, obstáculos e deficiências. Ele precisa se
enxergar no processo educacional. Isso abre a porta para um novo ponto: a
classe não se dividirá mais entre aqueles que sabem e os que não sabem,
mas dará espaço para um terceiro, que não sabe o conteúdo, mas sabe
onde encontrá-lo. No mundo atual e futuro, é mais relevante a atitude de
uma pessoa diante de uma pergunta para a qual ela não tem resposta,
porque o acesso à informação não é mais crítico. O professor tem que
esquecer essa ideia de que vai disputar espaço com a tecnologia. Não há
chance de ele dominar mais esse tema que um jovem. Ele tem que achar
mecanismos para dizer ao aluno: "Eu não sei essa linguagem como você
sabe, mas eu estou disposto a compartilhar o que eu sei e aprender com
você." Mas fazer isso exige um alto nível de maturidade e metacognição
para entender o papel de cada um. Ele não pode mais chegar na aula e
dizer que sabe mais, pois não sabe mais sobre certas áreas, como as
tecnologias digitais.
Não é, de fato, o que acontece hoje nas escolas, certo?
Não, ainda temos a maior parte dos professores pedindo que seus alunos
desliguem o celular durante as aulas. Mas eles não conseguem, cada vez
que ele vira para frente, o estudante está lá teclando. O problema real
não é esse, os jovens conseguem perfeitamente acompanhar os dois e não
haverá como mudar isso. As crianças não vão mais aprender equação de
segundo grau na escola. Elas vão procurar um vídeo, com um bom
professor, e vão aprender na hora que querem, como querem, com algum
nível de interatividade. O espaço tradicional de ensino hoje mais se
assemelha à tortura do que ao ensino.Tenho a esperança de que a escola
vá reconhecer esse movimento e se reconceitualizar.
Quais os avanços vistos em outros países? A
Inglaterra é um país que está avançando muito. Eles fizeram uma ação
interessante no ensino médio. Mudaram a obrigatoriedade de certas
disciplinas, como química, física e biologia: não é mais necessário
fazer as três ao mesmo tempo, e o aluno pode ter sua motivação voltada
apenas para biologia, por exemplo. Mas a maior inovação está em garantir
uma preparação dentro dessa disciplina para que o professor introduza
elementos de química e física. O aluno pode estudar pressão, conteúdo da
física, a partir do estudo da capilaridade das plantas, um capítulo da
biologia. Isso introduz, de forma agradável, conceitos que são
relevantes. O professor tradicional pode dizer que desse modo o
estudante não aprende toda a física e a química. Mas eu pergunto: por
acaso, ele aprende tudo com o atual sistema de aulas? Provavelmente não,
e ainda deixa a escola com raiva das ciências. Se você apresenta um
modelo em que o aluno desenvolve apreço pelo método científico e se
sente parte do processo, não importa se ele escolheu cursar uma, duas ou
três disciplinas, mas, sim, o fato de que, ao escolher, ele possa
dizer: "Eu sou corresponsável pelo processo."
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Fonte: http://veja.abril.com.br 30/03/2014
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