domingo, 9 de março de 2014

Platão, inventando a filosofia

Paulo Ghiraldelli*

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Os limites do meu mundo são os limites de minha linguagem 
(Wittgenstein)

Daniel Motta está certo ao levantar a questão, na leitura do Híppias Maior, a respeito da palavra “belo” como tradução de kalós (kalox). Ele lembra que alguns tradutores dizem que não há uma perfeita tradução para o português, e que para entender a palavra deveríamos pensar no inglês “fine”, com seu oposto “foul”. Como deveríamos entender essa advertência?
A advertência é útil à medida que entendemos o texto platônico enquanto um texto de Platão inserido em seu mundo, o mundo antigo grego.

O diálogo não discute propriamente que é o belo, mas o que é o kalós, o “fine”, isto é, o belo enquanto o que designa situações, objetos, pessoas e mais coisas particulares. A busca de um kalós que possa alcançar algo além, isto é, que não se atrele a cada coisa em particular, é justamente o que o texto deseja encontrar. Explico: como nós já temos o belo como um termo que pode cumprir essa função, ou seja, um termo que soa como que um conceito, fica difícil entender que a busca de Sócrates no diálogo (que é a busca de Platão) se faça no sentido de encontrar uma tal coisa. Ou seja, não entendemos tudo que devemos entender se dissermos que Platão busca o belo em si, o belo enquanto eidos (ou forma, ou idea, no platonismo). Compreender mesmo Platão é saber que kalós não pode desempenhar essa função, pois diz respeito, na pragmática da linguagem do grego antigo, ao que é bonito enquanto o que não sobrevive solitariamente, mas agregado a particulares.

Didaticamente, posso explicar isso assim: o grego vê o kalós como adjetivo, e está, no trabalho de Sócrates, em busca do seu uso como substantivo. Filosoficamente, em termos platônicos: o grego lida com o belo de cada coisa, e quer lidar com o Belo como a Forma, o eidos – aí está o trabalho de Sócrates-Platão.

Meu filho Paulo Francisco diz algo aqui, para ilustrar, que vale a pena ser dito: “dois gregos antigos conversando são como dois peixinhos na água, e que nunca poderiam se imaginar como estando na água”, uma vez que nunca puderam ver a água como um meio entre eles dado que nunca imaginaram outros meios, como o ar, por exemplo.

Por isso mesmo que Platão e Aristóteles disseram que a filosofia era um “estranhamento do mundo”. 

Ou seja, a filosofia estranha o lugar que se está de um modo que ninguém pode estranhar. O filósofo é aquele peixe sem qualquer sanidade que chega para o outro peixe e diz: “nossa, o que há entre nós é água”. Aí o outro peixe diz: “putz, esse meu amigo não está bem, melhor interná-lo”. Mas aí, surge a mãe do primeiro peixinho e, para salvá-lo (mãe faz qualquer negócio nessa hora!) diz: “não, meu filho não está maluco, ele está filosofando”. Nenhum peixe sabia o que era essa tal atividade de filosofar, mas, enfim, diante de uma mãe desesperada, passaram a concordar e deixaram o peixinho ficar sem internação.

O certo é que o peixinho filósofo, o estranhador do mundo, não estava só estranhando, ele estava pensando em criar jogos de linguagem diferentes dos que existiam, para rebatizar o mundo e criar toda uma outra linguagem para falar de um mundo agora estranhado. Platão fez isso: criou uma linguagem, chamada metafísica após Aristóteles, que é baseada em um conjunto de palavras que levam adiante uma dualidade. O mundo torna-se dual à medida que ganha para nomeá-lo uma linguagem dual: aparência e essência são a principal dualidade. Então, aparência não é mais o que aparece, mas o que aparece como ilusão, como falso, e essência não é mais só o que é nuclear, mas é o que não é falso, é o real. Hoje, a consciência filosófica de Platão ou a metafísica ou simplesmente o novo jogo de linguagem inventado por Platão e seguido pelos filósofos depois dele tornou-se nosso senso comum.

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Nosso senso comum é platônico, disse Nietzsche. Ou seja, o jogo de linguagem da filosofia é mais ou menos o nosso jogo de linguagem. Algumas mulheres dizem isso de modo irritante: “não quero que me tomem pela minha aparência, mas pelo sou”. Ou seja, duplicam-se por meio do jogo de linguagem da filosofia, metafísico, platônico. Muitos de nós fazemos isso. O próprio marxismo engoliu isso meio que no embarque de seus pais, Kant e Hegel: ideologia como a aparência, ilusão, falsa consciência, como o que encobre aquilo que a teoria mostraria (marxista): o real. Temos esse jogo de linguagem tão entre nós que sempre achamos que o que está “na frente” apenas esconde o real que está “por detrás”. Os gregos não pensavam assim. Eles não tinham a filosofia incorporada como nós a temos. Foram introduzidos na filosofia por meio de Platão, o inventor do jogo de linguagem … platônico, filosófico. Aprenderam a nadar na nova água, agora estranhada, a partir do peixinho maluco, que a mãe salvou chamando de filósofo.

Os filósofos antes de Platão procuraram por princípios, sim, mas de modo imanente. O arkhé é princípio, claro, mas imanente. Por isso é sempre um elemento do Cosmos, da na natureza: fogo, ar, terra, água – os quatro elementos gregos clássicos. A transcendência foi inventada pelo jogo de linguagem de Platão. Na investigação do Hippias maior, o que se quer é o belo enquanto belo real, não o ilusório da beleza das coisas. Mas, para querer isso, é preciso já ter o jogo de linguagem inventado por Platão. Sócrates não o tinha e, por isso mesmo, o diálogo termina em uma aporia (e isso pouco importa se o Sócrates aqui, que não é Platão, seja personagem de Platão).

PS: o pragmatismo é a filosofia que segue a ideia de estranhamento do mundo. Mas o que quer estranhar é o mundo já estranhado e agora tornado senso comum. Então o pragmatista faz o papel do sofista, que não vê dualidade. Mas se trata do sofista crítico, do sofista pós-filosófico. Por isso muitas vezes o pragmatista diz que ele abandonou a filosofia, e outras vezes ele diz que está a fim de criar uma nova função para o filósofo. Essa tensão permanece na obra de Richard Rorty. Mantém-se assim no meu filosofar. Não se trata apenas de dizer: “ah, vou filosofar sem transcendência”. Isso não é o bastante. É importante pensar em filosofar de um modo que se possa não só inverter o platonismo, mas ir além, deixar a filosofia fazer mais. Tenho buscado isso fazendo experiências de todo tipo com a filosofia descritiva.
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor.
 Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/platao-inventando-a-filosofia/

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