domingo, 30 de março de 2014

Do Kaos à redemocratização

Jorge Mautner*

Disseram que o governo militar pedia a nossa volta porque só com os intérpretes da música popular brasileira o povo iria acreditar na democratização 
Quando comecei a escrever o livro "Deus da Chuva e da Morte", em 1956, logo criei o Partido do Kaos. Era um partido pacifista e já refletia a inclusão de minorias e o total repúdio ao racismo (lembre-se, sou filho do Holocausto). O nosso PK recrutava todas as camadas da sociedade, as mais diferentes ideias. 

Em 1962, o PK tinha 3.000 militantes. Nossa sede era em uma garagem perto da praça Buenos Aires. Foi quando recebi a visita do professor Mário Schenberg. Em vez de continuar suas pesquisas enaltecidas por Einstein, ele preferiu voltar ao país e se candidatar a deputado pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro). Entrou em nossa sede dizendo que nem realismo socialista, nem cubismo, nem futurismo ou surrealismo poderiam descrever o novo ser humano. Era necessário uma nova mitologia --no caso, a do Kaos. 

Dissolvemos o partido e entramos no Comitê Central, na célula de Schenberg. Falávamos de astrofísica e líamos Brecht. Um dia, chegando no apartamento do gênio Mário Schenberg, eu o encontrei abatido, com um charuto apagado na boca. Ele disse: "Está tudo acabado! Vou dar o último telefonema para o Darcy Ribeiro. Alô! São ordens de Moscou (fiquei boquiaberto). Vocês têm que prender os cabos e sargentos revoltosos, incluindo o cabo Anselmo. Mas mais importante: libertem os oficiais pedindo perdão de joelhos!'". 

Schenberg não disse mais palavra. Duas semanas depois, chegou um general ao apartamento do professor dizendo: "O que é que vocês fizeram!? Não sabem que a única coisa que não poderia ser feita é quebrar a hierarquia do Exército!? 95% das Forças Armadas são legalistas, a favor de Juscelino para as eleições". 

Mário Schenberg respondeu: "Somos os únicos que não estamos apoiando essa aventura do cabo Anselmo. Até a democracia cristã, Franco Montoro, todos estão a favor, entusiasmados com a Revolução Cubana". Não podíamos comunicar a ninguém a terrível inevitabilidade. Havia um avião para quem do Comitê Central quisesse ir à União Soviética. Pelo que eu saiba, o único que aceitou foi o psiquiatra Bursa. 

Três meses depois, um jipe do Exército parou em frente de casa. O capitão se apresentou, e minha mãe perguntou: "Vocês vão prender meu filho!?". E o oficial respondeu: "Não, senhora, viemos protegê-lo. É um escritor, grande patriota, e está sendo procurado pelo Comando de Caça aos Comunistas, organização civil da qual não temos controle". 

Fui para Barretos (SP) e fiquei três meses hóspede do Segundo Exército. Lá me disseram que meu comunismo era passageiro, porque eu enaltecia a amálgama do Brasil mais do que ninguém. Não tinham dúvida de que eu iria me comportar. Ao voltar, gravei um disco em 1965 com duas músicas de protesto: "Radioatividade" e "Não, Não, Não". O meu terceiro livro, "Narciso em Tarde Cinza", e o quarto, "Vigarista Jorge" foram apreendidos, assim como o meu compacto de protesto. 

E aí fui enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Fui para os Estados Unidos, de onde só voltaria em 1972. Lá, trabalhei na Unesco, fui lavador de pratos, ajudante de garçom, massagista e, finalmente, em 1968, me tornei secretário literário de Robert Lowell, que foi secretário literário de Ezra Pound, e Ezra Pound o foi de Thomas Stearns Eliot. Também trabalhei e fui muito amigo de Paul Goodman. 

Até que, em 1969, encontrei Gil e Caetano em Londres e nossa célula democrática cresceu para sempre. Em Paris, Violeta Arraes recebia todos os torturados de todas as organizações libertadoras. Em 1971, hóspedes do Partido Comunista de Barcelona, eu, Ruth, Gil, Sandra, Caetano, Dedé e Violeta Arraes estávamos em La Escala, no litoral. Eram os últimos anos de Franco, e Violeta Arraes me puxou para uma conversa. 

Anunciava que o governo militar brasileiro pedia a nossa volta porque só através dos intérpretes da música popular brasileira é que o povo iria acreditar na democratização. Segundo o recado, o povo brasileiro havia caído em profunda melancolia não acreditando na democratização. Nossa volta era essencial para impedir que a linha dura permanecesse no poder. O resto contarei em detalhes nos 20 volumes sobre as andanças minhas com Gil, Caetano e Nelson Jacobina. 
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* JORGE MAUTNER, 73, é compositor, músico e escritor 
Fonte: Folha online, 30/03/2014
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