Os limites do meu mundo são os limites de minha linguagem
(Wittgenstein)
Daniel Motta está certo ao levantar a questão, na leitura do Híppias Maior, a respeito da palavra “belo” como tradução de kalós
(kalox). Ele lembra que alguns tradutores dizem que não há uma perfeita
tradução para o português, e que para entender a palavra deveríamos
pensar no inglês “fine”, com seu oposto “foul”. Como deveríamos entender
essa advertência?
A advertência é útil à medida que
entendemos o texto platônico enquanto um texto de Platão inserido em seu
mundo, o mundo antigo grego.
O diálogo não discute propriamente que é o belo, mas o que é o kalós, o “fine”, isto é, o belo enquanto o que designa situações, objetos, pessoas e mais coisas particulares. A busca de um kalós
que possa alcançar algo além, isto é, que não se atrele a cada coisa em
particular, é justamente o que o texto deseja encontrar. Explico: como
nós já temos o belo como um termo que pode cumprir essa função, ou seja,
um termo que soa como que um conceito, fica difícil entender que a
busca de Sócrates no diálogo (que é a busca de Platão) se faça no
sentido de encontrar uma tal coisa. Ou seja, não entendemos tudo que
devemos entender se dissermos que Platão busca o belo em si, o belo
enquanto eidos (ou forma, ou idea, no platonismo). Compreender mesmo Platão é saber que kalós
não pode desempenhar essa função, pois diz respeito, na pragmática da
linguagem do grego antigo, ao que é bonito enquanto o que não sobrevive
solitariamente, mas agregado a particulares.
Didaticamente, posso explicar isso
assim: o grego vê o kalós como adjetivo, e está, no trabalho de
Sócrates, em busca do seu uso como substantivo. Filosoficamente, em
termos platônicos: o grego lida com o belo de cada coisa, e quer lidar
com o Belo como a Forma, o eidos – aí está o trabalho de Sócrates-Platão.
Meu filho Paulo Francisco diz algo aqui,
para ilustrar, que vale a pena ser dito: “dois gregos antigos
conversando são como dois peixinhos na água, e que nunca poderiam se
imaginar como estando na água”, uma vez que nunca puderam ver a água
como um meio entre eles dado que nunca imaginaram outros meios, como o
ar, por exemplo.
Por isso mesmo que Platão e Aristóteles disseram que a filosofia era um “estranhamento do mundo”.
Ou seja, a filosofia estranha o lugar que se está de um modo que
ninguém pode estranhar. O filósofo é aquele peixe sem qualquer sanidade
que chega para o outro peixe e diz: “nossa, o que há entre nós é água”.
Aí o outro peixe diz: “putz, esse meu amigo não está bem, melhor
interná-lo”. Mas aí, surge a mãe do primeiro peixinho e, para salvá-lo
(mãe faz qualquer negócio nessa hora!) diz: “não, meu filho não está
maluco, ele está filosofando”. Nenhum peixe sabia o que era essa tal
atividade de filosofar, mas, enfim, diante de uma mãe desesperada,
passaram a concordar e deixaram o peixinho ficar sem internação.
O certo é que o peixinho filósofo, o
estranhador do mundo, não estava só estranhando, ele estava pensando em
criar jogos de linguagem diferentes dos que existiam, para rebatizar o
mundo e criar toda uma outra linguagem para falar de um mundo agora
estranhado. Platão fez isso: criou uma linguagem, chamada metafísica
após Aristóteles, que é baseada em um conjunto de palavras que levam
adiante uma dualidade. O mundo torna-se dual à medida que ganha para
nomeá-lo uma linguagem dual: aparência e essência são a principal
dualidade. Então, aparência não é mais o que aparece, mas o que aparece
como ilusão, como falso, e essência não é mais só o que é nuclear, mas é
o que não é falso, é o real. Hoje, a consciência filosófica de Platão
ou a metafísica ou simplesmente o novo jogo de linguagem inventado por
Platão e seguido pelos filósofos depois dele tornou-se nosso senso
comum.
Nosso senso comum é platônico, disse Nietzsche. Ou seja, o jogo de linguagem da filosofia é mais ou menos o nosso jogo de linguagem. Algumas mulheres dizem isso de
modo irritante: “não quero que me tomem pela minha aparência, mas pelo
sou”. Ou seja, duplicam-se por meio do jogo de linguagem da filosofia,
metafísico, platônico. Muitos de nós fazemos isso. O próprio marxismo
engoliu isso meio que no embarque de seus pais, Kant e Hegel: ideologia
como a aparência, ilusão, falsa consciência, como o que encobre aquilo
que a teoria mostraria (marxista): o real. Temos esse jogo de linguagem
tão entre nós que sempre achamos que o que está “na frente” apenas
esconde o real que está “por detrás”. Os gregos não pensavam assim. Eles
não tinham a filosofia incorporada como nós a temos. Foram introduzidos
na filosofia por meio de Platão, o inventor do jogo de linguagem …
platônico, filosófico. Aprenderam a nadar na nova água, agora
estranhada, a partir do peixinho maluco, que a mãe salvou chamando de
filósofo.
Os filósofos antes de Platão procuraram por princípios, sim, mas de modo imanente. O arkhé
é princípio, claro, mas imanente. Por isso é sempre um elemento do
Cosmos, da na natureza: fogo, ar, terra, água – os quatro elementos
gregos clássicos. A transcendência foi inventada pelo jogo de linguagem
de Platão. Na investigação do Hippias maior, o que se quer é o
belo enquanto belo real, não o ilusório da beleza das coisas. Mas, para
querer isso, é preciso já ter o jogo de linguagem inventado por Platão.
Sócrates não o tinha e, por isso mesmo, o diálogo termina em uma aporia
(e isso pouco importa se o Sócrates aqui, que não é Platão, seja
personagem de Platão).
PS: o pragmatismo é a filosofia
que segue a ideia de estranhamento do mundo. Mas o que quer estranhar é o
mundo já estranhado e agora tornado senso comum. Então o pragmatista
faz o papel do sofista, que não vê dualidade. Mas se trata do sofista
crítico, do sofista pós-filosófico. Por isso muitas vezes o pragmatista
diz que ele abandonou a filosofia, e outras vezes ele diz que está a fim
de criar uma nova função para o filósofo. Essa tensão permanece na obra
de Richard Rorty. Mantém-se assim no meu filosofar. Não se trata apenas
de dizer: “ah, vou filosofar sem transcendência”. Isso não é o
bastante. É importante pensar em filosofar de um modo que se possa não
só inverter o platonismo, mas ir além, deixar a filosofia fazer mais.
Tenho buscado isso fazendo experiências de todo tipo com a filosofia
descritiva.
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/platao-inventando-a-filosofia/
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