P. José Tolentino Mendonça*
Há uma escultura de S. Francisco de Assis no Monte
Alverne, Itália, em que ele está deitado na terra, a olhar. É uma
imagem da santidade. A capacidade de se deitar a olhar, a ver, a
reparar, a respeitar - olhar outra vez. Por vezes somos injustos com a
vida, as coisas, os acontecimentos, porque não olhamos outra vez. O
nosso ponto de vista já está muito cheio, muito condicionado, é um
funil que deixou de ser abertura de coração.
Por um lado, devemos ter consciência da nossa
autonomia. Deus tem de ser um caminho para cada pessoa. Não vivemos
encostados à experiência de ninguém. Somos autónomos também no caminho
da fé. A nossa relação com Deus é comunitária, sem dúvida, mas antes de
tudo é pessoal. Deus não se revelou primeiro a um povo, mas a uma
pessoa: Abraão, Moisés,... Um por um. Deus sabe o nosso nome, sabe o
que somos. Isto também tem a ver com a aceitação da pobreza. É na
pobreza que está a riqueza enquanto ponto de partida.
A par da autonomia, temos de viver na consciência de
que dependemos inteiramente do amor de Deus. «Não temas, pequenino
rebanho, porque agradou a teu Pai dar-te o Reino.»
A pobreza espiritual, encarnada por Jesus, tem
ressonância no Antigo Testamento. Nesta tradição fala-se de um modo de
ser e viver pobre em termos espirituais, concretizado pelos anawin,
os pobres de Yahweh. O que Maria canta e testemunha no seu
"Magnificat" é a reviravolta de Deus, que pôs os olhos na pobreza da
sua serva, que retira os poderosos dos tronos e neles faz sentar os
humildes, que despede os ricos de mãos vazias e enche os pobres das
suas riquezas.
Um coração pobre está disponível para viver a
alternativa de Deus, a lógica nova de Deus, as transformações, o modo
de ver e atuar de Deus na história.
Jesus também nos ensina o caminho da pobreza
espiritual. Quando atravessa a Samaria, acompanhado pelos discípulos,
sente fome. Por vezes a fome é um momento espiritual importante. Não só
a fome biológica, mas também a necessidade de outra coisa.
Os discípulos vão à aldeia buscar comida e, ao
regressar, Jesus fala-lhes de outro alimento: fazer a vontade do Pai.
Também nós fazemos um grande investimento para buscar o alimento, mas
Jesus, à semelhança do diálogo com os discípulos, como que nos
pergunta: «É disso que te alimentas?».
O verdadeiro alimento é vivermos a partir da condição
de sermos filhos, de sermos filhos amados por Deus. Se vivemos a partir
da convicção profunda de que é o amor de Deus que nos funda - o que o
Pai diz a Jesus, «Tu és o meu filho muito amado, em ti coloco o meu
amor» -, a nossa existência será completamente diferente. Deixaremos de
andar de equívoco em equívoco. Saberemos verdadeiramente qual é o
nosso alimento, o que nos sacia, o que é decisivo para nós.
A pobreza espiritual também se expressa na aceitação de
si. Não temos apenas mal-entendidos com os outros. Por vezes, o maior e
o mais difícil mal-entendido é connosco próprios. Não nos aceitamos,
não nos abraçamos, não nos acolhemos, não nos perdoamos. Aceitar-me no
que sou e não sou, no que fui, no que não fui, no que não consegui, no
que correu bem e no que correu mal, na fraqueza e na fragilidade.
Como é que se torna fecunda a vida pobre? Na aceitação
confiante de si. Como diz S. Paulo na segunda carta aos Coríntios (4,
7): «Trazemos em vasos de barro o nosso tesouro». E é sempre assim.
Temos de aceitar o tesouro, mas também o barro, o barro que se quebra, o
barro que se cola, o barro que não tem remédio, o barro que fica
ferido.
O poeta brasileiro Manoel de Barros, com quase 90 anos,
é uma das grandes figuras espirituais do nosso tempo: «Prefiro as
máquinas que servem para não funcionar». Isto exige uma conversão.
Porque nós preferimos o que funciona. «Porque cheias de areia, de
formigas e de musgo, elas podem um dia milagrar flores». Há um milagre que só nos chega pela pobreza.
Há a história do monge perseguido por um tigre: o monge
corre, o tigre também; o monge sobe a uma árvore, e também o tigre; o
monge desce, o tigre imita-o. Chegado ao cume de uma montanha, percebe
que de um lado tem o tigre e do outro o abismo. Então pensa: no abismo
haverá, possivelmente, alguma coisa que amorteça a queda; e então
atira-se. Ao cair, fica preso numas raízes, com o tigre, no alto, a
olhar para ele. Mas as raízes começam a ceder com o peso, e daí a
momentos ele vai cair onde não sabe. Olhando à volta, encontra um
morangueiro, estende o braço e come um belíssimo morango, sentindo todo o
seu sabor.
A nossa vida tem o tigre, tem as raízes que cedem, tem o
que não sabemos à nossa espera. A atitude da pobreza é a convicção de
que, no meio da aflição, os morangos não perdem o sabor. Que os
encontros não perdem o sabor. Que sejamos capazes de perceber o sabor
que nos é dado, mesmo que não seja nas condições, no modo, no dia ou no
tempo que tínhamos previsto. O pobre recebe infinitamente mais do que
previa.
Como o mestre que chama o discípulo para a primeira
lição, que é tomar chá. Ao deitar chá para o chávena do aprendiz, não
para, e então o chá transborda. O discípulo, assustado, grita: «Mestre,
o chá está a espalhar-se por todo o lado». E o mestre diz-lhe: «É a
primeira lição: se não tiveres o coração vazio, vai perder-se tudo
aquilo que ouvires e viveres».
Como é que pode acontecer que passem semanas e nada nos
toque? Como podemos dizer que não vemos Deus em nenhum lado? S.
Francisco andava com uma varinha a bater nas rochas, nas flores e nas
criaturas, e dizia-lhes: «Para, para, não me fales de Deus».
Esta pobreza espiritual é chamada a expressar-se num
estilo de vida essencial. É importante que cada pessoa se pergunte o
que quer testemunhar. Porque nós estamos sempre a testemunhar.
Diz Rumi: O que é que eu deixo em herança? Deixo em
herança a primeira brisa do outono e o primeiro canto do cuco na
primavera. O que é que nós deixamos em herança? Podemos até deixar
bens, mas se não deixamos o sabor da vida, o sentido, a transparência,
se não deixamos a brisa do outono e o canto do cuco na primavera, então
não deixamos nada, não testemunhamos nada.
O que possuímos, possuí-nos. Devemos estar muito alerta
e perguntar: eu quero possuir isto? Que é como quem diz, eu quero ser
possuído por isto? Se pensarmos assim, ganhamos outra liberdade, que é
um caminho exigente, de pequenas e grandes escolhas, de momentos
extraordinários e da vida de toda a hora.
Queremos viver para dar testemunho do amor e do acolhimento, ou queremo-nos protegidos através do conforto e da segurança?
Rezemos a nossa vida. Perguntemo-nos o que nos
alimenta, o que nos toca, perguntemos se só vemos a meta ou se
aceitamos a nossa vida pobre e vazia. Perguntemos se em cada dia
franqueamos as muralhas do nosso coração.
«O ser humano é uma casa de hóspedes; cada manhã, um
novo recém-chegado, uma alegria, uma tristeza, uma maldade, que vem
como um visitante inesperado. Diz-lhes que são bem-vindos, e recebe-os a
todos, ainda se são um coro de penúrias que esvaziam a tua casa
violentamente. Trata cada hóspede com todas as honras; ele pode estar a
criar-te um espaço para uma nova delícia. O pensamento obscuro, a
vergonha, a malícia, recebe-os à porta sorrindo e convida-os a entrar.
Agradece a quem quer que venha, porque cada um foi enviado como um guia
do Além».
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Fonte: © SNPC |
09.03.14
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