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Mulher diante de protesto pró-Rússia em Donetsk: erro dos EUA acirraram conflito.
Pressão sobre a Rússia na crise com a Ucrânia pode levar a ‘situação
pior que qualquer outra
presenciada na Guerra Fria’,
diz especialista
Na sexta-feira, quando o governo de Kiev anunciou que guardas de
fronteira ucranianos já estimavam em 30 mil o número de militares russos
de prontidão na Crimeia, a temperatura subiu de vez entre os dois
países. Enquanto isso, esforços dos EUA e da União Europeia para esfriar
os ânimos na região continuaram desastrados e insuficientes. Essa é a
opinião do presidente do Center for the National Interest e editor da
revista especializada em política externa The National Interest, o
moscovita Dmitri K. Simes.
Na entrevista que você lê a seguir - concedida ao escritor e
jornalista americano John Judis, editor sênior do The New Republic -,
Simes, que presidiu o Center for Russian and Eurasian Programs no
Carnegie Endowment for International Peace e dirige um programa centrado
na União Soviética na Universidade John Hopkins, alerta que "ecos de
1914" e de uma nova Guerra Fria podem se fazer ouvir se o Ocidente não
agir com mais estratégia e menos verborragia na condução da crise que
representa, segundo ele, "uma situação muito grave para os EUA".
O que está acontecendo na Ucrânia? É provável o cenário de uma guerra civil?
Acho que uma guerra civil é improvável, não impossível. Ficou muito
claro que a Crimeia está sob controle russo e isso dificilmente mudará.
Não há nada que possa ser feito no caso, exceto negociar. E se Moscou
utilizar a força na região pode haver uma escalada perigosa do conflito.
Mas a presença da Rússia não significa ainda que a Crimeia se tornará
parte da Rússia. Tivemos um sinal positivo no início da semana, quando o
novo primeiro-ministro da Crimeia anunciou que adiaria o referendo
sobre o estatuto da península - declaração claramente coordenada com o
Kremlin. De modo que esta pode ser uma oportunidade, se quisermos
aproveitá-la, de negociar sobre o que trataria exatamente o referendo
(na quinta-feira, após a realização desta entrevista, legisladores da
Crimeia marcaram o referendo para o dia 16/3): uma união com a Rússia,
independência plena ou uma autonomia ampliada. A Crimeia provavelmente
não será mais parte integral da Ucrânia. Quanto à entrada de tropas
russas na região leste do país, ainda considero isso altamente
improvável e evitável, mas também vai depender do que o governo de Kiev
fará.
Os russos acusam os EUA e a União Europeia de interferência. Como o sr. avalia o comportamento do governo Obama até agora?
Acho que ele tem contribuído para a crise. Porque havia um governo
legítimo em Kiev, liderado pelo presidente Viktor Yanukovich - que é uma
figura desprezível, incompetente e o principal arquiteto do próprio
fim, mas um presidente legalmente eleito. Liderou uma nítida maioria no
Parlamento ucraniano. E basicamente os EUA e a União Europeia decidiram
se aliar aos manifestantes. E permita-me dizer que se os últimos
estivessem usando esse tipo de força e essas técnicas contra um governo
amigo não seriam qualificados como manifestantes, mas rebeldes. Ou seja,
colocamo-nos do lado desses manifestantes/rebeldes. E os usamos para
pressionar Yanukovich a negociar um acordo que os governos europeus
endossaram totalmente, com o aval do governo Obama. Quando os rebeldes
aproveitaram o motivo do acordo para depor Yanukovich e todo seu
governo, aceitamos a situação como se fosse normal destituir à força um
governo eleito. Mais de cem deputados da Rada (o parlamento ucraniano),
membros do antigo partido no governo, o Partido das Regiões, não
compareceram e os deputados do partido que votaram com a oposição
tiveram permissão para ingressar no governo. E, embora esses deputados
pertencessem ao Partido das Regiões, eram controlados pelos oligarcas
pressionados pelo Ocidente a mudar de lado. Assim foi formado o novo
governo que assumiu o poder em Kiev. Não podemos ignorar esse processo
se quisermos saber por que os russos decidiram interferir agora. Digo
isso não para justificar o que Putin fez, os russos não têm direito de
usar suas tropas em território de outro Estado. Mas os delitos cometidos
pelos russos não devem ser usados como álibi para a incompetência do
governo Obama.
Uma das decisões do novo Parlamento foi revogar a lei que estabelecia o russo como segunda língua do país.
Exatamente. E eles também começaram a afastar governadores nas
províncias do leste. Esses governadores, naturalmente, foram nomeados
por Yanukovich, mas eram russos ou pelo menos falavam russo. Nas
províncias do leste a impressão que prevalece é de que o novo governo é
hostil à população de língua russa. Foi dito que seria formado um
governo de coalizão na Ucrânia. Mas se você observar a composição desse
governo, não se trata de coalizão - no máximo de uma coalizão entre a
oposição moderada e a oposição radical. Com certeza esse governo não
inclui políticos que representam a parte da população que fala o russo.
Uma política responsável não desencadearia um processo que levasse a
essa cadeia lamentável de eventos. Havia uma situação em que Yanukovich
era muito impopular em toda a Ucrânia, incluindo a região leste e a
Crimeia. Todas as pesquisas de opinião indicavam que muitas pessoas na
Ucrânia, e também na Crimeia, estavam dispostas a que a Ucrânia aderisse
à União Europeia. Mas isso não significava que todas desejassem cortar
seus vínculos com a Rússia. E não significava que esperassem uma
investida contra sua língua, nem desejassem que governadores fossem
nomeados pelos dirigentes em Kiev, considerados hostis a seus
interesses. Essa foi a dinâmica que levou a Rússia a interferir.
O objetivo de Putin é apenas a Crimeia, o leste da Ucrânia ou o país inteiro?
Estou certo de que, do fundo do seu coração, Putin gostaria de se
apossar da Ucrânia inteira. Mas é algo totalmente irrealista - e suponho
que ele seja suficientemente pragmático para entender isso. No caso da
região leste da Ucrânia a situação é muito mais difícil do que na
Crimeia porque há muita gente que não quer uma união com a Rússia, ou
pelo menos ter uma autonomia muito maior em relação a Kiev. Já outras
regiões se opõem tenazmente a isso. Portanto, acho que será muito
problemático para a Rússia usar a força basicamente para trazer as
províncias do leste ucraniano para sua esfera. Onde seria demarcada uma
nova fronteira? Acho que Putin é pragmático o bastante para não fazer
algo assim, a menos que o governo de Kiev lance realmente uma grande
ofensiva contra os governos locais do leste da Ucrânia. Aparentemente já
existem, de acordo com os russos, mais de 100 mil refugiados do leste
ucraniano chegando à Rússia. Se esse número se transformar em centenas
de milhares, ou milhões, penso que os cálculos de Putin podem ser
modificados. Mas neste momento tanto seu plano como sua preferência são
de não se envolver no leste da Ucrânia.
O que achou de Obama afirmar que ‘a Rússia pagará alto preço’ se continuar a intervir?
Esta é uma situação muito grave para os EUA. Independentemente da
importância da Crimeia para os americanos, que na minha opinião é
ínfima, penso que está muito claro que, se permitirmos que a Crimeia se
una à Rússia, estaremos enviando uma mensagem bastante séria para todos
os outros países da região. Seria claramente um golpe para a
credibilidade geopolítica americana na região e mais além. Não nos
envolvemos muito na Síria ou no caso do Irã e agora parece que estamos
dispostos a aceitar essa humilhação política na Crimeia e no leste da
Ucrânia. De modo que não tenho dúvidas de que os Estados Unidos têm a
responsabilidade de agir. Mas o que Obama está fazendo é exatamente o
oposto do que deveria ter feito, na minha opinião.
Obama está errando por quê?
Em primeiro lugar, o presidente aprecia fazer comentários
dissimulados sobre o que é o interesse russo. Mencionou isso duas vezes
em seu rápido comunicado, no dia 28. Dizer aos russos o que é do
interesse deles é um exercício de futilidade. Dizer que arcarão com um
alto custo... Bem, claro que eles sabem qual será o preço a pagar.
Tampouco irá intimidá-los ameaçando se retirar do G-8 ou expulsando a
Rússia do G-8. Ou, ainda, suspender os preparativos para essa cúpula. Se
pretendemos ser sérios, temos de nos perguntar não só o que podemos
fazer contra a Rússia. Claro que podemos punir a Rússia, mas é provável
também que a Rússia dará o troco. Podemos infligir danos econômicos
severos a ela. Podemos fazer coisas que isolariam a Rússia no plano
internacional. Mas não devemos nos surpreender se os russos, para
compensar os prejuízos e a perda de prestígio, assinarem um acordo de
segurança com o Irã e fornecerem ao Irã mísseis S-300 ou talvez S-400,
por exemplo. Não devemos nos surpreender se a Rússia oferecer apoio
maior ao presidente Assad. Nem devemos nos surpreender se a Rússia
introduzir um novo elemento de instabilidade global, assinando um acordo
de segurança com Pequim. Há forte interesse de Pequim em fortalecer
laços de segurança com a Rússia. Sob muitos aspectos, essa seria uma
situação muito pior que qualquer outra que presenciamos durante a Guerra
Fria. Ouviríamos os ecos de 1914.
O que deveria ser feito, então?
Acho que precisamos abrandar nossa retórica e refletir seriamente
sobre nossos objetivos. Não entendo como uma maior autonomia da Crimeia
afetará negativamente interesses nacionais americanos fundamentais. E
não vejo como o fato de se proporcionar maior autonomia às províncias do
leste da Ucrânia, dando a elas basicamente o que os Estados americanos
têm, será algo terrível também. Na verdade, isso promoveria a
estabilidade na Ucrânia. Eu tentaria uma aproximação de Putin com o
governo ucraniano para negociar um amplo acordo. Diria aos nossos
protegidos em Kiev que desejamos ajudá-los e nos esforçaremos nesse
sentido - mas que, ao mesmo tempo, eles precisam refrear sua retórica e
começar a responder seriamente aos pedidos das províncias do leste. Acho
também que precisamos, sem ameaças vazias, mobilizar tropas e instalar
algumas forças adicionais nas fronteiras da Otan de modo a incutir algum
senso de realidade no Kremlin. Demonstrar que, se a coisa deteriorar de
vez, eles podem se ver numa situação muito difícil.
O sr. está dizendo então que os americanos estão fazendo muito alarde e mostrando pouca força?
Estamos de fato fazendo muito alarde e mostrando pouca força. Não
estamos na verdade disciplinando os russos. Não estamos definindo o que é
importante para nós. Estamos agindo como o Rei Lear: fazendo
declarações patéticas que ninguém leva a sério. Quando vi o secretário
John Kerry na TV... Na minha opinião, sua apresentação foi lamentável.
Ele estava visivelmente enraivecido. E na defensiva. Acusou os russos
usando termos muito duros, referindo-se a violações da lei
internacional. Sua descrição do processo político na Ucrânia que levou à
atual situação foi incompleta e, no melhor dos casos, de má fé. E,
depois de falar tudo isso, ele não disse: "Como os russos violaram a lei
internacional, ameaçam a segurança internacional, e por causa disto o
presidente dos EUA está deslocando suas forças navais para o Mar Negro".
A maneira como ele se expressou é o que esperávamos que dissesse como
conclusão. Mas ele mostrou pouca força. Retórica não é política e
mostrar-se duro não fará com que a Rússia retroceda. O governo Obama
terá de fazer algo a que não está acostumado: pensar estrategicamente.
Isso significa adotar medidas, preferivelmente sem alarde, para
demonstrar nosso compromisso com a segurança dos Estados Bálticos.
Significa pensar num fortalecimento do Exército ucraniano, se o conflito
deteriorar. Mas significa também evitar ameaças públicas vazias,
respeitando a dignidade da Rússia e se abstendo de criar uma impressão
de que ou é do nosso jeito ou não existe solução.
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TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
Reportagem por John Judis - The New Republic
Fonte: Estadão online, 08/03/2014
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