Noemi Jaffe*
Costumamos associar as ideias de manipulação e abuso a comportamentos
explícitos de exploração. Em alguns casos, também reconhecemos
mecanismos como a sedução, o carisma e a linguagem subliminar como
formas dissimuladas de manipulação. Mas dificilmente percebemos quanto
uma pessoa aparentemente manipulada também pode ser manipuladora. Essa
prática insidiosa e, muitas vezes, o último recurso dos fracos, pode
passar completamente despercebida na nossa rotina.
No livro "Abuso de Fraqueza e Outras Manipulações", Marie-France
Hirigoyen faz a listagem de numerosos procedimentos, como o
consentimento, a doação, a confiança, a persuasão, a sedução, a
influência, a dominação, a sujeição, a alienação, o narcisismo, a
vampirização e ainda outros, todos como possíveis formas de manipulação.
Os assim chamados vulneráveis ou mais facilmente passíveis de ser
manipulados, como idosos e crianças, são geralmente tidos como as presas
mais fáceis. Mas ninguém pensa em como é importante temer não somente
quem ostenta a força, mas, muitas vezes, também quem oculta a fraqueza.
Uma pergunta possível é: será que em toda personalidade manipuladora,
principalmente nas mais explícitas, não se esconde uma fraqueza?
Provavelmente sim, mas isso em quase nada modifica as formas de lidar
com os manipuladores nem cria a esperança de que eles possam se
modificar. Manipuladores explícitos não fazem terapia.
Mas como reconhecer se você, eu, nosso melhor amigo, que consideramos
como vítima do patrão, do ex-marido, da ex-mulher, do governo, dos
filhos, não somos também manipuladores? Minha paranoia, minhas
estratégias (mesmo veladas) de sedução retórica, meu lado vitimizado,
não seriam, também eles, jogos manipulativos?
Sim. Frequentemente, sim. A questão é saber até que ponto isso é
nocivo para mim e para os outros, como esse jogo acontece e com que
finalidades e consequências perceptíveis. Não se trata de uma disputa de
bem e mal, em que o bom é aquele que nunca exerce a manipulação. Isso
praticamente não existe nem seria desejável. Não sou má porque manipulei
alguém para se interessar por mim ou porque fiz uso de potencialidades
que uso bem.
Mas tudo tem limites. Pessoas com autoestima muito baixa, segundo a
autora, querem aumentá-la a qualquer custo (aqui faço um aparte: como
são estranhas essas palavras - "baixa e alta autoestima"). O desejo de
sentir-se mais amado faz que, paradoxalmente, o inseguro entre em surtos
de megalomania, de tanto obter resultado ao implorar por atenção. Seria
o caso de um presidiário feliz porque acha que vão fazer um filme sobre
sua vida.
Algumas formas inexplicáveis de masoquismo, até mesmo no plano da
linguagem, poderiam facilmente se encaixar nessa ideia entortada de
manipulação às avessas: é o caso famoso da "ídishe mame", por exemplo,
que, pela culpa e por armadilhas linguísticas e expressivas, aprisiona o
filho quase por toda a eternidade. Uma forma de "coitadismo" dominador.
Mas as práticas mais claras de manipulação, exercidas sobre os
verdadeiramente mais vulneráveis são, sem dúvida, as mais complicadas.
Como proteger crianças de seus pais ou pais mais velhos de seus filhos?
Como proteger fiéis de líderes religiosos?
Tudo fica ainda mais nebuloso ainda quando vamos nos dando conta de
que as formas mais eficazes de manipulação ocorrem pela alienação dos
manipulados. Quando uma vítima se dá conta de que está sendo manipulada,
mesmo havendo dificuldades, existe chance de retorno. Mas, quando a
vítima está alienada ("alien" é o estranho, o outro, a quem o "eu" se
submete, pensando que não se submeteu), qualquer tentativa de
esclarecimento é rechaçada pelo próprio objeto de manipulação. O que
fazer? O livro não é muito útil nesse sentido, pois expõe as situações
de manipulação mais do que procura resolvê-las. Pessoalmente, penso que
um dos caminhos mais incisivos para desarmar o manipulador e desalienar o
manipulado é pela linguagem e pela arte.
"A Metamorfose" de Kafka, por exemplo, trata de um sujeito em que o
grau máximo de alienação do trabalho atingiu o próprio corpo. Sua
transformação em inseto é a consumação total da coincidência entre forma
e função: a burocracia o reduziu àquilo que ele já era. Um inseto. Ou
seja, pela linguagem da metáfora, o máximo de alienação leva Gregor
Samsa e, possivelmente, também os leitores, a um início de desalienação.
Ao verificar quanto algumas pessoas estão aprisionadas pela
linguagem, pela terminologia, pelo jargão, constatamos a máxima de
Roland Barthes: "O totalitarismo não é proibir de dizer. É obrigar a
dizer". Assim, pela desmontagem dos discursos, prestando atenção àquilo
que falamos e como o dizemos, podemos chegar a algumas desmontagens dos
processos alienadores em que estamos enredados (pois todos estamos).
É uma pena que, em seu esforço desmistificador, o próprio livro acabe
caindo em alguns truques que pretende apontar. A brevidade com que
aborda os assuntos é um deles. Ou seja, manipulamos sempre. Até quando
tentamos esclarecer a manipulação.
"Abuso de Fraqueza e Outras Manipulações".Marie-France Hirigoyen. Trad.: Clóvis Marques. Bertrand Brasil, 224 págs., R$ 35,00
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* Noemi Jaffe é doutora em literatura brasileira pela USP e autora de "Quando Nada Está Acontecendo" (Martins Editora)
E-mail: noejaffe@gmail.com
Fonte: Valor Econômico online, 28/03/2014
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