O livro "Lo scandalo dell'amore" ("O escândalo do amor
- Diálogo sobre fé e razão"), em que o cardeal Gianfranco Ravasi,
presidente do Pontifício Conselho da Cultura, e o filósofo francês Luc
Ferry dialogam sobre fé e razão, vida e morte, verdade e mentira, vai
ser lançado esta terça-feira nas livrarias italianas.
Do volume da editora Mondadori apresentamos um
excerto do diálogo final, publicado este domingo no jornal do Vaticano,
"L'Osservatore Romano".
Luc Ferry
"Credo ut intelligam" [Creio, por isso
compreendo], diz Santo Agostinho. Gostaria de regressar a esta ideia
paradoxal, segundo a qual se deve primeiro encontrar e depois procurar.
Para a expressar em termos mais comuns, seria necessário começar com a
fé, e só num segundo tempo mobilizar a razão.
Várias vezes o senhor diz que a verdadeira
teologia caminha sobre uma aresta, entre dois abismos, dois vales, nos
quais não se deve cair: de um lado, a aproximação unicamente histórica,
factual, racional, filosófica; do outro, um misticismo irracional, um
"entusiasmo místico", uma Schwärmerei, para usar um termo do
romantismo alemão. É preciso por isso manter-se sobre a crista, o que
implica conjuntamente quer a razão e a história factual, quer uma
aproximação transcendente.
Só desta forma se pode estar em harmonia com o
objeto principal da teologia, Jesus, que é ao mesmo tempo um ser
histórico, mas também alguém de quem não se pode compreender a mensagem
se não se possui já a fé. Somente nesta condição haverá harmonia entre
o método teológico e o objeto da teologia.
Porque é que escolheu esta aproximação, tendo em
conta que se está a dirigir a não crentes, no quadro do Átrio dos
Gentios? O que é que se espera que se compreenda de preciso, dado que
se requer em primeiro lugar a fé para compreender, e que, por
definição, nós, os não crentes, não a temos?
Gianfranco Ravasi
O amar precede o compreender. Esta questão pode
ser o início para explicitar o meu pensamento sobre a reflexão
teológica, que se baseia num esquema que parte de Pascal, o qual dizia
que se compreendem as coisas que se amam. Este conceito pode ser
ampliado até chegar aos confins da antropologia, ou seja, da experiência
comum a cada pessoa humana.
Com efeito, a consciência primária da pessoa é
simbólica, está marcada por um movimento de adesão afetiva a um
universo que se abre diante do olhar. A criança, por exemplo, tem como
primeiro conhecimento a visão de conjunto, em seguida aprenderá a
distinguir segundo as regras da análise. Do mesmo modo procede o poeta,
que não analisa os sentimentos, os rostos, os olhares, as paixões, as
situações, mas representa-os em termos sintéticos, por vezes
fulminantes, como o clarão de um relâmpago que encandeia.
O itinerário de fé autêntico é, em certos
aspetos, paralelo ao percurso estético; por isso o ponto de partida é
crer/amar, com um começo de tipo simbólico representativo. Neste
horizonte, para usar o binómio ao qual o senhor se referiu, podemos
afirmar: crer, e depois começar a compreender.
Neste ponto passa-se ao segundo momento, isto é,
à análise em sentido estrito. Esta procura, no entanto, não pode ser
conduzida através de um único canal, uma única via de conhecimento. Com
efeito, o estatuto epistemológico próprio da teologia necessita pelo
menos de dois percursos paralelos.
O primeiro compreende a documentação histórica e
a análise racional. A figura de Jesus, por exemplo, deve ser estudada
tomando em consideração a verificação histórico-crítica, mas também a
dimensão psicológica, com o contributo da psicanálise, com os seus
critérios de indagação, ou da antropologia cultural, e não apenas com a
necessária análise racional entendida segundo cânones filosóficos ou
históricos rígidos.
Definirei o segundo nível, ainda que com algumas
precisões, como místico, teológico em sentido estrito. Trata-se de um
cânone mais específico, que tem em conta a dimensão metaracional, que
não significa simplesmente afirmar princípios ou ideias vagas,
inconsistentes, mas reconhecer que existe outra ordem cognoscitiva com o
seu estatuto metodológico e a sua coerência intrínseca. Este modelo de
conhecimento, por exemplo, considera a Bíblia também como palavra
transcendente, superando os rigorosos princípios de uma linguagem
literária, histórico-crítica.
Pode ajudar-nos a entrar nesta segunda dimensão o
livro de Job, que de um lado vê os três amigos Zofar, Bildad e Elifaz,
aos quais se junta Elihu, que mantêm o seu diálogo sobre uma trama de
racionalidade pura, sem se abrirem à transcendência. Num primeiro
momento, Job polemiza com os amigos sobre o próprio terreno do
raciocínio, mas no fim abre outro horizonte cognoscitivo, que lhe
permite afirmar, no que diz respeito a Deus: «Os meus ouvidos tinham
ouvido falar de ti [é a via racional], mas agora veem-te os meus
próprios olhos» (Job 42, 5).
Com esta afirmação, ele introduz o parâmetro da
visão, o conhecimento de tipo teológico em sentido estrito, que não é
vagamente sentimental, mas que possui um estatuto e método.
À luz desta perspetiva podemos recordar Tomás de
Aquino, Anselmo, Pascal, Kierkegaard e outros autores, que procuram
individuar não só a gramática da razão, mas também a da "metarazão".
Sobre esta esteira podemos recordar também alguns grandes místicos,
como João da Cruz e Teresa de Ávila. João da Cruz, por exemplo,
descreve a ascensão até Deus por graus, passando também através da noite
do espírito. Tudo isto não é pura emoção, mas manifesta um rigor
expositivo articulado sobre uma sintaxe teológica. Neste sentido,
podemos dizer que a esperança do crente e, subordinadamente, o trabalho
do teólogo, nascem de um percurso que em certos aspetos é comparável
ao envolvimento total requerido no enamoramento.
De facto, a experiência do amor tem certamente
uma dimensão racional - os dois conhecem-se, discutem, sonham, projetam
-, mas a componente fundamental está sintonizada num comprimento de
onda diferente. O rosto da mulher que se ama manifesta-se como
belíssimo, único, enquanto que para os outros não é mais do que um dos
muitos rostos que passam pelo "vídeo" do quotidiano.
Seria errado pensar que o enamoramento é apenas
uma experiência emotiva; ele, com efeito, contempla também o aspeto
racional que, por vezes, pode colocar em crise o plano afetivo. O
enamorado faz uma "experiência de fé" que não tem Deus como
interlocutor, mas a beleza, que é, em todo o caso, uma realidade
transcendente. Isto deve-nos oferecer a possibilidade de apresentar a fé
não como um conjunto de normas, mas como uma experiência "outra", que
envolve toda a pessoa, mente e coração.
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In Lo scandolo dell'amore, ed. Mondadori
Trad.: SNPC/rjm
Fonte: © SNPC | 03.03.14
Trad.: SNPC/rjm
Fonte: © SNPC | 03.03.14
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