terça-feira, 11 de março de 2014

Papa Francisco e a proximidade: Não se visitam os amigos dentro de uma caixa de vidro

 Capa
Em agosto de 2013, na Casa de Santa Marta, no Vaticano, António Spadaro entrevistou o papa Francisco, e o resultado dessa conversa foi publicado em todo o mundo, por várias revistas culturais dos Jesuítas.

O livro "Temos de ser normais - Papa Francisco em conversa aberta com Antonio Spadaro" (ed. Paulinas, 136 pág., 6,90 €) apresenta a entrevista, mas inclui também um aprofundamento dos factos, remetendo para aquilo que Jorge Mário Bergoglio disse e escreveu como jesuíta, como sacerdote e como pontífice, fazendo maior luz sobre os temas abordados no diálogo entre ambos. 

O padre Spadaro, jesuíta, recebeu a mesma formação que Jorge Mario Bergoglio, pelo que consegue iluminar o significado das palavras do papa e ilustrar o panorama cultural e humano que as inspirou.
O volume, de que apresentamos um excerto, pretende revelar o pensamento do papa, a sua formação, espiritualidade e a relação com a arte e com a oração, ao mesmo tempo que deixa entrever as motivações das decisões tomadas por Francisco e as que poderá vir a tomar no futuro.

A Igreja, um hospital de campanha

Antonio Spadaro

Desde os primeiros momentos do seu ministério petrino, o papa Francisco propôs como imagem da Igreja a do povo de Deus, caminhando «à luz do Senhor» (Is 2,5). Basta pensar nas suas palavras imediatamente a seguir à sua eleição para o pontificado: «E agora, comecemos este caminho: bispo e povo», dissera ele, pedindo em seguida para que rezassem por ele: «E agora gostaria de dar a bênção, mas antes disso, antes disso, peço-vos um favor: antes de o bispo abençoar o povo, peço-vos que peçais ao Senhor que me abençoe: a oração do povo, que pede a bênção para o seu bispo.»

Com este pedido de oração, o Papa tornou «atores» e protagonistas aqueles que por si só, naquele momento, apenas pensariam em inclinar-se para receber a bênção. O Papa, nas suas ações, gosta de transformar em atores aqueles que tem à sua frente. Ou, pelo menos, gosta de convidá-los à ação. Na realidade, mais do que «comunicar», o papa Francisco cria «eventos comunicativos » em que quem recebe a sua mensagem participa ativamente: «Deus entra nesta dinâmica popular.» A Igreja, para Bergoglio, tal como para De Lubac, que o inspira, não tem nada a ver com a ideia de uma sociedade invisível e restrita, de poucos eleitos.

A dinâmica vital da Igreja, explicitada durante a Missa pro Ecclesia celebrada com os cardeais eleitores na Capela Sistina, a 14 de março, é «caminhar, edificar, confessar». Convém recordar que Santo Inácio de Loiola faz referência, precisamente, ao «exercício corporal» do caminhar para dar a entender o que é o «exercício espiritual» (EEs, 3). A Igreja, em caminho «espiritual e missionário», é chamada a «edificar-se» a si própria «sobre a pedra angular que é o próprio Senhor», confessando a fé nele.

A santidade de que o Papa gosta e que sente próxima é a santidade «média», comum, que exprime ao mesmo tempo muita paciência e muita constância no seguir em frente dia após dia. Os «ícones» dessa santidade são a sua avó Rosa, a irmã enfermeira que lhe salvou a vida, o velho sacerdote que olha para trás, recordando a sua vida de serviço. Com efeito, essa «classe média da santidade» não é medíocre, pelo contrário, é precisamente aquela que é capaz de ser fecunda, geradora de vida. Para o Papa, ser fecundo é o traço característico de uma vida que vale a pena ser vivida. Mas que significa essa «fecundidade» para a Igreja?

 «Será que ainda somos uma Igreja capaz 
de aquecer o coração? Uma Igreja capaz de 
reconduzir as pessoas a Jerusalém? 
De as acompanhar no seu 
regresso a casa?»

Das palavras do Papa emerge uma resposta: o retrato de uma Igreja capaz de se aproximar de cada homem e de caminhar a seu lado, como fez Jesus com os discípulos de Emaús: «Jesus em pessoa aproximou-se e pôs-se a caminhar com eles» (Lc 24,15). Como se tem verificado claramente, porém, acompanhar o homem não significa, na verdade, adaptar-se ao espírito do mundo. Bergoglio manifesta-se violentamente contra a «mundanidade espiritual» que vem antes da ética. Vê as armadilhas do individualismo, do relativismo e do secularismo. Acompanhar não significa adaptar-se nem ceder, mas amparar. O pontificado do papa Francisco é profundamente «dramático». Bergoglio faz uma leitura militante da realidade, em luta contra a mundanidade e contra o demónio, várias vezes evocado nos seus discursos. Mas, precisamente, evocar o demónio faz com que não se possam demonizar as pessoas. O mal, o pecado e a tentação são bem claros.

A Igreja de Francisco é uma Igreja em discernimento que vive com os olhos abertos, constantemente fixos em Deus, capaz de ler com realismo os acontecimentos, de estar atenta àquilo que a rodeia. E o discernimento, sempre segundo a tradição inaciana, deve ser guiado pela «consolação» que, segundo Inácio de Loiola, «inflama a alma» (EEs, 316), aquece o coração. Eis, portanto, o apelo de Bergoglio: «Será que ainda somos uma Igreja capaz de aquecer o coração? Uma Igreja capaz de reconduzir as pessoas a Jerusalém? De as acompanhar no seu regresso a casa?» Companhia, escuta, calor que se contrapõe ao afastamento, à frieza, à rigidez, portanto: «Só serve uma Igreja que volte a transmitir calor, a inflamar o coração». É esta a Igreja fecunda, capaz de dar vida ao mundo.

A proximidade que a Igreja deve demonstrar ao homem manifesta-se concretamente na atitude do Papa: nos «insólitos» telefonemas a pessoas que lhe escreveram, bem como na opção de estar no meio das pessoas, para desespero dos responsáveis pela sua segurança, como aconteceu durante ao viagem ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude, em finais de julho de 2013.

 «Para mim é fundamental a proximidade da Igreja. 
A Igreja é mãe, e nem você nem eu conhecemos nenhuma mãe “por correspondência”. A mãe dá afeto, toca, beija, ama. Quando a Igreja, ocupada em mil coisas, negligencia a proximidade, a esquece e comunica apenas através de documentos, é como uma mãe que comunica 
por carta com o seu filho.»

O próprio Papa falou disso aos jornalistas: «Segurança para cá, segurança para lá... nestes dias, não houve um incidente em todo o Rio de Janeiro, embora tenha sido tudo espontâneo. Com menos segurança, pude estar com as pessoas, abraçá-las, saudá-las, sem carros blindados... é a segurança de nos fiarmos de um povo. É verdade que se corre sempre o risco de que haja um louco... eh, sim, que haja um louco que faça alguma coisa; mas também há o Senhor! Contudo, estabelecer um espaço de blindagem entre o bispo e o povo é uma loucura, e eu prefiro esta loucura: sair e correr o risco da outra loucura. Prefiro esta loucura: sair. A proximidade faz bem a todos».

Numa entrevista precedente com Gerson Camarotti da emissora brasileira Rede Globo, o Papa, respondendo ainda a uma pergunta sobre a sua segurança, fora ainda mais claro sobre as suas motivações: «Se vais visitar alguém de quem gostas muito, visitar amigos, com vontade de comunicar, vais visitá-los dentro de uma caixa de vidro? Não. Eu não podia vir visitar este povo, que tem um coração tão grande, atrás de uma caixa de vidro. E no automóvel, quando vou pelas ruas, abro a janela, para poder meter a mão de fora, para saudar. Ou seja, ou tudo ou nada: ou se faz a viagem como deve ser, com comunicação humana, ou não se faz; a comunicação a meias não faz bem a ninguém.» E concluiu: «Já que venho visitar as pessoas, desejo tratá-las como pessoas. Tocar-lhes».

Na mesma entrevista, o Papa radica na maternidade da Igreja esta atitude fecunda e sem barreiras físicas: «Para mim é fundamental a proximidade da Igreja. A Igreja é mãe, e nem você nem eu conhecemos nenhuma mãe “por correspondência”. A mãe dá afeto, toca, beija, ama. Quando a Igreja, ocupada em mil coisas, negligencia a proximidade, a esquece e comunica apenas através de documentos, é como uma mãe que comunica por carta com o seu filho.» Por várias vezes, no passado, o então cardeal Bergoglio se referira ao «calor maternal da Igreja». E esse calor também deve ser manifestado fisicamente. É o que requer, segundo Bergoglio, a lógica da Encarnação. Assim, quem interpreta indevidamente os gestos do Papa como expressão de simples ingenuidade, de espírito bonacheirão e simplório, de naïveté, não entendeu, na realidade, aquilo que está a acontecer, o seu significado profundo.

A sua necessidade de estar perto das pessoas – sobretudo das que estão em dificuldade, dos pobres, dos marginalizados – tem-se manifestado muitas vezes. Recordemos a visita a Lampedusa, aquilo em que mais insistiu na sua visita a Cagliari ou ao Brasil, nalguns lugares altamente simbólicos. (...)

No Hospital São Francisco de Assis, na Providência [Rio de Janeiro], todos viram os abraços tão calorosos entre o Papa e os ex-toxicodependentes. Aí, ele exclamou: «Abraçar, abraçar. Todos nós temos necessidade de aprender a abraçar quem está necessitado, como fazia São Francisco». Para bater à porta do coração é necessário, portanto, ter as mãos «nuas», não ter filtros, tocar a carne. Esta dimensão física não é acessória, para o papa Francisco, não é uma mera questão de «estilo», mas parte da comunicação da forte mensagem da Encarnação. (...)

Uma Igreja missionária é uma Igreja que proclama pelos caminhos o anúncio da salvação, um anúncio «que faz arder o coração». Por isso é central a referência ao episódio dos discípulos de Emaús, no último capítulo do Evangelho de Lucas (24,13-35): um episódio particularmente caro ao papa Francisco, que também o propôs como meditação no recente encontro com o episcopado brasileiro. Os dois discípulos fogem de Jerusalém, escandalizados com o fracasso do Messias, no qual tinham colocado a sua esperança. Aqui podemos ler o difícil mistério das pessoas que abandonam a Igreja; ou seja, dos muitos que pensam que esta já não pode oferecer nada de significativo nem de importante. Porquê? O Papa faz uma análise sintética, mas profunda, das razões de quem se afasta: «Talvez a Igreja se tenha revelado demasiado débil, talvez demasiado alheia às suas necessidades, talvez demasiado pobre para responder às suas inquietações, talvez demasiado fria em relação a elas, talvez demasiado autorreferencial, talvez demasiado prisioneira das suas próprias linguagens rígidas; talvez o mundo pareça ter transformado a Igreja num destroço do passado, insuficiente para as novas necessidades; talvez a Igreja tenha respostas para a infância do homem, mas não para a sua idade adulta».

Esta enumeração de «talvez» é, na realidade, uma listagem de pecados ou, pelo menos, de tentações que a Igreja vive no seu caminho ao longo da história e que se resumem numa atitude de alheamento, frieza e rigidez. É motivo para um exame de consciência eclesial. Frente a esta situação, que fazer, portanto? Que Igreja «serviria» para os homens de hoje, que são como os dois discípulos de Emaús?

O Papa traça então, de forma positiva, um retrato de Igreja realmente vivo, acompanhando-o com uma análise da condição do homem contemporâneo: «Serve uma Igreja que não tenha medo de entrar na sua noite. Serve uma Igreja capaz de se encontrar com ele no seu caminho. Serve uma Igreja capaz de entrar nas suas conversas. Serve uma Igreja que saiba dialogar com aqueles discípulos que, ao fugirem de Jerusalém, vagueiam sem meta, sozinhos, com o seu próprio desencanto, com a desilusão de um cristianismo agora considerado terreno estéril, infecundo, incapaz de gerar sentido».

Este diálogo também ajuda a compreender as razões de um afastamento: «Quem abandonou a Igreja – diz Francisco durante o nosso colóquio – fê-lo, às vezes, por razões que, se forem bem entendidas e sopesadas, podem conduzir a um retorno.» Aqui o Papa valoriza o desejo positivo e bom que há em cada homem e que até o pode conduzir a tomar opções que, como neste caso, podemos considerar erradas. Contudo, por trás da decisão errada, por vezes, há uma boa motivação. Por exemplo, se uma pessoa se afastou da Igreja pelo facto de a sua experiência subjetiva ser negativa, de falta de autenticidade, então será precisamente o desejo de autenticidade que poderá trazê-la de volta ao seio da Igreja.

Por outro lado, o Papa disse-me que acompanhar o rebanho também significa fiar-se no facto de que ele «tem “faro” para encontrar novos caminhos». A certa altura, falou-me do «olfato da fé». Tanto para Bergoglio como para Inácio de Loiola, os sentidos são simultaneamente físicos e espirituais. Os sentidos espirituais estão envolvidos no discernimento. E a Igreja a caminho é uma Igreja em discernimento que, unida, encontra o caminho, avançando graças ao «faro» da fé. E isso implica, certamente, uma descentralização. O discernimento diz respeito a toda a Igreja, e muitas problemáticas têm uma dimensão territorial. Devemos esperar, portanto, que o papel dos episcopados locais venha a ser valorizado.

O papa Francisco quer que a Igreja seja sal e luz, ou seja, ao mesmo tempo «farol» que ilumina de uma posição elevada e estável, mas também «archote» que se sabe mover no meio dos homens, acompanhando-os no seu caminho insidioso, qualquer que seja a sua direção, para evitar que a luz se reduza apenas, para muitos deles, a uma remota recordação.
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In Temos de ser normais, ed. Paulinas
Fonte: Site de Portugal: http://www.snpcultura.org10.03.14

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