Montserrat Martins*
pois o que
distingue o amor de todas as
outras formas de encantamento
é a
permanência."
Ouvir as pessoas é a parte mais essencial do meu trabalho. Histórias de
vida carregadas de sofrimentos mas também de esperanças, de desilusões
mas também de surpresas reconfortantes, de desespero às vezes, de muitas
lutas, buscas incessantes de soluções para seus dramas. Por maiores que
sejam as dificuldades materiais, os dramas amorosos ocupam um papel
central na vida das pessoas. Um jovem rouba um carro para passar na
frente de uma garota e ser notado. Outro consegue largar as drogas por
uma paixão e buscar forças indo à Igreja da namorada que lhe apoia na
luta contra a dependência.
Há dramas carregados de dúvidas que irão repercutir no futuro
emocional destas famílias. Uma mãe conta que o novo namorado quer
registrar sua filha como se fosse pai dela, quer assumir o papel de pai,
o que ela interpreta como uma forma de amor, mas que – aqui entra o
papel do psiquiatra em questionar – pode ser na verdade uma manifestação
de possessividade, ciúmes, controle. Um amor verdadeiro de um padrasto
pela companheira e pela filha desta não se prova com um papel, o que
importa é o vínculo, a vivência, a qualidade do relacionamento
cotidiano. Porque um papel para configurar uma “paternidade” de um
possível padrasto com o qual a mãe está há apenas seis meses junto, como
no caso da mãe que trouxe essa dúvida?
Porque um padrasto quer “substituir” um pai, que ele sequer conhece? O
que ele sabe realmente desse pai, da família paterna da criança, e do
que a criança está perdendo por não conviver com a família paterna
biológica? E o que a mãe vai fazer se esse relacionamento não der certo,
vai pedir ao próximo padrasto para trocar o registro da menina e
adotá-la? Quando fiz esses questionamentos para a mãe, percebi que ela
não pensara profundamente no assunto. Estava movida pelas emoções do
momento, como tem sido a regra nestes tempos de amores líquidos.
“Modernidade líquida”, de Zygmunt Bauman, é o retrato cada vez mais
perfeito da sociedade do século XXI, onde “tudo que é sólido desmancha
no ar”. Uma compreensão mais profunda da nossa era merece uma reflexão
histórica, ao longo dos últimos séculos. “História do Amor no Brasil”,
de Mary Del Priori, é uma leitura deliciosa que nos coloca em contato
com nossas raízes, nos últimos cinco séculos. A falta de liberdade, a
hipocrisia, a imposição de papéis sociais, o uso sexual das pessoas, os
jogos de sedução, as traições, são séculos cumulativos de escravidão,
mentiras, falsidades. Nenhum exagero na “liquidez” dos amores do século
XXI pode ser comparado às infelicidades impostas nos séculos passados,
do império de perversidades e da falsa moral vigentes em nossa história e
na da humanidade toda.
Hoje os desafios são outros. Séculos de lutas para conquistarmos a
liberdade sexual e amorosa são desfrutados sem compromissos, sem
responsabilidades e sem maiores cuidados, muitas vezes. Muitos se sentem
chocados com os amores líquidos de nossa era e eles tem efeitos
colaterais, sim, que já se fazem notar e se tornarão ainda mais visíveis
no futuro. Estamos vivendo um “porre de liberdade” e cada pessoa tem o
seu próprio tipo de ressaca, afinal cada organismo reage de modo muito
pessoal ao uso de álcool e outras drogas – e como diz uma frase feita,
“o amor é uma droga”, se referindo na verdade à paixão.
Amor, paixão, sedução, ilusão, são termos que se confundem no
imaginário de todos nós. Distinções que não cabem aqui, são um outro
assunto, mas a rigor “amores líquidos” é um termo paradoxal, pois o que
distingue o amor de todas as outras formas de encantamento é a
permanência.
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* Colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.Imagem: CRA/RJ
Fonte: EcoDebate on line, 17/03/2014
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