Sodô Yokoyama era um homem profundamente incomum sob o manto de sua
humildade e de sua certeza de ser um homem banal. Assim como outro
discípulo de seu mestre Kodo Sawaki, Taisen Deshimaru, ele não se
inclinou para uma vivencia dogmática do zen e foi muito pouco ortodoxo
em sua pratica. Era chamado de "O Mestre da Flauta de Folha".
Terno, risonho e infantil, ele se dirigia todos os dias ao parque de
Kaikoen na cidade de Komoro, província de Nagano. Lá permanecia sentado
em shikantaza, servia chá aos transeuntes, praticava caligrafia e tocava
uma “flauta de folha”. Para ele, fazer soar a música pueril e engraçada
de seus dedos e das folhas era como alimentar sua criança interior. Não
duvidamos que o ato deve ter sido um lindo koan para os que tiveram a
sorte de partilhar sua presença. Um perfil de Yokoyama foi traçado por
Arthur Braverman no livro Viver e Morrer em Zazen: Cinco Mestres Zen do
Japão Moderno.
O texto abaixo de sua autoria foi traduzido por mim e é uma pequena
joia. Tem o encanto adicional de relacionar a arte marcial, no caso o
kendo, ao espírito do zazen.
Livro de Braverman traça perfis de Sawaki, Yokoyama, Kato, Ikebe e Ushiyama
O Caminho dos Patriarcas
Sodô Yokoyama
Meu mestre Sawaki rôshi[1] sempre dizia a seu respeito: "Sou alguém
eternamente perdido. Nada está mais mergulhado na ilusão que eu. Sou
alguém iludido com enfeites bonitos. Sou completamente consciente disso
quando faço zazen”.
Que coisa extraordinária é o zazen. Quando meditamos, ideias
inoportunas, pensamentos fora de lugar – em resumo, as ilusões que
constituem os seres ordinários – parecem ter de repente uma necessidade
irreprimível de surgir e se manifestar. Além disso, surge o desejo de
expulsar esses pensamentos, um desejo também irreprimível no qual pomos
toda nossa energia. Aqueles que não fazem zazen nada sabem de tudo isto.
Por que quando praticamos as ilusões continuam aparecendo uma após
outra? Aprendemos pelo zazen que cada um de nós, seja príncipe ou
mendigo, não é mais que uma pessoa comum (perdida). Eis aqui a razão. O
esforço para expulsar estas ilusões – não sendo a ilusão mais que um
absurdo pois vai contra nossa própria felicidade e a do outro – da mesma
forma nos é revelado completamente pelo zazen. Por convenção chamamos
"buda" esta meditação que nos guia dessa forma.
Segundo este ensinamento ser simplesmente consciente de estar
perdido, o que provem da prática do zazen, já faz de você, na realidade,
um buda. O zazen nos ensina que estamos extraviados e nos livra assim
desta ilusão. Quando praticamos verdadeiramente e observamos atentamente
o aparecimento das ilusões, tomamos consciência de quão comuns somos e
do quanto é ridículo ser orgulhoso ou envaidecer-se. No há outra coisa a
fazer senão recolher-se tranquilamente. Depois de tudo é isso o que
verdadeiramente somos.
Sawaki, mestre de Sodô, considerado o grande renovador do zen no séc XX
O satori [o despertar] significa despertar para o fato de que estamos
perdidos. Existe então o desejo, mesmo insignificante, de parar essas
ações ilusórias. É desta forma que a pessoa comum se salva por zazen.
Realizamos imaculadamente nossa banalidade por nossa prática de
zazen.Toda interrupção do zazen (buda) nos tornará incapazes de abordar
essas ilusões e perderemos nosso caminho. Podemos dizer que o mundo se
engana por não poder abordar suas ilusões. Enganar-se, ou se perder,
significa vagar nos seis domínios do renascimento. Todos os problemas do
mundo, sejam políticos, econômicos, etc., proveem de situações nas
quais a consciência da própria banalidade não está presente.
Sawaki Rôshi dizia: "De um ponto de vista religioso aqueles que não
são conscientes de sua banalidade são superficiais e cômicos."
O demônio – que é a ilusão –, quando é reconhecido como tal, não pode fazer uso de seus poderes e desaparece por si mesmo.
Shâkyamuni despertou para o fato de que não era mais que uma pessoa
ordinária e se converteu em um buda. Depois começou a viver a vida de um
buda. Quando você realiza sua banalidade se torna um buda e quando se é
um buda pouco importam as ideais fora do lugar ou os pensamentos
inoportunos que aparecem, eles já não constituem a medida de um buda.
Dessa forma já não são obstáculos. As ilusões que já não são obstáculos
se chamam fantasias. O Caminho do budismo – o caminho da paz – é a
transformação da ilusão em fantasia.
Realizamos imaculadamente nossa banalidade por nossa prática de
zazen. [...] Todos os problemas do mundo, sejam políticos, econômicos,
etc., proveem de situações nas quais a consciência da própria banalidade
não está presente.
Apesar da unidade ser a qualidade do zen, numerosas qualidades
coexistem nesta unidade. O zen é o rosto original do caminho universal. É
o nosso rosto original. Como dizia meu mestre: "Não havia ilusão no
passado, não há despertar agora. É o rosto original de si mesmo." O
satori não é necessário quando não há ilusão. É por isso que meu mestre
também dizia: "Não há problema em não alcançar o despertar.
Certifique-se simplesmente de não se desviar. Assim, se você não se
desviar [não se perder nas ilusões], o rosto original já está aqui. Por
isso, permaneça tal como é, seja seu eu de agora tal como ele é."
Resguardar-se dos desvios é fazer da ilusão uma fantasia. Pouco
importa a quantidade de pensamentos ilusórios a partir do momento em que
eles já não são obstáculos. É neste sentido que se diz no zen: "Não
havia ilusão no passado, não há ilusão hoje." Em outras palavras, no
zazen não há ilusão, nem despertar, nem pessoas perdidas, nem budas. E é
por esta razão, pelo fato de que desde sempre não existe ilusão, nem
despertar, nem santo, nem pecador no zazen que nós temos shikantaza –
apenas sentar-se. Posto que não havia ilusão no passado nem despertar
agora, não há necessidade de buscar o buda, nem existe inferno ou
fracasso.É por isso que nós temos expressões fortes, como: "Mesmo se eu
cair no inferno isso pouco importa." O grande mestre Sekitô (700-790)
expressava shikantaza da seguinte maneira: "Mesmo se eu afundar para
sempre, por exemplo, na ilusão, me comprometo em não buscar a salvação
dos santos." Existe um buda ou um inferno no shikantaza? Não, não há
nada mais que uma postura unificada e concentrada. Que grandiosa
expressão utilizava Sekitô para descrever isto.
Sodô Yokoyama toca sua flauta de folha no Bosque de Kaikoen em Nagano
No budismo sentar-se com este tipo de energia espiritual se chama o
esforço justo. Dogen fala deste esforço justo como "nove vezes nove
fazem oitenta e dois". Se desde o início você faz o esforço necessário
para obter oitenta e dois de nove vezes nove, pouco importa que apareça a
ilusão, ela não será um obstáculo.
Sekitô se expressava segundo estes ensinamentos de uma forma mais
doce: "A nuvem branca (a ilusão) não coloca obstáculos no vasto céu
(zazen)." E Dogen dizia: "O vento dos pinheiros soa em vão aos ouvidos
de um surdo (o meditador)."
A despeito do vento nos pinheiros soprar em vão nos ouvidos de um
surdo (oitenta e dois), ele sopra. (Por mais numerosas que sejam as
paixões, me comprometo a cortá-las). Como nossas ilusões não se
interrompem nunca, nossa pratica de zazen tampouco se interrompe. Se
estivermos decididos a fazer zazen, não apenas em toda nossa vida, mas
também em todas as inumeráveis vidas por vir, experimentaremos um
sentimento de paz majestosa...
Assim como ocorre no kendo, não se trata tão somente da prática
durante esta vida, mas também da determinação de praticar ao largo de
inumeráveis vidas, o que também nos dá um sentimento de paz majestosa.
Voltemos ao zazen que se torna shikantaza. "Zazen é uma pessoa comum
que está sempre se convertendo em buda." Aqui também alguém se converte
em buda na medida que mergulha em si mesmo praticando uma postura
sentada ativa. Se não é feita dessa forma a meditação será uma dolorosa
prática ascética. O zazen de se tornar buda é chamado de método do zazen
do descanso agradável. A prática unificada é um descanso prazeroso.
Como a meditação consiste em se converter em buda na sua condição
comum – tal como sois – isso não é somente "o buda que é unicamente o
buda". E como é uma pessoa comum a que se converte em buda, ela não é
apenas uma pessoa comum. Mesmo admitindo que isto seja buda, isto não é
buda. A essência, ou dito de forma melhor, o alcance disto, é expresso
pelo ensinamento do "nem um, nem dois". Igualmente se fala simplesmente
do ensinamento do não dois.
Em termos budistas diríamos do kendo: O kendo não é nem para um nem
para dois. Há na verdade um esforço que é um descanso aprazível – o
satori. Se o kendo não é para um e nem para dois, então para quem é? É
idêntico ao zazen. A meditação não é nem para os budas nem para as
pessoas comuns. Para quem ela é então? E, no entanto, existe algo que é
simplesmente zazen. É a partir deste ponto de vista que temos
shikantaza, o zazen que é tão somente sentar-se. Em termos budistas
poderíamos dizer que o kendo é igualmente shikan kendo – tão somente
kendo.
Meu mestre dizia: "Não poupe seu esforço. As pessoas têm sempre certa
moderação quando fazem um esforço. Quando você poupa alguma coisa,
pouco importa o que você faz, seus esforços serão reduzidos a nada. Você
faz isso quando diz "Isso não está certo" ou "eu não posso fazer."
Antigo praticante de kendo: a arte marcial possui forte espiritualidade
Para liberar o kendo de seus limites não se deve praticar unicamente
durante toda a vida, mas também por toda a eternidade. Se você pratica
desta maneira o kendo perde seus limites, como o budismo ilimitado. Se é
um kendo ilimitado, até mesmo um menino que empunha pela primeira vez
um sabre de bambu pratica um kendo ilimitado.
Quando você diz "é isto" fazendo todo o esforço para que nove vezes
nove sejam oitenta e dois, nada lhe é impossível. Já que nós, os seres
humanos, enquanto primatas presumimos que podemos fazer esforços além de
nossas capacidades habituais. Em termos budistas diríamos que o segredo
daquele que despertou para o espírito de buda depende de sua vontade de
agir...
No budismo o esforço diligente não está limitado a esta vida. Inclui a
resolução de praticar ao longo de vidas e mortes inumeráveis e por toda
a eternidade.Eu também devo ter esta vontade de praticar. Se sou capaz
de uma resolução assim, um sentimento transcendente de paz resultará
dela. Já que este espírito aprazível e o despertar são idênticos, não é
uma questão de estar desperto para alguma coisa, mas sim a decisão de
praticar o caminho de buda com o esforço exato - obter oitenta e dois
através do nove vezes nove – e por toda a eternidade. Se sou capaz desta
decisão eu mesmo me torno eterno. Assim o satori, o espírito
apaziguado, significa converter-se em um com a eternidade – a eternidade
vasta e sem limites.
Quando nove vezes nove perfazem oitenta e um se coloca uma limitação.
Se alguma coisa possui limitações visíveis é limitada. Se no kendo você
diz: "se você alcançar tal nível está em boa forma", você limita o
kendo. Ainda mais, se o satisfaz ser o número um do Japão em um grande
torneio muito aplaudido, você será ainda assim limitado, mesmo que isso
pareça uma grande proeza. Para liberar o kendo de seus limites não se
deve praticar unicamente durante toda a vida, mas também por toda a
eternidade. Se você pratica desta maneira o kendo perde seus limites,
como o budismo ilimitado. Se é um kendo ilimitado, até mesmo um menino
que empunha pela primeira vez um sabre de bambu pratica um kendo
ilimitado. E uma vez que o zazen é eterno, o zazen é ilimitado, o mesmo
ocorre com alguém que se senta pela primeira vez. Isto não é uma prática
limitada pela afirmação de que deve ser praticada durante anos. O único
satori que é eficaz, se é que se pode utilizar este termo, é o zazen
eterno e ilimitado que é praticado e que jamais é abandonado e nem
descuidado. Todas as atividades ou coisas que sentem o satori não valem
nada. Quando você estuda o budismo e quer obter tal e tal coisa, quer se
tornar isto ou aquilo, você impõe um limite. Este não é o caminho do
buda ilimitado.
Verdadeiramente espero estar disposto a fazer o esforço necessário e
tomar a decisão de praticar esta via do buda ilimitado. Se eu devo por
um limite a esta prática, este seria a decisão de praticar eternamente.
Já que se trata da decisão de uma prática verdadeira de zazen, por que
não fazer desta resolução o limite de sua prática de kendo? Um limite
sem limites.
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* Escreve no Obvious.
[1] Kodo Sawaki mestre soto zen japonês considerado o mais influente
do século XX. Órfão, foi criado por uma prostituta e um jogador e
decidiu ingressar em um mosteiro ainda garoto. Extremamente simples e
sem instrução elevada, não só teve sua sabedoria reconhecida como a
espalhou por todo o Japão ganhando o apelido de “Kodo sem teto” devido a
suas constantes viagens. Foi também o mestre de Taisen Deshimaru. Nota
da Tradutora.
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