Luiz Felipe Pondé*
Você pode identificar um mau filósofo quando percebe que ele se dedica a condenar o comércio
Quando não existe comércio, não há esperança. Afirmação estranha, eu
sei, para um país atrasado como o nosso, que ainda não descobriu que
quem faz "justiça social" verdadeira é o comércio.
Um amigo esquisito que eu tenho me disse certa feita que, no século 19
no Brasil, era comum se usar a expressão "comércio de ideias". A
expressão me soou familiar de alguma forma. Acho que ela é melhor do que
"mundo cultural" ou "ciências humanas", porque ela descreve de forma
mais precisa o que acontece quando as pessoas de fato debatem ideias.
Um dos traços do atraso ancestral do Brasil está no fato de que a elite
acha que as ideias não valem dinheiro. Hoje em dia, mesmo em pânico com a
crescente violência de certas ideias totalitárias no país e com o
crescimento do perigoso ressentimento social, a elite continua pensando
como gente atrasada: quer que o produto (as ideias) caia do céu, como se
amadores pudessem construir aviões ou erguer bancos. Triste país esse
que ainda vive num mundo antes da escrita. Estamos às portas de uma
guerra cultural e política.
O comércio é o coração de toda civilização que se preza. Os delírios
políticos dos últimos 250 anos têm sua pedra de toque na condenação
sistemática do comércio. Enquanto pensarmos assim, não sairemos do
buraco em que nos encontramos. Você identifica um mau filósofo quando
ele se dedica a condenar o comércio. Toda ética que exclui o comércio é
moral de amadores.
O pior é que na prática todos nós sabemos disso, inclusive quem trabalha
no comércio de ideias verdadeiro, aquele que faz circular ideias nos
livros, nas revistas, nos jornais, na mídia, mesmo nessa masmorra sem
luz, paraíso dos linchamentos e das bobagens, chamada redes sociais.
No dia a dia, comercializamos terapias, aulas de ioga, esperanças
transcendentais, sonhos futuros, curas, amores. Mas, ainda assim,
insistimos na ideia primitiva de que um mundo sem comércio seria um
mundo melhor. Quando vendemos algo, nem por isso partimos do pressuposto
de que o que vendemos é "sujo" porque vendemos. Mas, como sempre
acontece, condenamos no outro o mesmo interesse que temos em nós:
ganharmos algo ao longo da vida.
Sei que os primitivos dirão que a ganância estraga tudo. Mas o comércio
institucionaliza a ganância, fazendo com que ela seja mais do que si
mesma, fazendo com que ela produza todo um mundo material no qual nosso
espírito sobrevive.
Só gente semiletrada acredita que o espírito humano precisa de menos
comércio do que o corpo. Na verdade, o espírito costuma ser mais caro do
que o corpo, basta comparar o preço do amor com o do sexo. Sexo é
sempre barato, mesmo que você pague R$ 5.000 por ele --por isso, aliás, é
que seu efeito é tão efêmero se comparado ao do amor.
Na Pré-História, por exemplo, dados arqueológicos mostram como, entre 30
mil e 20 mil anos atrás, na região que vai da Israel moderna até as
fronteiras ocidentais da Índia, se desenvolveu uma robusta (para a
época) rede de comércio entre vários povoados, que assegurou uma redução
da violência generalizada que caracterizava a Pré-História.
Quando você vai ao cinema, quando vai jantar com amigos, quando vai à
praia, quando vai a uma exposição de arte, quando vai à Europa ou ao
Vietnã, quando toma remédios, quando dá um presente, você está fazendo
comércio.
Quando acaba o comércio, perde-se a fé no mundo. A forma mais rude dessa
ideia se manifesta no uso impensado da expressão "queda do crédito",
que nada mais é do que a redução do "quantum" de fé que se deposita nas
relações de trabalho e de troca que sustentam uma sociedade. Homens
civilizados se relacionam fazendo comércio.
Nada aqui significa um mundo perfeito, mas um mundo possível. Mesmo os
semiletrados sabem, apesar de não dizerem, que é o comércio que sustenta
a civilização, principalmente a liberdade das ideias. Do que viveria o
espírito se não existissem grandes livrarias, físicas ou virtuais, que
fazem chegar até nós Shakespeare e Machado de Assis?
Espero que um dia o Brasil saia desse pesadelo pré-histórico do ódio ao comércio.
----------------------
* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário. Colunista da Folha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário