Em agosto de 2013, na Casa de Santa Marta, no
Vaticano, António Spadaro entrevistou o papa Francisco, e o resultado
dessa conversa foi publicado em todo o mundo, por várias revistas
culturais dos Jesuítas.
O livro "Temos de ser normais - Papa Francisco em
conversa aberta com Antonio Spadaro" (ed. Paulinas, 136 pág., 6,90 €)
apresenta a entrevista, mas inclui também um aprofundamento dos factos,
remetendo para aquilo que Jorge Mário Bergoglio disse e escreveu como
jesuíta, como sacerdote e como pontífice, fazendo maior luz sobre os
temas abordados no diálogo entre ambos.
O padre Spadaro, jesuíta, recebeu a mesma
formação que Jorge Mario Bergoglio, pelo que consegue iluminar o
significado das palavras do papa e ilustrar o panorama cultural e
humano que as inspirou.
O volume, de que apresentamos um excerto,
pretende revelar o pensamento do papa, a sua formação, espiritualidade e
a relação com a arte e com a oração, ao mesmo tempo que deixa entrever
as motivações das decisões tomadas por Francisco e as que poderá vir a
tomar no futuro.
A Igreja, um hospital de campanha
Antonio Spadaro
Desde os primeiros momentos do seu ministério
petrino, o papa Francisco propôs como imagem da Igreja a do povo de
Deus, caminhando «à luz do Senhor» (Is 2,5). Basta pensar nas suas
palavras imediatamente a seguir à sua eleição para o pontificado: «E
agora, comecemos este caminho: bispo e povo», dissera ele, pedindo em
seguida para que rezassem por ele: «E agora gostaria de dar a bênção,
mas antes disso, antes disso, peço-vos um favor: antes de o bispo
abençoar o povo, peço-vos que peçais ao Senhor que me abençoe: a oração
do povo, que pede a bênção para o seu bispo.»
Com este pedido de oração, o Papa tornou «atores»
e protagonistas aqueles que por si só, naquele momento, apenas
pensariam em inclinar-se para receber a bênção. O Papa, nas suas ações,
gosta de transformar em atores aqueles que tem à sua frente. Ou, pelo
menos, gosta de convidá-los à ação. Na realidade, mais do que
«comunicar», o papa Francisco cria «eventos comunicativos » em que quem
recebe a sua mensagem participa ativamente: «Deus entra nesta dinâmica
popular.» A Igreja, para Bergoglio, tal como para De Lubac, que o
inspira, não tem nada a ver com a ideia de uma sociedade invisível e
restrita, de poucos eleitos.
A dinâmica vital da Igreja, explicitada durante a
Missa pro Ecclesia celebrada com os cardeais eleitores na Capela
Sistina, a 14 de março, é «caminhar, edificar, confessar». Convém
recordar que Santo Inácio de Loiola faz referência, precisamente, ao
«exercício corporal» do caminhar para dar a entender o que é o
«exercício espiritual» (EEs, 3). A Igreja, em caminho «espiritual e
missionário», é chamada a «edificar-se» a si própria «sobre a pedra
angular que é o próprio Senhor», confessando a fé nele.
A santidade de que o Papa gosta e que sente
próxima é a santidade «média», comum, que exprime ao mesmo tempo muita
paciência e muita constância no seguir em frente dia após dia. Os
«ícones» dessa santidade são a sua avó Rosa, a irmã enfermeira que lhe
salvou a vida, o velho sacerdote que olha para trás, recordando a sua
vida de serviço. Com efeito, essa «classe média da santidade» não é
medíocre, pelo contrário, é precisamente aquela que é capaz de ser
fecunda, geradora de vida. Para o Papa, ser fecundo é o traço
característico de uma vida que vale a pena ser vivida. Mas que significa
essa «fecundidade» para a Igreja?
«Será que ainda somos uma Igreja capaz
de aquecer o
coração? Uma Igreja capaz de
reconduzir as pessoas a Jerusalém?
De as
acompanhar no seu
regresso a casa?»
Das palavras do Papa emerge uma resposta: o
retrato de uma Igreja capaz de se aproximar de cada homem e de caminhar
a seu lado, como fez Jesus com os discípulos de Emaús: «Jesus em
pessoa aproximou-se e pôs-se a caminhar com eles» (Lc 24,15). Como se
tem verificado claramente, porém, acompanhar o homem não significa, na
verdade, adaptar-se ao espírito do mundo. Bergoglio manifesta-se
violentamente contra a «mundanidade espiritual» que vem antes da ética.
Vê as armadilhas do individualismo, do relativismo e do secularismo.
Acompanhar não significa adaptar-se nem ceder, mas amparar. O
pontificado do papa Francisco é profundamente «dramático». Bergoglio
faz uma leitura militante da realidade, em luta contra a mundanidade e
contra o demónio, várias vezes evocado nos seus discursos. Mas,
precisamente, evocar o demónio faz com que não se possam demonizar as
pessoas. O mal, o pecado e a tentação são bem claros.
A Igreja de Francisco é uma Igreja em
discernimento que vive com os olhos abertos, constantemente fixos em
Deus, capaz de ler com realismo os acontecimentos, de estar atenta
àquilo que a rodeia. E o discernimento, sempre segundo a tradição
inaciana, deve ser guiado pela «consolação» que, segundo Inácio de
Loiola, «inflama a alma» (EEs, 316), aquece o coração. Eis, portanto, o
apelo de Bergoglio: «Será que ainda somos uma Igreja capaz de aquecer o
coração? Uma Igreja capaz de reconduzir as pessoas a Jerusalém? De as
acompanhar no seu regresso a casa?» Companhia, escuta, calor que se
contrapõe ao afastamento, à frieza, à rigidez, portanto: «Só serve uma
Igreja que volte a transmitir calor, a inflamar o coração». É esta a
Igreja fecunda, capaz de dar vida ao mundo.
A proximidade que a Igreja deve demonstrar ao
homem manifesta-se concretamente na atitude do Papa: nos «insólitos»
telefonemas a pessoas que lhe escreveram, bem como na opção de estar no
meio das pessoas, para desespero dos responsáveis pela sua segurança,
como aconteceu durante ao viagem ao Brasil para a Jornada Mundial da
Juventude, em finais de julho de 2013.
«Para mim é
fundamental a proximidade da Igreja.
A Igreja é mãe, e nem você nem eu
conhecemos nenhuma mãe “por correspondência”. A mãe dá afeto, toca,
beija, ama. Quando a Igreja, ocupada em mil coisas, negligencia a
proximidade, a esquece e comunica apenas através de documentos, é como
uma mãe que comunica
por carta com o seu filho.»
O próprio Papa falou disso aos jornalistas:
«Segurança para cá, segurança para lá... nestes dias, não houve um
incidente em todo o Rio de Janeiro, embora tenha sido tudo espontâneo.
Com menos segurança, pude estar com as pessoas, abraçá-las, saudá-las,
sem carros blindados... é a segurança de nos fiarmos de um povo. É
verdade que se corre sempre o risco de que haja um louco... eh, sim,
que haja um louco que faça alguma coisa; mas também há o Senhor!
Contudo, estabelecer um espaço de blindagem entre o bispo e o povo é uma
loucura, e eu prefiro esta loucura: sair e correr o risco da outra
loucura. Prefiro esta loucura: sair. A proximidade faz bem a todos».
Numa entrevista precedente com Gerson Camarotti
da emissora brasileira Rede Globo, o Papa, respondendo ainda a uma
pergunta sobre a sua segurança, fora ainda mais claro sobre as suas
motivações: «Se vais visitar alguém de quem gostas muito, visitar
amigos, com vontade de comunicar, vais visitá-los dentro de uma caixa
de vidro? Não. Eu não podia vir visitar este povo, que tem um coração
tão grande, atrás de uma caixa de vidro. E no automóvel, quando vou
pelas ruas, abro a janela, para poder meter a mão de fora, para saudar.
Ou seja, ou tudo ou nada: ou se faz a viagem como deve ser, com
comunicação humana, ou não se faz; a comunicação a meias não faz bem a
ninguém.» E concluiu: «Já que venho visitar as pessoas, desejo
tratá-las como pessoas. Tocar-lhes».
Na mesma entrevista, o Papa radica na maternidade
da Igreja esta atitude fecunda e sem barreiras físicas: «Para mim é
fundamental a proximidade da Igreja. A Igreja é mãe, e nem você nem eu
conhecemos nenhuma mãe “por correspondência”. A mãe dá afeto, toca,
beija, ama. Quando a Igreja, ocupada em mil coisas, negligencia a
proximidade, a esquece e comunica apenas através de documentos, é como
uma mãe que comunica por carta com o seu filho.» Por várias vezes, no
passado, o então cardeal Bergoglio se referira ao «calor maternal da
Igreja». E esse calor também deve ser manifestado fisicamente. É o que
requer, segundo Bergoglio, a lógica da Encarnação. Assim, quem
interpreta indevidamente os gestos do Papa como expressão de simples
ingenuidade, de espírito bonacheirão e simplório, de naïveté, não
entendeu, na realidade, aquilo que está a acontecer, o seu significado
profundo.
A sua necessidade de estar perto das pessoas –
sobretudo das que estão em dificuldade, dos pobres, dos marginalizados –
tem-se manifestado muitas vezes. Recordemos a visita a Lampedusa,
aquilo em que mais insistiu na sua visita a Cagliari ou ao Brasil,
nalguns lugares altamente simbólicos. (...)
No Hospital São Francisco de Assis, na
Providência [Rio de Janeiro], todos viram os abraços tão calorosos
entre o Papa e os ex-toxicodependentes. Aí, ele exclamou: «Abraçar,
abraçar. Todos nós temos necessidade de aprender a abraçar quem está
necessitado, como fazia São Francisco». Para bater à porta do coração é
necessário, portanto, ter as mãos «nuas», não ter filtros, tocar a
carne. Esta dimensão física não é acessória, para o papa Francisco, não
é uma mera questão de «estilo», mas parte da comunicação da forte
mensagem da Encarnação. (...)
Uma Igreja missionária é uma Igreja que proclama
pelos caminhos o anúncio da salvação, um anúncio «que faz arder o
coração». Por isso é central a referência ao episódio dos discípulos de
Emaús, no último capítulo do Evangelho de Lucas (24,13-35): um
episódio particularmente caro ao papa Francisco, que também o propôs
como meditação no recente encontro com o episcopado brasileiro. Os dois
discípulos fogem de Jerusalém, escandalizados com o fracasso do
Messias, no qual tinham colocado a sua esperança. Aqui podemos ler o
difícil mistério das pessoas que abandonam a Igreja; ou seja, dos muitos
que pensam que esta já não pode oferecer nada de significativo nem de
importante. Porquê? O Papa faz uma análise sintética, mas profunda, das
razões de quem se afasta: «Talvez a Igreja se tenha revelado demasiado
débil, talvez demasiado alheia às suas necessidades, talvez demasiado
pobre para responder às suas inquietações, talvez demasiado fria em
relação a elas, talvez demasiado autorreferencial, talvez demasiado
prisioneira das suas próprias linguagens rígidas; talvez o mundo pareça
ter transformado a Igreja num destroço do passado, insuficiente para
as novas necessidades; talvez a Igreja tenha respostas para a infância
do homem, mas não para a sua idade adulta».
Esta enumeração de «talvez» é, na realidade, uma
listagem de pecados ou, pelo menos, de tentações que a Igreja vive no
seu caminho ao longo da história e que se resumem numa atitude de
alheamento, frieza e rigidez. É motivo para um exame de consciência
eclesial. Frente a esta situação, que fazer, portanto? Que Igreja
«serviria» para os homens de hoje, que são como os dois discípulos de
Emaús?
O Papa traça então, de forma positiva, um retrato
de Igreja realmente vivo, acompanhando-o com uma análise da condição
do homem contemporâneo: «Serve uma Igreja que não tenha medo de entrar
na sua noite. Serve uma Igreja capaz de se encontrar com ele no seu
caminho. Serve uma Igreja capaz de entrar nas suas conversas. Serve uma
Igreja que saiba dialogar com aqueles discípulos que, ao fugirem de
Jerusalém, vagueiam sem meta, sozinhos, com o seu próprio desencanto,
com a desilusão de um cristianismo agora considerado terreno estéril,
infecundo, incapaz de gerar sentido».
Este diálogo também ajuda a compreender as razões
de um afastamento: «Quem abandonou a Igreja – diz Francisco durante o
nosso colóquio – fê-lo, às vezes, por razões que, se forem bem
entendidas e sopesadas, podem conduzir a um retorno.» Aqui o Papa
valoriza o desejo positivo e bom que há em cada homem e que até o pode
conduzir a tomar opções que, como neste caso, podemos considerar
erradas. Contudo, por trás da decisão errada, por vezes, há uma boa
motivação. Por exemplo, se uma pessoa se afastou da Igreja pelo facto
de a sua experiência subjetiva ser negativa, de falta de autenticidade,
então será precisamente o desejo de autenticidade que poderá trazê-la
de volta ao seio da Igreja.
Por outro lado, o Papa disse-me que acompanhar o
rebanho também significa fiar-se no facto de que ele «tem “faro” para
encontrar novos caminhos». A certa altura, falou-me do «olfato da fé».
Tanto para Bergoglio como para Inácio de Loiola, os sentidos são
simultaneamente físicos e espirituais. Os sentidos espirituais estão
envolvidos no discernimento. E a Igreja a caminho é uma Igreja em
discernimento que, unida, encontra o caminho, avançando graças ao
«faro» da fé. E isso implica, certamente, uma descentralização. O
discernimento diz respeito a toda a Igreja, e muitas problemáticas têm
uma dimensão territorial. Devemos esperar, portanto, que o papel dos
episcopados locais venha a ser valorizado.
O papa Francisco quer que a Igreja seja sal e
luz, ou seja, ao mesmo tempo «farol» que ilumina de uma posição elevada
e estável, mas também «archote» que se sabe mover no meio dos homens,
acompanhando-os no seu caminho insidioso, qualquer que seja a sua
direção, para evitar que a luz se reduza apenas, para muitos deles, a
uma remota recordação.
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In Temos de ser normais, ed. Paulinas
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