domingo, 9 de março de 2014

Hora da Frieza

Mulher diante de protesto pró-Rússia em Donetsk: erro dos EUA acirraram conflito. - Emilio Morenatti/AP
 Emilio Morenatti/AP
Mulher diante de protesto pró-Rússia em Donetsk: erro dos EUA acirraram conflito.
 
 Pressão sobre a Rússia na crise com a Ucrânia pode levar a ‘situação pior que qualquer outra 
presenciada na Guerra Fria’, 
diz especialista
 
Na sexta-feira, quando o governo de Kiev anunciou que guardas de fronteira ucranianos já estimavam em 30 mil o número de militares russos de prontidão na Crimeia, a temperatura subiu de vez entre os dois países. Enquanto isso, esforços dos EUA e da União Europeia para esfriar os ânimos na região continuaram desastrados e insuficientes. Essa é a opinião do presidente do Center for the National Interest e editor da revista especializada em política externa The National Interest, o moscovita Dmitri K. Simes.
 
Na entrevista que você lê a seguir - concedida ao escritor e jornalista americano John Judis, editor sênior do The New Republic -, Simes, que presidiu o Center for Russian and Eurasian Programs no Carnegie Endowment for International Peace e dirige um programa centrado na União Soviética na Universidade John Hopkins, alerta que "ecos de 1914" e de uma nova Guerra Fria podem se fazer ouvir se o Ocidente não agir com mais estratégia e menos verborragia na condução da crise que representa, segundo ele, "uma situação muito grave para os EUA". 

O que está acontecendo na Ucrânia? É provável o cenário de uma guerra civil?
Acho que uma guerra civil é improvável, não impossível. Ficou muito claro que a Crimeia está sob controle russo e isso dificilmente mudará. Não há nada que possa ser feito no caso, exceto negociar. E se Moscou utilizar a força na região pode haver uma escalada perigosa do conflito. Mas a presença da Rússia não significa ainda que a Crimeia se tornará parte da Rússia. Tivemos um sinal positivo no início da semana, quando o novo primeiro-ministro da Crimeia anunciou que adiaria o referendo sobre o estatuto da península - declaração claramente coordenada com o Kremlin. De modo que esta pode ser uma oportunidade, se quisermos aproveitá-la, de negociar sobre o que trataria exatamente o referendo (na quinta-feira, após a realização desta entrevista, legisladores da Crimeia marcaram o referendo para o dia 16/3): uma união com a Rússia, independência plena ou uma autonomia ampliada. A Crimeia provavelmente não será mais parte integral da Ucrânia. Quanto à entrada de tropas russas na região leste do país, ainda considero isso altamente improvável e evitável, mas também vai depender do que o governo de Kiev fará.

Os russos acusam os EUA e a União Europeia de interferência. Como o sr. avalia o comportamento do governo Obama até agora?
Acho que ele tem contribuído para a crise. Porque havia um governo legítimo em Kiev, liderado pelo presidente Viktor Yanukovich - que é uma figura desprezível, incompetente e o principal arquiteto do próprio fim, mas um presidente legalmente eleito. Liderou uma nítida maioria no Parlamento ucraniano. E basicamente os EUA e a União Europeia decidiram se aliar aos manifestantes. E permita-me dizer que se os últimos estivessem usando esse tipo de força e essas técnicas contra um governo amigo não seriam qualificados como manifestantes, mas rebeldes. Ou seja, colocamo-nos do lado desses manifestantes/rebeldes. E os usamos para pressionar Yanukovich a negociar um acordo que os governos europeus endossaram totalmente, com o aval do governo Obama. Quando os rebeldes aproveitaram o motivo do acordo para depor Yanukovich e todo seu governo, aceitamos a situação como se fosse normal destituir à força um governo eleito. Mais de cem deputados da Rada (o parlamento ucraniano), membros do antigo partido no governo, o Partido das Regiões, não compareceram e os deputados do partido que votaram com a oposição tiveram permissão para ingressar no governo. E, embora esses deputados pertencessem ao Partido das Regiões, eram controlados pelos oligarcas pressionados pelo Ocidente a mudar de lado. Assim foi formado o novo governo que assumiu o poder em Kiev. Não podemos ignorar esse processo se quisermos saber por que os russos decidiram interferir agora. Digo isso não para justificar o que Putin fez, os russos não têm direito de usar suas tropas em território de outro Estado. Mas os delitos cometidos pelos russos não devem ser usados como álibi para a incompetência do governo Obama.

Uma das decisões do novo Parlamento foi revogar a lei que estabelecia o russo como segunda língua do país.
Exatamente. E eles também começaram a afastar governadores nas províncias do leste. Esses governadores, naturalmente, foram nomeados por Yanukovich, mas eram russos ou pelo menos falavam russo. Nas províncias do leste a impressão que prevalece é de que o novo governo é hostil à população de língua russa. Foi dito que seria formado um governo de coalizão na Ucrânia. Mas se você observar a composição desse governo, não se trata de coalizão - no máximo de uma coalizão entre a oposição moderada e a oposição radical. Com certeza esse governo não inclui políticos que representam a parte da população que fala o russo. Uma política responsável não desencadearia um processo que levasse a essa cadeia lamentável de eventos. Havia uma situação em que Yanukovich era muito impopular em toda a Ucrânia, incluindo a região leste e a Crimeia. Todas as pesquisas de opinião indicavam que muitas pessoas na Ucrânia, e também na Crimeia, estavam dispostas a que a Ucrânia aderisse à União Europeia. Mas isso não significava que todas desejassem cortar seus vínculos com a Rússia. E não significava que esperassem uma investida contra sua língua, nem desejassem que governadores fossem nomeados pelos dirigentes em Kiev, considerados hostis a seus interesses. Essa foi a dinâmica que levou a Rússia a interferir.

O objetivo de Putin é apenas a Crimeia, o leste da Ucrânia ou o país inteiro?
Estou certo de que, do fundo do seu coração, Putin gostaria de se apossar da Ucrânia inteira. Mas é algo totalmente irrealista - e suponho que ele seja suficientemente pragmático para entender isso. No caso da região leste da Ucrânia a situação é muito mais difícil do que na Crimeia porque há muita gente que não quer uma união com a Rússia, ou pelo menos ter uma autonomia muito maior em relação a Kiev. Já outras regiões se opõem tenazmente a isso. Portanto, acho que será muito problemático para a Rússia usar a força basicamente para trazer as províncias do leste ucraniano para sua esfera. Onde seria demarcada uma nova fronteira? Acho que Putin é pragmático o bastante para não fazer algo assim, a menos que o governo de Kiev lance realmente uma grande ofensiva contra os governos locais do leste da Ucrânia. Aparentemente já existem, de acordo com os russos, mais de 100 mil refugiados do leste ucraniano chegando à Rússia. Se esse número se transformar em centenas de milhares, ou milhões, penso que os cálculos de Putin podem ser modificados. Mas neste momento tanto seu plano como sua preferência são de não se envolver no leste da Ucrânia.

O que achou de Obama afirmar que ‘a Rússia pagará alto preço’ se continuar a intervir?
Esta é uma situação muito grave para os EUA. Independentemente da importância da Crimeia para os americanos, que na minha opinião é ínfima, penso que está muito claro que, se permitirmos que a Crimeia se una à Rússia, estaremos enviando uma mensagem bastante séria para todos os outros países da região. Seria claramente um golpe para a credibilidade geopolítica americana na região e mais além. Não nos envolvemos muito na Síria ou no caso do Irã e agora parece que estamos dispostos a aceitar essa humilhação política na Crimeia e no leste da Ucrânia. De modo que não tenho dúvidas de que os Estados Unidos têm a responsabilidade de agir. Mas o que Obama está fazendo é exatamente o oposto do que deveria ter feito, na minha opinião.

Obama está errando por quê?
Em primeiro lugar, o presidente aprecia fazer comentários dissimulados sobre o que é o interesse russo. Mencionou isso duas vezes em seu rápido comunicado, no dia 28. Dizer aos russos o que é do interesse deles é um exercício de futilidade. Dizer que arcarão com um alto custo... Bem, claro que eles sabem qual será o preço a pagar. Tampouco irá intimidá-los ameaçando se retirar do G-8 ou expulsando a Rússia do G-8. Ou, ainda, suspender os preparativos para essa cúpula. Se pretendemos ser sérios, temos de nos perguntar não só o que podemos fazer contra a Rússia. Claro que podemos punir a Rússia, mas é provável também que a Rússia dará o troco. Podemos infligir danos econômicos severos a ela. Podemos fazer coisas que isolariam a Rússia no plano internacional. Mas não devemos nos surpreender se os russos, para compensar os prejuízos e a perda de prestígio, assinarem um acordo de segurança com o Irã e fornecerem ao Irã mísseis S-300 ou talvez S-400, por exemplo. Não devemos nos surpreender se a Rússia oferecer apoio maior ao presidente Assad. Nem devemos nos surpreender se a Rússia introduzir um novo elemento de instabilidade global, assinando um acordo de segurança com Pequim. Há forte interesse de Pequim em fortalecer laços de segurança com a Rússia. Sob muitos aspectos, essa seria uma situação muito pior que qualquer outra que presenciamos durante a Guerra Fria. Ouviríamos os ecos de 1914.

O que deveria ser feito, então?
Acho que precisamos abrandar nossa retórica e refletir seriamente sobre nossos objetivos. Não entendo como uma maior autonomia da Crimeia afetará negativamente interesses nacionais americanos fundamentais. E não vejo como o fato de se proporcionar maior autonomia às províncias do leste da Ucrânia, dando a elas basicamente o que os Estados americanos têm, será algo terrível também. Na verdade, isso promoveria a estabilidade na Ucrânia. Eu tentaria uma aproximação de Putin com o governo ucraniano para negociar um amplo acordo. Diria aos nossos protegidos em Kiev que desejamos ajudá-los e nos esforçaremos nesse sentido - mas que, ao mesmo tempo, eles precisam refrear sua retórica e começar a responder seriamente aos pedidos das províncias do leste. Acho também que precisamos, sem ameaças vazias, mobilizar tropas e instalar algumas forças adicionais nas fronteiras da Otan de modo a incutir algum senso de realidade no Kremlin. Demonstrar que, se a coisa deteriorar de vez, eles podem se ver numa situação muito difícil.

O sr. está dizendo então que os americanos estão fazendo muito alarde e mostrando pouca força?
Estamos de fato fazendo muito alarde e mostrando pouca força. Não estamos na verdade disciplinando os russos. Não estamos definindo o que é importante para nós. Estamos agindo como o Rei Lear: fazendo declarações patéticas que ninguém leva a sério. Quando vi o secretário John Kerry na TV... Na minha opinião, sua apresentação foi lamentável. Ele estava visivelmente enraivecido. E na defensiva. Acusou os russos usando termos muito duros, referindo-se a violações da lei internacional. Sua descrição do processo político na Ucrânia que levou à atual situação foi incompleta e, no melhor dos casos, de má fé. E, depois de falar tudo isso, ele não disse: "Como os russos violaram a lei internacional, ameaçam a segurança internacional, e por causa disto o presidente dos EUA está deslocando suas forças navais para o Mar Negro". A maneira como ele se expressou é o que esperávamos que dissesse como conclusão. Mas ele mostrou pouca força. Retórica não é política e mostrar-se duro não fará com que a Rússia retroceda. O governo Obama terá de fazer algo a que não está acostumado: pensar estrategicamente. Isso significa adotar medidas, preferivelmente sem alarde, para demonstrar nosso compromisso com a segurança dos Estados Bálticos. Significa pensar num fortalecimento do Exército ucraniano, se o conflito deteriorar. Mas significa também evitar ameaças públicas vazias, respeitando a dignidade da Rússia e se abstendo de criar uma impressão de que ou é do nosso jeito ou não existe solução. 
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TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
Reportagem por   John Judis - The New Republic
Fonte: Estadão online, 08/03/2014

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