terça-feira, 11 de março de 2014

Pobreza espiritual, caminho de vida

P. José Tolentino Mendonça*
 Imagem
uma escultura de S. Francisco de Assis no Monte Alverne, Itália, em que ele está deitado na terra, a olhar. É uma imagem da santidade. A capacidade de se deitar a olhar, a ver, a reparar, a respeitar - olhar outra vez. Por vezes somos injustos com a vida, as coisas, os acontecimentos, porque não olhamos outra vez. O nosso ponto de vista já está muito cheio, muito condicionado, é um funil que deixou de ser abertura de coração.

Por um lado, devemos ter consciência da nossa autonomia. Deus tem de ser um caminho para cada pessoa. Não vivemos encostados à experiência de ninguém. Somos autónomos também no caminho da fé. A nossa relação com Deus é comunitária, sem dúvida, mas antes de tudo é pessoal. Deus não se revelou primeiro a um povo, mas a uma pessoa: Abraão, Moisés,... Um por um. Deus sabe o nosso nome, sabe o que somos. Isto também tem a ver com a aceitação da pobreza. É na pobreza que está a riqueza enquanto ponto de partida.

A par da autonomia, temos de viver na consciência de que dependemos inteiramente do amor de Deus. «Não temas, pequenino rebanho, porque agradou a teu Pai dar-te o Reino.»

A pobreza espiritual, encarnada por Jesus, tem ressonância no Antigo Testamento. Nesta tradição fala-se de um modo de ser e viver pobre em termos espirituais, concretizado pelos anawin, os pobres de Yahweh. O que Maria canta e testemunha no seu "Magnificat" é a reviravolta de Deus, que pôs os olhos na pobreza da sua serva, que retira os poderosos dos tronos e neles faz sentar os humildes, que despede os ricos de mãos vazias e enche os pobres das suas riquezas.

Um coração pobre está disponível para viver a alternativa de Deus, a lógica nova de Deus, as transformações, o modo de ver e atuar de Deus na história. 

Jesus também nos ensina o caminho da pobreza espiritual. Quando atravessa a Samaria, acompanhado pelos discípulos, sente fome. Por vezes a fome é um momento espiritual importante. Não só a fome biológica, mas também a necessidade de outra coisa. 

Os discípulos vão à aldeia buscar comida e, ao regressar, Jesus fala-lhes de outro alimento: fazer a vontade do Pai. Também nós fazemos um grande investimento para buscar o alimento, mas Jesus, à semelhança do diálogo com os discípulos, como que nos pergunta: «É disso que te alimentas?». 

O verdadeiro alimento é vivermos a partir da condição de sermos filhos, de sermos filhos amados por Deus. Se vivemos a partir da convicção profunda de que é o amor de Deus que nos funda - o que o Pai diz a Jesus, «Tu és o meu filho muito amado, em ti coloco o meu amor» -, a nossa existência será completamente diferente. Deixaremos de andar de equívoco em equívoco. Saberemos verdadeiramente qual é o nosso alimento, o que nos sacia, o que é decisivo para nós.

A pobreza espiritual também se expressa na aceitação de si. Não temos apenas mal-entendidos com os outros. Por vezes, o maior e o mais difícil mal-entendido é connosco próprios. Não nos aceitamos, não nos abraçamos, não nos acolhemos, não nos perdoamos. Aceitar-me no que sou e não sou, no que fui, no que não fui, no que não consegui, no que correu bem e no que correu mal, na fraqueza e na fragilidade. 

Como é que se torna fecunda a vida pobre? Na aceitação confiante de si. Como diz S. Paulo na segunda carta aos Coríntios (4, 7): «Trazemos em vasos de barro o nosso tesouro». E é sempre assim. Temos de aceitar o tesouro, mas também o barro, o barro que se quebra, o barro que se cola, o barro que não tem remédio, o barro que fica ferido.

O poeta brasileiro Manoel de Barros, com quase 90 anos, é uma das grandes figuras espirituais do nosso tempo: «Prefiro as máquinas que servem para não funcionar». Isto exige uma conversão. Porque nós preferimos o que funciona. «Porque cheias de areia, de formigas e de musgo, elas podem um dia milagrar flores». Há um milagre que só nos chega pela pobreza.

Há a história do monge perseguido por um tigre: o monge corre, o tigre também; o monge sobe a uma árvore, e também o tigre; o monge desce, o tigre imita-o. Chegado ao cume de uma montanha, percebe que de um lado tem o tigre e do outro o abismo. Então pensa: no abismo haverá, possivelmente, alguma coisa que amorteça a queda; e então atira-se. Ao cair, fica preso numas raízes, com o tigre, no alto, a olhar para ele. Mas as raízes começam a ceder com o peso, e daí a momentos ele vai cair onde não sabe. Olhando à volta, encontra um morangueiro, estende o braço e come um belíssimo morango, sentindo todo o seu sabor. 

A nossa vida tem o tigre, tem as raízes que cedem, tem o que não sabemos à nossa espera. A atitude da pobreza é a convicção de que, no meio da aflição, os morangos não perdem o sabor. Que os encontros não perdem o sabor. Que sejamos capazes de perceber o sabor que nos é dado, mesmo que não seja nas condições, no modo, no dia ou no tempo que tínhamos previsto. O pobre recebe infinitamente mais do que previa.

Como o mestre que chama o discípulo para a primeira lição, que é tomar chá. Ao deitar chá para o chávena do aprendiz, não para, e então o chá transborda. O discípulo, assustado, grita: «Mestre, o chá está a espalhar-se por todo o lado». E o mestre diz-lhe: «É a primeira lição: se não tiveres o coração vazio, vai perder-se tudo aquilo que ouvires e viveres».

Como é que pode acontecer que passem semanas e nada nos toque? Como podemos dizer que não vemos Deus em nenhum lado? S. Francisco andava com uma varinha a bater nas rochas, nas flores e nas criaturas, e dizia-lhes: «Para, para, não me fales de Deus».

Esta pobreza espiritual é chamada a expressar-se num estilo de vida essencial. É importante que cada pessoa se pergunte o que quer testemunhar. Porque nós estamos sempre a testemunhar. 

Diz Rumi: O que é que eu deixo em herança? Deixo em herança a primeira brisa do outono e o primeiro canto do cuco na primavera. O que é que nós deixamos em herança? Podemos até deixar bens, mas se não deixamos o sabor da vida, o sentido, a transparência, se não deixamos a brisa do outono e o canto do cuco na primavera, então não deixamos nada, não testemunhamos nada.

O que possuímos, possuí-nos. Devemos estar muito alerta e perguntar: eu quero possuir isto? Que é como quem diz, eu quero ser possuído por isto? Se pensarmos assim, ganhamos outra liberdade, que é um caminho exigente, de pequenas e grandes escolhas, de momentos extraordinários e da vida de toda a hora. 

Queremos viver para dar testemunho do amor e do acolhimento, ou queremo-nos protegidos através do conforto e da segurança? 

Rezemos a nossa vida. Perguntemo-nos o que nos alimenta, o que nos toca, perguntemos se só vemos a meta ou se aceitamos a nossa vida pobre e vazia. Perguntemos se em cada dia franqueamos as muralhas do nosso coração. 

«O ser humano é uma casa de hóspedes; cada manhã, um novo recém-chegado, uma alegria, uma tristeza, uma maldade, que vem como um visitante inesperado. Diz-lhes que são bem-vindos, e recebe-os a todos, ainda se são um coro de penúrias que esvaziam a tua casa violentamente. Trata cada hóspede com todas as honras; ele pode estar a criar-te um espaço para uma nova delícia. O pensamento obscuro, a vergonha, a malícia, recebe-os à porta sorrindo e convida-os a entrar. Agradece a quem quer que venha, porque cada um foi enviado como um guia do Além».
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* Teólogo. Poeta. Escritor português.
InCapela do Rato
Fonte: © SNPC | 09.03.14

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