Jorge Mautner*
Disseram que o governo militar pedia a nossa volta porque só com os
intérpretes da música popular brasileira o povo iria acreditar na
democratização
Quando comecei a escrever o livro "Deus da Chuva e da Morte", em 1956,
logo criei o Partido do Kaos. Era um partido pacifista e já refletia a
inclusão de minorias e o total repúdio ao racismo (lembre-se, sou filho
do Holocausto). O nosso PK recrutava todas as camadas da sociedade, as
mais diferentes ideias.
Em 1962, o PK tinha 3.000 militantes. Nossa sede era em uma garagem
perto da praça Buenos Aires. Foi quando recebi a visita do professor
Mário Schenberg. Em vez de continuar suas pesquisas enaltecidas por
Einstein, ele preferiu voltar ao país e se candidatar a deputado pelo
PCB (Partido Comunista Brasileiro). Entrou em nossa sede dizendo que nem
realismo socialista, nem cubismo, nem futurismo ou surrealismo poderiam
descrever o novo ser humano. Era necessário uma nova mitologia --no
caso, a do Kaos.
Dissolvemos o partido e entramos no Comitê Central, na célula de
Schenberg. Falávamos de astrofísica e líamos Brecht. Um dia, chegando no
apartamento do gênio Mário Schenberg, eu o encontrei abatido, com um
charuto apagado na boca. Ele disse: "Está tudo acabado! Vou dar o último
telefonema para o Darcy Ribeiro. Alô! São ordens de Moscou (fiquei
boquiaberto). Vocês têm que prender os cabos e sargentos revoltosos,
incluindo o cabo Anselmo. Mas mais importante: libertem os oficiais
pedindo perdão de joelhos!'".
Schenberg não disse mais palavra. Duas semanas depois, chegou um general
ao apartamento do professor dizendo: "O que é que vocês fizeram!? Não
sabem que a única coisa que não poderia ser feita é quebrar a hierarquia
do Exército!? 95% das Forças Armadas são legalistas, a favor de
Juscelino para as eleições".
Mário Schenberg respondeu: "Somos os únicos que não estamos apoiando
essa aventura do cabo Anselmo. Até a democracia cristã, Franco Montoro,
todos estão a favor, entusiasmados com a Revolução Cubana". Não podíamos
comunicar a ninguém a terrível inevitabilidade. Havia um avião para
quem do Comitê Central quisesse ir à União Soviética. Pelo que eu saiba,
o único que aceitou foi o psiquiatra Bursa.
Três meses depois, um jipe do Exército parou em frente de casa. O
capitão se apresentou, e minha mãe perguntou: "Vocês vão prender meu
filho!?". E o oficial respondeu: "Não, senhora, viemos protegê-lo. É um
escritor, grande patriota, e está sendo procurado pelo Comando de Caça
aos Comunistas, organização civil da qual não temos controle".
Fui para Barretos (SP) e fiquei três meses hóspede do Segundo Exército.
Lá me disseram que meu comunismo era passageiro, porque eu enaltecia a
amálgama do Brasil mais do que ninguém. Não tinham dúvida de que eu iria
me comportar. Ao voltar, gravei um disco em 1965 com duas músicas de
protesto: "Radioatividade" e "Não, Não, Não". O meu terceiro livro,
"Narciso em Tarde Cinza", e o quarto, "Vigarista Jorge" foram
apreendidos, assim como o meu compacto de protesto.
E aí fui enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Fui para os Estados
Unidos, de onde só voltaria em 1972. Lá, trabalhei na Unesco, fui
lavador de pratos, ajudante de garçom, massagista e, finalmente, em
1968, me tornei secretário literário de Robert Lowell, que foi
secretário literário de Ezra Pound, e Ezra Pound o foi de Thomas Stearns
Eliot. Também trabalhei e fui muito amigo de Paul Goodman.
Até que, em 1969, encontrei Gil e Caetano em Londres e nossa célula
democrática cresceu para sempre. Em Paris, Violeta Arraes recebia todos
os torturados de todas as organizações libertadoras. Em 1971, hóspedes
do Partido Comunista de Barcelona, eu, Ruth, Gil, Sandra, Caetano, Dedé e
Violeta Arraes estávamos em La Escala, no litoral. Eram os últimos anos
de Franco, e Violeta Arraes me puxou para uma conversa.
Anunciava que o governo militar brasileiro pedia a nossa volta porque só
através dos intérpretes da música popular brasileira é que o povo iria
acreditar na democratização. Segundo o recado, o povo brasileiro havia
caído em profunda melancolia não acreditando na democratização. Nossa
volta era essencial para impedir que a linha dura permanecesse no poder.
O resto contarei em detalhes nos 20 volumes sobre as andanças minhas
com Gil, Caetano e Nelson Jacobina.
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* JORGE MAUTNER, 73, é compositor, músico e escritor Fonte: Folha online, 30/03/2014
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