terça-feira, 11 de março de 2014

Solidão e velhice em dois poemas de Fernanda de Castro

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"Ver o cabelo embranquecer aos poucos,
a pele envelhecer, perder o viço,
e ninguém dar por isso."


É a Urgente, ultimo livro de poemas publicado em 1989 pela escritora, que vou buscar dois poemas que de uma forma pungente contam da solidão e da velhice, o que à nossa volta encontramos, se pararmos para olhar e ver. Confidenciava-me há poucos anos pessoa amiga que entre as suas relações, uma mulher lhe dizia: a viver sozinha prefiro qualquer pessoa comigo para pelo menos ouvir uma porta bater.

Solidão

Solidão:
ouvir passos, sabendo de antemão
que ninguém vai passar,
bater à porta.
Abrir, ansiosa, a caixa do correio,
duas vezes por dia,
sabendo muito bem
que está vazia.
Olhar o telefone horas a fio,
ano após ano,
tocar a campainha
e ouvir dizer:"Desculpe, foi engano."
Ouvir ranger a porta do ascensor,
senti-lo estremecer,
arrancar com uma espécie de estertor,
e, enfim, parar,
mas sempre noutro andar.
Pôr na mesa um talher
para alguém que vier,
sabendo muito bem
que ninguém vem.
Pôr um vestido novo,
um anel, um colar,
sabendo que ninguém vai reparar.
Ver o cabelo embranquecer aos poucos,
a pele envelhecer, perder o viço,
e ninguém dar por isso.
Morrer. E alguém ler num jornal:
Morreu Fulana. O funeral...


A senhora de Idade

A Senhora de idade,
de tão bons sentimentos,
tão bonitas maneiras,
vive dos rendimentos.
Vive, não, sobrevive.
A roupa está no fio,
tem, porém, o seu brio,
não se queixa a ninguém.
Vive triste, sozinha,
e pouco sai de casa
porque o barulho a arrasa.
Depois, sair com quem?
Não tem filhos, é viúva
e teme a solidão,
receia o vento, a chuva.
Apetece-lhe, às vezes,
ver os barcos no rio,
os pombos no Rossio,
mas não, custa-lhe a andar,
o calçado está caro
e cada mês que passa
o dinheiro é mais raro.
Mas de que vive então?
De alguns copos de leite,
de chá e de tisanas,
de pão e duma sopa,
a mesma, quase a mesma,
semanas e semanas.
Vai à missa, ao domingo,
e às vezes, quando há sol
ou cheira a maresia,
compra um fruto, uma flor,
para ter companhia.
Que lhe resta, coitada,
à Senhora de idade?
Resta-lhe pouco ou nada,
porém resta-lhe tudo:
uma grande saudade,
um sofrimento mudo
que é reserva e pudor,
às vezes uma flor,
e a sua dignidade.

* Fernanda de Castro (1900-1994) poetisa portuguesa.
* Aqui foi reproduzido excerto do artigo. Artigo completo veja: Fonte.
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Fonte:  http://viciodapoesia.com/2014/03/11/solidao-e-velhice-em-dois-poemas-de-fernanda-de-castro/

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