domingo, 23 de março de 2014

Por um almoço brasileiro

Zeza Amaral*
 
Um rebanho de nuvens sobrevoa uma imponente chaminé da Vila Industrial. Ao pé da mesma, uma manada de cavalos brancos está encilhada e pronta para qualquer busca de prazer ou dor, cheirando a combustível e óleo. Lavradores de todas as terras caipiras capinam suas palavras. Muitos ainda jovens mas todos já possuídos de algumas marcas no corpo e na alma. Uns nos olhos, que brilham diferente; outros, nas rugas precoces, mas todos marcados pela tristeza submersa ainda do que já viram, e certos que ainda há muito o que se ver.

Por aqui, meus amigos lavradores estão em silêncio abissal, monástico, pensando na melhor palavra, na formatação final da notícia. Seguem arando palavras, na maioria tristes, mas que servirão também para alimentar a eterna fome do querer saber da cidade, do mundo, de todos nós que também nos alimentamos de notícias.
É um campo vasto onde os capinadores da palavra fazem sua colheita. E a cada um é dado um pequeno latifúndio, um pedaço de vidro, uma tela de computador. Aos poucos, palavras vão se juntando às outras e assim seguem esculpidas, frase a frase, materializando acontecimento, o que nos deixará tristes, alegres ou animados para viver uma vida de paixão.

Trabalham em pequenos grupos, cada qual em sua ilha, rodeada de oxigênio, risadas, palavrões e gestos de indignação quando o alimento a ser servido ao leitor é temperado com a dor — afinal, jornalista também é pai, filho e espírito responsável pela injustiça praticada por covardes políticos corruptos e ladrões dos pequenos sonhos de cidadãos honestos, desarmados e tão apenas responsáveis pelos seus filhos e pelo que produzem em seus misteres.

Há também os lavradores da imagem, com suas enxadas de luz, imponentes, escarafunchando o acontecimento de toda a cidade, que, por maior que seja, sempre cabe na palma de suas mãos. E quando a imagem renasce no papel, com ela vem a emoção do reviver de um momento, um milagre que vive em si, por todas as palavras que não necessitam ser ditas. E o leitor lê o que já foi dor ou prazer na palavra escrita, uma notícia de ontem que ainda seguirá na memória do jornal velho que agora serve para forrar gaiolas e embrulhar vidro quebrado.

Leitor e jornalista são uma coisa única e indissolúvel. Passado e presente se somando para a memória futura.

Um cardume de nuvens avança em direção ao mar atlântico. Lavradores do ar apontam seus anzóis em ondas hertezianas. Radialistas lançam suas vozes para os quatro cantos da cidade. Em ondas apocalípticas há um que fala em nome de Deus. Outro deseja apenas alegrar quem está só. E o céu se enche de palavras, um maná de palavras no qual os ouvidos da cidade se sacia.

Não importa de onde chegue o alimento. Sabe apenas o lavrador do seu destino de alimentar olhos, ouvidos e almas da cidade. Sabem os lavradores da notícia que sem o alimento que produzem a vida de outros lavradores será ainda mais sofrida, pois eles só têm um ao outro, vidas entrópicas, estranhas profissões, de pesquisadores quânticos a de mercadores travestidos de paixão aos necessitados de carinho e sexo.

Um cardume de sargo-de-beiço segue em direção ao mar. E um rebanho de nuvens busca o pasto para além das peias do horizonte, a cobrar de uma velha estrela carcomida uma promessa que não se cumpriu. Que sigam seus caminhos sabendo que os vi e que os estou alimentando. E pastor que sou da minha própria esperança, dou testemunho aos lavradores da minha terra: ninguém cala a palavra. Palavra não tem boca! Tem gestos e corpo. Tem papel, pena e dedos. E toda palavra pertence ao leitor. Censurá-la é abortá-la da liberdade; e jamais alguma semente foi impedida de medrar entre o racho de uma pedra ou na dura terra que recebe um punhadinho de chuva, sol e pássaros.

Não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que não vou por aí (como deixou claro o poeta José Régio); mas também acho que não estraguei o domingo do raro leitor com mais uma ladainha sobre ladronagem petista, ações politicamente corretas do jornalismo de isenção — e seus efeitos em nossos fígados e estômagos. Enfim, tenha o raro leitor um bom almoço dominical, é o meu desejo. Apenas isso. E dias melhores sei que virão.

Bom dia.
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* Colunista do Correio Popular/Campinas
Fonte: Correio Popular on line, 21/03/2014
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