sexta-feira, 7 de março de 2014

Rever "Clube dos Poetas Mortos" é um tormento


 Henrique Raposo*
Como todos seres vivos da minha geração, vi e chorei com Clube dos Poetas Mortos. Até há poucos dias, oh captain, my captain ainda me causava aquele erupção cutânea de felicidade que alguém com um péssimo sentido de humor resolveu apelidar de pele de galinha. Mas deixem-me frisar a parte do "até há poucos dias". É que cometi o erro de rever o filme no velhinho VHS que os meus pais mantêm no meu antigo quarto. Sim, foi um erro. Lamento, mas tenho de informar as massas que Clube dos Poetas Mortos é uma xaropada. Nem o aspecto vintage emprestado pela cassete VHS salva o filme. 

A obra de Peter Weir labora em dois equívocos. Em primeiro lugar, dá a entender que a poesia é apenas emoção, uma emoção anti-razão, uma emoção não filtrada pelo intelecto. É como se a poesia fosse sinónimo de sinceridade, de pureza, de mera inspiração não conspurcada pelo trabalho intelectual. É como se escrever consistisse apenas no abrir da corrente de pensamento, é como se escrever não fosse um lento garimpar das palavras. No fundo, Clube dos Poetas Mortos aproxima a escrita do confessionalismo que abole qualquer distância irónica ou crítica entre o autor e aquilo que o autor escreve. É como se o pseudo-lirismo de Eugénio de Andrade fosse melhor do que as lâminas de Larkin. 

Em segundo lugar, o professor John Keating (a personagem de Robin Williams) proclama o império da criatividade sobre o trabalho disciplinado, sobre a memória, sobre o conhecimento. Eu sou um grande partizan da criatividade, sim senhora, mas sei que a agilidade linguística está a jusante. A montante, é preciso um trabalho de apreensão de conhecimento, de memorização, um trabalho que requer humildade perante o mundo exterior ao eu. Ou seja, a criatividade é um meio, não é um fim; é um meio que dá forma à matéria-prima que é anterior à criatividade. Se não existir esta humildade, o eu criativo será apenas uma máquina de palavras vazias e entrará num torvelinho em redor do seu próprio umbigo formalista. Escrever não pode ser um mero exercício estético desligado de pulsões históricas, religiosas, políticas ou morais (não confundir morais com moralistas, sff). 

Se quiserem manter aquela pele de galinha, joguem a cassete no lixo. Rever coisas do nosso estendal emotivo pode ser um tormento. 

DO BLOG:  Mas ironicamente é o poema mais denso e inesquecível de todo o longa. Ele é declamado pelo Sr. Anderson, numa das sessões da Sociedade dos Poetas Mortos, brilhantemente ambientada numa caverna, um ode a teoria de Platão.:
“Sonhamos com o amanhã e o amanhã não vem 
Sonhamos com a glória que não desejamos 
Sonhamos com um novo dia, quando este já chegou 
E fugimos da batalha, uma que deve ser enfrentada 
 Mesmo assim dormimos 

 Ouvimos a chamada, mas não escutamos 
Esperamos pelo futuro, quando não passa de planos. 
Sonhamos com a sabedoria da qual fugimos diariamente 
Oramos por um salvador quando a salvação esta nas nossas mãos 

 mesmo assim dormimos, 
mesmo assim sonhamos, 
mesmo assim tememos, 
mesmo assim oramos, 
mesmo assim dormimos.”

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* ESCRITOR PORTUGUÊS.  É licenciado em História, mestre em Ciência Política. Colabora regularmente com a imprensa. No livro Portugal do Avesso reúne algumas das crónicas que escreveu para o Expresso, desde 2008.
Fonte: http://expresso.sapo.pt/atempoeadesmodo 07/03/2014
Imagem da Internet

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