sexta-feira, 7 de março de 2014

“Glória” A vida segue

Cloves Geraldo *

O rito de passagem da terceira idade não é o ocaso da vida, mas o abrir-se para novas experiências neste filme do cineasta chileno Sebastian Lelio

O cinema invariavelmente trata os idosos como simpáticos, doentes ou excêntricos. EmGlória, o cineasta chileno Sebastian Lelio foge a este clichê ao mostrá-los como pessoas experientes, complexas e abertas à vida. Escapa assim às fantasias e às digressões distantes do cotidiano que eles levam hoje. Os personagens estruturados por Lelio e seu corroteirista Gonzalo Maza não são idosos desplugados, eles vivem na sociedade virtual, dos computadores, dos celulares, da internet, das redes sociais.

De classe média, eles são de uma geração que viveu o despertar das minorias (mulheres, negros e gays), a luta conta a Guerra do Vietnã, as ditaduras sul-americanas das décadas de 60 (Brasil), 70 (Chile, Peru e Argentina) e nas últimas três décadas as transformações tecnológicas e a ascensão e queda do neoliberalismo. Lelio, ao longo do filme, coloca-os em meio a um conflito político que ainda não terminou, principalmente em seu país.

Lelio, ao situá-los historicamente, coloca-os em meio a passeatas de estudantes pelo ensino gratuito, conversas em que citam a crise econômica, ética e moral, a busca constante pelo dinheiro e o acesso intermitente às redes sociais e, sobretudo, ao referir-se sutilmente à Ditadura Pinochetista. Eles são entes históricos, ainda que o filme seja um drama sobre a terceira idade. Não idosos qualquer, mas frutos das lutas travadas ao longo de décadas para hoje desfrutar do que construíram (e não só eles).

Glória não cessou ambições amorosas

O filme é centrado em Glória, de 58 anos, divorciada, mãe de dois filhos adultos, funcionária de escritório, que leva uma vida independente. Ela não luta para suportar a “carga” da terceira idade, preparando-se para a doença, a solidão e a morte. Cheia de vida, ela se diverte em clubes e numa noite conhece Rodolfo (Sergio Fernandez), recém-divorciado, ex-oficial da Marinha mercante chilena, empresário da área de parque de diversões. Os dois irão tentar mutuamente de uma segunda chance.

Através de Glória, Lelio discute o amplo leque de emoções, sensações, buscas e prazeres apresentados à terceira idade. Glória evidencia cada uma delas em sua relação com Rodolfo. Ela, com o tempo, cicatrizou as feridas herdadas do divórcio, consegue dar conta do trabalho e relacionar-se com os filhos e Rodolfo. E ainda encontra tempo para divertir-se e ser ela, mantendo sua independência e visão aberta da vida.

O mesmo não ocorre com ele. Rodolfo, de 65 anos, leva uma vida de divorciado atribulada: suas filhas de 28 e 31 anos ainda dependem dele financeira e afetivamente e a ex, de quem se divorciou há um ano, ainda interfere em sua vida. Ele não consegue lidar com esta triplicidade de situações, que termina se interpondo entre ele e Glória, criando embaraçosos impasses, que não consegue contornar.

Rodolfo não se livra da ex

Glória, cuja independência dita a narrativa, é mulher de seu tempo e de equilíbrio exemplar. Faz tudo para contornar as indecisões de Rodolfo. No entanto, as interferências das filhas e da ex dele são buñuelescas. Como em “Discreto Charme da Burguesia” (1972), elas interrompem sua participação no aniversário de Ana, filha de Glória, o impedem de jantar sossegado com a nova companheira e ter uma estadia com ela num resort no balneário de Viña Del Mar. Glória termina por insurgir-se e sua indecisão beira o surreal.

Ela lida melhor com seu divórcio, sem esquivar-se de ser mãe. Isto se evidencia quando se despede de Ana no aeroporto. Há nela sensação de perda, de a filha estar grávida e ir morar com o companheiro sueco em Estocolmo. Lelio tampouco a mostra solitária, chorosa, lamentando pela filha e Rodolfo. Ela, como nas sequências no clube e na praia de Viña Del Mar, mostra estar na vida, cai na festa e acorda na deitada na praia

Lelio pontua o estado psicológico dela através de inúmeras músicas, inclusive “Águas de Março”, de Tom Jobim, “Lança Perfume”, de Rita Lee e Roberto Carvalho, no poema musicado cantado por Umberto Tozzi: (...) O céu sente a sua falta/Me queime com seu fogo/Derreta a neve/ Que congele o meu peito/ Eu te espero, Glória”, e na metafórica performance do esqueleto na rua. A Glória de Lélio tem a mesma fibra de suas homônimas nos filmes de John Cassavetes (1929/1989), em 1980, e de Sidney Lumet (1924/2011), em 1994.

A câmera de Lelio não foge ao realismo da relação amorosa de Glória e Rodolfo, eles são flagrados como os jovens durante o amor. As lentes pega-os em sua maturidade devastada, como a de Rodolfo, ou o corpo sensual de Glória. Lelio, com isto, desmente os estigmas de que a transição da maturidade para a terceira idade é o rito de passagem para o ocaso, o “esperando a morte chegar”, como diria Raul Seixas. Trata-se apenas de mais uma etapa da vida.

“Glória”. “Gloria”. Drama. Chile. 2013. 110 minutos. Montagem: Soledad Salfate/Sebastian Lelio. Fotografia: Benjamim Echazarreta. Roteiro: Sebastian Lelio/Gonçalo Maza. Direção: Sebastian Lelio. Elenco: Paulina Garcia, Sergio Fernadez , Diego Fontecilla, Fabiola Zamora, Luiz Jimenez.
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(*) Urso de Prata Festival de Berlim 2013: Melhor Atriz – Paulina Garcia.
FONTE: http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=5788&id_coluna=13
Imagem da Internet

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