Tania Azevedo Garcia*
Para sobreviver à natureza e suas intempéries, o homem precisou
conviver. Entretanto, estar com o outro, muitas vezes, significa
conflito. Seja este de ordem pessoal, familiar ou mesmo social. O
premiado filme argentino "O Homem ao lado"
de Gastón Duprat e Mariano
Cohn nos apresenta
uma história muito interessante, que nos
permite refletir profundamente sobre o tema.
Estar no mundo é estar com alguém, o que nem sempre significa
felicidade. Freud em “O Mal Estar na Civilização” relata que o
sofrimento humano advém de três fontes: do poder da natureza sobre nós;
da fragilidade de nossos corpos, pois adoecemos e morremos; e das regras
sociais que nos ajustam ao mundo. Segundo o autor, de todos esses
males, o último é o que nos traz maior sofrimento.
É o que parece sentir Leonardo, arquiteto, professor, burguês,
personagem do filme argentino “O Homem ao Lado”. Leonardo tem que
conviver com um vizinho menos “nobre” que ele, Victor. Um homem de meia
idade, simples, pouco civilizado, segundo os moldes do protagonista rico
da história.
O conflito emerge no momento em que Victor resolve abrir uma janela
no muro que divide sua simples moradia com a sofisticada casa de
Leonardo, única construção na América Latina projetada pelo famoso
arquiteto francês Le Corbusier.
Do ponto de vista da lei, Victor jamais poderia abrir a janela.
Contudo, a despeito da legalidade, ele o faz, pois diz precisar dela
para trazer um “poquito de sol” para sua humilde casa. Aqui começa o
embate.
A princípio, o diretor do filme parece nos chamar a atenção para as
contradições sociais que vivemos nas grandes cidades, mais precisamente,
parece apresentar uma crítica à sociedade burguesa. Muitos amantes de
arte arquitetônica visitam Buenos Aires e ficam à espreita observando a
casa de Leonardo, já que ela não é aberta à visitação. De sua moradia,
Victor consegue ver quase todos os movimentos que ocorrem na residência
de Leonardo. E o incômodo reside no fato de que os moradores da casa
desenhada por Le Corbusier querem manter a privacidade. O que se torna
um paradoxo, já que também desejam ser vistos. É o que acontece, de
certa forma, a muitas celebridades no mundo atual.
Para além do conflito entre as classes sociais, chamo a atenção para a
forma como Leonardo reage à situação. Ele tenta demover Victor da ideia
da janela. Usa primeiramente o argumento da lei; depois, diz que sua
mulher é quem não concorda; em seguida, fala que seu sogro, sócio na
casa, é quem não aceita a construção da janela. Ele se esquiva o tempo
todo do confronto direto com Victor. Este, sem dúvida, muito mais
sedutor, envolvente e ameaçador, consegue intimidar Leonardo sem ter uma
atitude explícita de agressão. Seu corpo fala. Suas expressões faciais e
corporais comandam o processo. Assim, os argumentos civilizados de
Leonardo não conseguem vencer as pressões de seu oponente.
Um misto de drama e de comédia. Aliás, o personagem Victor é
simplesmente hilário. Um excelente filme para refletirmos sobre o quanto
somos capazes de lidar com os diversos e possíveis conflitos que
emergem em nossas vidas e sobre a forma como reagimos a eles. Afinal,
“toda aproximação é um conflito”, já dizia o poeta português Fernando
Pessoa, e, como seres civilizados, não temos como escapar da
convivência. Numa afirmação a qual o próprio psicanalista chama de
espantosa, Freud nos convoca à reflexão:“… nossa civilização é em grande
parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais felizes
se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas”.
Primitiva é a atitude de Leonardo no final surpreendente do filme,
que nos traz desconforto e incômodo intensos. Quando assisti ao filme
pela primeira vez, tive a sensação de que eu iria pular na tela e fazer
alguma coisa. Isso é cinema de arte. Ele nos coloca em cena.
Referências
FREUD, S. O Mal Estar na Civilização – Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974
O HOMEM AO LADO. Direção: Gastón Duprat, Mariano Cohn: Imovision, 2009. DVD (100 min)
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