Marion Strecker*
Um dia, quando a humanidade acabar, esse mundo tecnológico não vai mais ter importância
Olho as enormes estantes em volta de mim e penso na dureza deste momento
de transição. Minha próxima casa talvez não tenha nem metade dessas
prateleiras e desses livros. Temo sentir falta deles. Cresci numa casa
com estantes generosas e muitas enciclopédias ilustradas para matar as
tardes de tédio.
Minha filha adolescente cresce cercada de fios e aparelhos que apitam,
imersa na rede. Pergunto a ela se pensa que a casa dela no futuro terá
grandes estantes. Ela diz que não sabe, mas avisa que prefere livros em
papel ("gosto de segurar"), ainda que invista muito tempo na comunicação
eletrônica.
Talvez eu não devesse comparar essas coisas. A gente fica com medo da
rua e tranca as crianças em casa, como se isso fosse saudável. Elas saem
pelas janelas da internet.
Fiquei pensando que faço parte de uma geração de transição: nasci
analógica, cresci elétrica e amadureci eletrônica. Mas isso é bobagem.
Minha geração ensinou os pais a programar videocassete e a usar controle
remoto antes de ensinar a usar o computador e o e-mail. E a geração dos
meus pais deve ter ensinado a geração dos meus avós a fazer outras
coisas. Pensando bem, todas as gerações são de transição.
Exceto a última, a derradeira, a que estiver por aqui quando o mundo
acabar. Um dia, quando a humanidade acabar, esse mundo tecnológico não
vai mais ter importância nenhuma. Tanto esforço para nada. Tanta
informação para nada. Puf. Baubau. Acabou.
Tanto satélite, tanto Google e tanto Google Earth e a gente ainda perde
esse tempo todo para tentar descobrir que fim levou o avião que saiu da
Malásia com 239 pessoas em direção a Pequim e nunca chegou. Essa é a
nossa pequenez. Esse é o vasto mundo. Mais vasto ainda o nosso coração.
Onde foram parar os discos em 78 rotações que herdei? E as fitas de rolo
com as entrevistas que meu pai fazia com os filhos? Onde guardei o
videoteipe do meu bebê? O que será de todas as músicas que baixei em
tantos formatos e salvei em tantos aparelhos que já não existem mais? E
as fotos, em tantos suportes e padrões? Para onde vão todas as fotos
depois que o Facebook e o Instagram acabarem?
Abandonamos as indexações manuais e os arquivos de aço, com as suas
infinitas gavetinhas, pelos arquivos eletrônicos e sua memória infinita,
onde perdemos todas as coisas e encontramos outras por acaso. E agora
voltamos a precisar de indexações manuais, tagueamentos, etiquetas e
zooms para encontrar as milhares de coisas que acumulamos sem pensar,
por preguiça ou por desleixo, porque custoso é selecionar.
Quando acabar a luz, a porta eletrônica pode não abrir. Mas alguém já
pensou numa solução. Alguém já criou mais uma start-up. Alguém já lucrou
com a venda. E três quartos dessas start-ups deixam investidores a ver
navios, conforme pesquisa de Shinkhar Ghosh, conferencista sênior da
escola de negócios da Universidade Harvard. Sem fracasso não há negócio.
Nos Estados Unidos, a taxa de fracasso das empresas é de 25% no primeiro
ano de vida, 55% no quinto ano e 71% em dez anos, segundo o site
Statistic Brain (statisticbrain.com). A principal razão do fracasso?
Incompetência (46%). É essa a nossa inspiração.
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* Colunista da Folha
Fonte: Folha online, 31/03/2014
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