Marcos de Paula/Estadão
O autor Alejandro Zambra
Autor de 'Bonsai' e 'A Vida Privada das Árvores'
lança 'Formas de Voltar para Casa'
Uma ditadura não é formada apenas por mandantes
intransigentes e revoltosos incansáveis – no meio do caminho, há sempre
uma população silenciosa, que vive aquele período sem heroísmo, com medo
ou indolência. É sobre essas pessoas que o escritor chileno Alejandro
Zambra trata em Formas de Voltar para Casa, que a Cosac Naify lança na
segunda-feira.
Fruto de anotações que o autor tomou durante quatro anos, a narrativa
alinha momentos fictícios com reais ao mostrar um homem que relembra
sua infância, passada durante a ditadura (1973-1990) de Augusto
Pinochet, uma das mais sangrentas da América Latina, promovendo, segundo
dados oficiais, 1.200 desaparecimentos, 3 mil execuções e inúmeros
casos de tortura.
"Mais que narrar os feitos, interessava-me mostrar como convivemos
com o passado, com a necessidade de entendê-lo, de mostrá-lo, de indagar
quem somos", comenta Zambra, 38 anos, que conversou por e-mail com o
Estado. "O narrador do livro tem muito de mim, mas me parece que o
importante é que esse ‘eu’ é também, em certa medida e apesar de tudo,
um nós. Creio que um problema dos chilenos da minha geração, nascidos em
meados dos anos setenta, é esta hesitação entre o ‘eu’ e o ‘nós’."
Por que uniu real e ficção para transmitir sua mensagem?Não
acredito muito nessas categorias de ‘ficção’ e ‘não ficção’, pois todos
os romances são autobiográficos, em certa medida. Gostaria de pensar
que isso tem a ver com a poesia, que se relaciona de maneira muito mais
problemática e evasiva com a ficção. Formas de Voltar para Casa não é
mais autobiográfico do que Bonsai ou Vida Privada das Árvores, mas não
aparenta sê-lo, talvez por ser meu primeiro romance escrito em primeira
pessoa. Mais que narrar os feitos, interessava-me mostrar como
convivemos com o passado, com a necessidade de entendê-lo, de mostrá-lo,
de indagar quem somos. O narrador do livro tem muito de mim, mas me
parece que o importante é que esse ‘eu’ é também, em certa medida e
apesar de tudo, um ‘nós’. Creio que um problema dos chilenos da minha
geração, nascidos em meados dos anos 70, é essa hesitação entre o ‘eu’ e
o ‘nós’.
Por que a história é narrada a partir do olhar de um menino?Creio
que, em boa medida, esse romance nasceu do desejo de recordar melhor,
com mais precisão, essa época quase sempre envolta em sombras, até no
presente. Quando lembramos da infância como adultos, tendemos a
idealizá-la ou ter dela a pior das imagens, pois é perturbador saber que
estivemos ali sem ter consciência daquilo que estava ocorrendo. Mas
alegar inocência é tão absurdo quanto se culpar retrospectivamente. Esse
é um dos problemas centrais que quis abordar no romance – não para
escrevê-lo, e sim por ser um dos problemas centrais da minha vida. E
logo cheguei à ideia desse narrador, que não é um menino, e sim um
adulto lembrando da infância, mas tentando recordar bem, evitando
catalogar de antemão a experiência.
Você usou o romance para poder ir ao fundo de sua história pessoal, de sua relação com seus pais e sua infância?Claro.
Essa é uma maneira de encarar a obra. Quando crescemos, tornamo-nos
outras pessoas e, em algum momento, perdemos totalmente o elo com a
criança que fomos. Isso é natural, mas também artificial. Este romance é
o livro de alguém que quer entender de onde vem, sem fechar o passado –
ao contrário, abrindo-o, permitindo a circulação das histórias, por
mais anódinas ou tristes que sejam. Meu interesse era falar sobre essa
classe média ou média-baixa da qual venho, das pessoas que viveram
aqueles anos sem heroísmo, com medo ou indolência, sem participar
ativamente, silenciosos e/ou silenciados.
Pretendia escrever um romance no qual ninguém é inocente?Sim.
Sempre quis indagar como a história particular dialoga com a sociedade.
Creio que nada é totalmente íntimo. Nada está à margem da história, que
afeta e infecta nossas vidas permanentemente.
Qual é a importância dada à perspectiva do narrador? Há um elo entre perspectiva e verdade?O
romance foi escrito em primeira pessoa, mas creio que são dois
narradores parecidos, mas não idênticos. Esse deslocamento da
perspectiva me importa muito, sendo para mim o núcleo do romance. Não
sei o que seria a verdade, a não ser por algo que buscamos e que nunca
fixaremos definitivamente. Mas creio que a perspectiva permite um olhar
mais pleno. Olhar e ver-se olhando.
Seus personagens lembram do passado de forma distinta. A
tentativa de definir uma versão verdadeira do passado tem alguma
possibilidade de sucesso?Não acredito na possibilidade de
se chegar a consensos, mas isso não importa; o importante é o diálogo, a
busca. Não há versões finais nem verdadeiras, creio que o melhor seja
tentar compreender a própria história e a das demais pessoas, e quem
sabe destruir as pontes que parecem separá-las, distanciá-las.
Distanciar o eu do nós. Creio que a literatura nunca simplifica os
processos, mas revela sua complexidade, ou demonstra que as
simplificações que os políticos buscam fazer são ilusórias e
instrumentais. Tudo é sempre infinitamente mais complexo quando
observamos mais de perto.
Os chilenos hoje precisam enfrentar o passado e reconhecer o papel que desempenharam?Sim.
Hoje e sempre. Uma sociedade é mais lúcida se está constantemente
formulando seu presente, ou buscando compreender a relação entre passado
e presente.
O narrador sente vergonha do fato de não ter perdido ninguém durante a ditadura? Não,
o que ele sente é que essas mortes, das vítimas da ditadura, não
pertencem a ele, mas não lhe são alheias. Creio que o narrador sente a
amargura de olhar para o passado. Uma sensação de duelo coletivo. A
ditadura de Pinochet chegou ao fim muito depois do seu término oficial,
pois, durante a década de 90, ele conservou um poder real: foi
comandante-chefe das forças armadas e em seguida senador vitalício. A
ditadura começou a terminar quando Pinochet foi detido em Londres e
terminou definitivamente em 2006, com a morte dele. A sociedade chilena
demorou muito para curar as feridas, ainda abertas. Ao lembrar da
ditadura, o mais importante continua sendo recordar os mortos, lembrar
que muitos parentes ainda não encontraram os restos de seus irmãos, seus
pais, seus filhos. Mas aqueles que não sofreram de maneira direta, por
sermos crianças e estarmos protegidos, participam agora do duelo
coletivo. Formas de Voltar para Casa é um romance sobre a legitimidade
da dor. Ninguém pode se colocar no lugar das vítimas, mas é necessário
participar do duelo, a partir de um lugar diferente. E creio que a
maneira de participar seja não negar a experiência que tivemos desse
tempo, por mais anódina que seja, não calá-la, revivê-la, com precisão,
com amor, com vontade, com as melhores palavras que encontremos.
O autor de Bonsai e A Vida Privada das Árvores lança no País seu terceiro livro, Formas de Voltar para Casa. Leia trecho a seguir:
"Uma vez me perdi. Tinha seis ou sete anos. Vinha distraído e de
repente não vi mais meus pais. Me assustei, mas logo retomei o caminho e
cheguei em casa antes deles – continuavam me procurando, desesperados,
mas naquela tarde achei que tinham se perdido. Que eu sabia voltar para
casa e eles não.
Você tomou outro caminho, dizia minha mãe, depois, com os olhos ainda chorosos.
Foram vocês que tomaram outro caminho, pensava eu, mas não dizia.
Meu pai, na poltrona, olhava tranquilamente. Às vezes acho que sempre
esteve largado ali, pensando. Mas talvez não pensasse em nada. Talvez
só fechasse os olhos e recebesse o presente com calma ou resignação.
Naquela noite, no entanto, falou – isso é bom, me disse, você superou a
adversidade. Minha mãe o fitava com receio, mas ele seguia alinhavando
um confuso discurso sobre a adversidade.
Me recostei na poltrona em frente e fiz que dormia. Escutei-os
brigar, no estilo de sempre. Ela dizia cinco frases e ele respondia com
uma única palavra. Às vezes dizia, cortante: não. Às vezes dizia, à
beira de um grito: mentira. E às vezes, inclusive, como os policiais:
negativo.
Naquela noite minha mãe me carregou até a cama e me disse, talvez
sabendo que eu fingia dormir, que a escutava com atenção, com
curiosidade: seu pai tem razão. Agora sabemos que você não se perderá.
Que sabe andar sozinho pelas ruas. Mas você deveria se concentrar mais
no caminho. Deveria caminhar mais rápido.
Obedeci. Desde então caminhei mais rápido. De fato, dois anos mais
tarde, na primeira vez que falei com Claudia, ela me perguntou por que
eu andava tão rápido. Levava dias me seguindo, me espiando. Tínhamos nos
conhecido havia pouco, na noite do terremoto, 3 de março de 1985, mas
na ocasião não havíamos conversado.
Claudia tinha doze anos e eu, nove, razão pela qual nossa amizade era
impossível. Mas fomos amigos ou algo assim. Conversávamos muito. Às
vezes penso que escrevo este livro só para recordar aquelas conversas.
Na noite do terremoto eu tinha medo, mas também me agradava, de alguma forma, o que estava acontecendo.
No jardim da frente de uma das casas os adultos montaram duas
barracas para que nós, crianças, dormíssemos ali. No começo foi uma
confusão, porque todo mundo queria dormir na de estilo iglu, que era
então uma novidade, mas ela foi dada às meninas. Nos fechamos para
brigar em silêncio, que era o que fazíamos quando estávamos sozinhos:
golpear uns aos outros alegre e furiosamente. Mas o nariz do ruivo
sangrou quando tínhamos acabado de começar e tivemos que procurar outra
brincadeira.
Alguém teve a ideia de fazer testamentos e de início nos pareceu uma
boa, mas logo descobrimos que isso não tinha sentido, pois se viesse um
terremoto mais forte o mundo se acabaria e não haveria ninguém a quem
deixar nossas coisas. Depois imaginamos que a Terra era como um cachorro
se sacudindo e que as pessoas caíam como pulgas no espaço e pensamos
tanto nessa imagem que nos deu um acesso de riso e também nos deu sono.
Só que eu não queria dormir. Estava cansado como nunca, mas era um
cansaço novo, que fazia os olhos arderem. Decidi que passaria a noite em
claro e tentei me infiltrar no iglu para continuar conversando com as
meninas, porém a filha do carabineiro me expulsou dizendo que eu queria
violá-las. Naquela época eu não sabia bem o que era um violador, mas de
todo modo jurei que não queria violá-las, que só queria olhá-las, e ela
riu zombeteiramente e respondeu que isso era o que sempre diziam os
violadores. Tive que ficar de fora, escutando-as brincar, dizendo que as
bonecas eram as únicas sobreviventes – chacoalhavam suas donas e caíam
em prantos ao comprovar que estavam mortas, embora uma delas achasse
melhor assim, porque a raça humana sempre lhe parecera pestilenta. No
final disputavam entre si o poder e, ainda que a discussão parecesse
longa, foi resolvida rapidamente, pois de todas as bonecas só havia uma
barbie original. Esta ganhou."
Autor: Alejandro Zambra
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: Cosac Naify (160 págs., R$ 29)
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Reportagem por Ubiratan Brasil - O Estado de S. Paulo
Fonte: Estadão online, 07/03/2014
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