Lee Siegel*
Divulgação
Intimidade: Há 7 anos, Lisa Adams descreve num blog sua luta contra o câncer
Popularizados na imprensa americana, relatos pessoais sobre doenças terminais e velhice mostram a crua realidade do fim da vida
Li recentemente na coluna Private Lives, do New York Times,
que costuma tratar dos dramas e dificuldades das pessoas comuns, um
texto a respeito da morte de um cônjuge. Era impossível definir com
precisão a idade da autora, embora referências a filhos crescidos
implicassem que ela estaria entre o final da meia-idade e a idade
avançada. Depois de descrever uma depressão insuportável, e tendo se
retirado para um "bunker de luto", ela concluía o ensaio com as
seguintes palavras: "Falando em perdas, não perdi apenas meu marido e
minha vida, mas também o cabelo. Tanto meu majestoso penteado quanto
minhas sobrancelhas - acredite se puder - caíram aos tufos alguns meses
após a morte de meu marido ... Recentemente, fui abordada por um
policial por estar parada no meio da rua. O tráfego estava sendo
desviado, mas eu tinha congelado no lugar e uma longa fila tinha se
formado atrás de mim. Estendi as mãos, esperando ser algemada, dizendo
não haver mais nada que ele pudesse fazer comigo que fosse pior que
aquilo que eu já estava enfrentando. Ele disse, ‘O que houve, senhora?’
Respondi: ‘Não tenho marido, nem amigos, nem cabelo’".
Na verdade, seria equívoco chamar aquele tipo de texto de "ensaio".
Era um grito de dor sem solução nem filtro, que punha o leitor num
horripilante transe, com pena da autora, constrangido por estar lendo o
texto, grudado às palavras até o amargo fim.
Há dez, ou mesmo cinco anos, jamais encontraríamos algo do tipo numa revista ou jornal, muito menos no New York Times.
Hoje, isso faz parte de um tipo de texto cuja popularidade aumenta
rapidamente, envolvendo temas como doença, final da vida e morte.
Relatos do tipo estão por toda parte.
Nós os encontramos em incontáveis artigos do Times, desde
homens na faixa dos 50 escrevendo sobre seus derrames até doutores que
descrevem seu estado físico enquanto documentam o final da própria vida.
É claro que isso não se limita às páginas do Times. Está
também no Wall Street Journal, onde uma mulher de meia-idade ofereceu um
relato da morte da mãe, ou na New York Magazine, onde um escritor
profissional publicou um longuíssimo relato da morte da mãe dele. Numa
edição recente da New Yorker, o famoso autor Roger Angell descreveu como
é a vida aos 93 anos, enfrentando a perda e a desintegração física -
ter de lidar com aquilo que ele descreveu com a imortal expressão "mundo
insistentemente decadente e grosseiro".
Alguns desses depoimentos são de uma beleza arrebatadora, como o de
Angell, que alcança profundezas shakespearianas, e outros, como o relato
que citei no começo, são grandes pedaços de vida e sofrimento, sem
refinamento e inconscientes de si enquanto textos. Mas são todos
comoventes e, ouso dizer, sem precedentes na cultura. Nunca antes foi
tão grande o número de pessoas a chegar aos 90anos, ou até mais. Pela
primeira vez, temos relatos em primeira mão do verdadeiro significado de
envelhecer.
"Mas, se os romanos antigos aceitavam a morte,
os americanos
contemporâneos vão continuar
a combatê-la como se fosse uma nova
forma
de injustiça social."
E viver até uma idade cada vez mais avançada significa que a morte
não é mais algo a que nos resignamos e diante do que nos calamos. Henry
James, que chegou aos 72 anos, e Tolstoi, que chegou aos 80, nunca
pensaram em escrever a respeito da velhice porque a morte estava por
toda parte ao redor deles. Agora, com os avanços da tecnologia médica,
somos cada vez mais capazes de adiar a morte. Portanto, o luto dos
sobreviventes não é apenas um grito de dor. É também, num certo sentido,
uma maneira de protestar contra a injustiça.
Há uma dimensão ética controvertida nesse novo gênero de texto - e
não se trata apenas da escrita; há também programas de reality TV a
respeito de pessoas moribundas - conforme a reticente cultura da
privacidade, mais antiga, colide com nossa nova era digital de
transparência e expressão da intimidade. Não faz muito tempo, Bill
Keller, ex-editor do New York Times e hoje colunista do jornal -
um homem de dignidade e inteligência extraordinárias - expressou sua
reprovação a uma mulher chamada Lisa Bonchek Adams, que publicou no
Twitter e em seu blog textos a respeito de sua luta contra o câncer, sem
poupar detalhes, durante os últimos sete anos. A opinião de Keller
diante da exposição dela foi refletida na citação de um médico com a
qual ele encerrava seu artigo: "Mérito idêntico", dizia o médico, depois
de admirar o depoimento de Lisa, "cabe àqueles que aceitam um destino
inevitável com graça e coragem". Embora muitos leitores tenham
concordado silenciosamente com Keller, a resposta negativa foi de
furiosa indignação. Tanto para os admiradores da atitude de Lisa quanto
para aqueles que a repudiam, não se pode negar que ela seja uma espécie
de Fernão de Magalhães no fim da vida. Ela está mapeando o território
inexplorado ao qual todos chegaremos, mais cedo ou mais tarde.
Assim como ocorre no final de Édipo Rei, de Sófocles, quando Édipo
percebe que aceitar o enigma de ser humano é a única resposta para a
charada de ser humano, a cultura americana está sendo reduzida aos
elementos básicos da vida - ou refinada por eles. Há aqui uma tendência
recente envolvendo algo chamado "jantar de morte", no qual, à maneira
talvez dos antigos filósofos romanos como os estoicos e os epicuristas,
as pessoas se reúnem para falar das questões suscitadas pelo morrer,
como os testamentos em vida e a decisão de ter o suporte de vida
desligado. Mas, se os romanos antigos aceitavam a morte, os americanos
contemporâneos vão continuar a combatê-la como se fosse uma nova forma
de injustiça social. Os americanos encaram a vida como uma série de
problemas a serem resolvidos, afinal, e os rápidos avanços na ciência e
na medicina fazem a morte parecer menos uma condição permanente e mais
um obstáculo particularmente difícil no caminho.
--------------------------------------
/ TRADUÇÃO DE AUGUSTO
CALIL
* LEE SIEGEL É ESCRITOR E CRÍTICO CULTURAL AMERICANO. ESCREVE PARA O JORNAL THE NEW YORK TIMES E AS REVISTAS HARPERS, THE NEW YORKER E THE NATION (COMPANHIA DAS LETRAS)
Fonte: Estadão online, 01/03/2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário